Quando voltamos das viagens para cidades turísticas trazemos na bagagem dezenas de bugigangas – produtos típicos e/ou industrializados, dependendo da numeração do mundo do qual estamos retornando – e centenas (na verdade, milhares, após o advento da tecnologia digital) de fotos da paisagem urbana e natural. As fotos servem para calar a boca dos desconfiados ou para nós próprios verificarmos por onde viajamos, pois às vezes passamos tão rápido pelos lugares que sequer temos tempo de memorizá-los.
É um desenvolvimento cultural japonês, assimilado por turistas de todos quadrantes: visitar em uma semana o maior número de localidades e o maior número possível de endereços turísticos. Escondendo os rostos por detrás de máquinas fotográficas ou filmadoras, disseminaram pelo mundo o turismo de quarto, onde as imagens são digeridas posteriormente. Agora somos todos japoneses, mesmo que as traquitanas eletrônicas tragam hoje selos dos tigres asiáticos. Contar sobre a viagem é fazer um inventário do que vimos com os olhos tecnológicos e compramos em shopping centers.
Estamos tão habituados aos confortos da cidade contemporânea que quase nunca damos o devido valor para um sem número de coisas que contribuem para a qualidade da estadia e sem as quais as viagens seriam, senão inviáveis, seguramente muito incômodas.
Arquitetos – mas não só eles! – adoram fotografar edifícios de todo tipo, de todo tamanho e de todas as épocas. Muitas vezes fotografam terminais de avião, trem, metrô ou ônibus, quase sempre por terem um atestado de qualidade inconteste: um arquiteto de renome internacional. Eu mesmo já fotografei legítimos Sizas Vieiras, Santiagos Calatravas e Richards Rogers e fiquei embasbacado com as diatribes estruturais e formais de todos eles.
Mas a razão essencial deste tipo de equipamento – na verdade, razão única que justifica o aporte significativo de recursos no projeto e realização de construções quase sempre sofisticadas – é a de abrigar máquinas que carregam corpos e objetos de um lado para outro no território.
As distâncias percorridas por estas máquinas podem ser continentais ou de alguns poucos quilômetros ou mesmo metros, mas independente do trajeto, elas permitem a existência de itinerários fixos, conferindo ordem nos deslocamentos dos homens e seus queridos objetos. Sem elas, o turismo de massa seria uma boa idéia que não sairia do papel.
Se tal constatação é mais aceitável em relação ao inusual transatlântico ou corriqueiro avião, o mesmo não acontece quando consideramos o papel desempenhado por máquinas de porte menor, que passam desapercebidas na paisagem urbana. Mesmo quando visíveis, têm sua fama garantida não por sua função nobre, mas por alguma idiossincrasia formal ou histórica (caso do ônibus duplex de cor vermelha em Londres, para exemplificar).
E o que dizer dos sistemas enterrados de transporte de massa, como trens e metrôs? Podemos ir por baixo da terra para qualquer lugar em cidades como Londres, Paris ou Nova York, mas quase nenhuma atenção dedicamos aos trens. Algumas estações ou garotas sentadas no banco à frente podem ser bem bonitas, mas qual de nós seria capaz de descrever com acuidade o vagão que nos levou?
Não é de se estranhar, afinal quando estamos dentro de algum compartimento do sistema de transporte – seja o idoso mas ainda vigoroso Elevador Lacerda em Salvador, o moderníssimo bonde do sistema Tram de Barcelona, o pitoresco funicular defronte a Basílica do Sacré Coeur no Montmartre parisiense, o eficiente vaporetto no grande canal veneziano ou o teleférico de Santiago de Chile –, o que mais gostamos de fazer é olhar para as visadas magníficas que se descortinam diante de nossos olhos, seja a paisagem natural com suas variações quase infinitas, seja a paisagem urbana depositária das mais ricas realizações humanas ao longo do tempo.
Se os românticos viajantes do século XIX registravam extasiados, em gravuras e pinturas, as sublimes paisagens exóticas de outros países e continentes, o moderno turista olha pelas janelas das máquinas de transporte e captura com as atuais e sofisticadíssimas máquinas digitais, em meio a paisagens urbanas cada vez mais homogeneizadas pela arquitetura corporativa, sobrevivências resistentes do peculiar e do característico local.
Estamos até o momento apresentando argumentos um tanto óbvios. Mas é possível, com um olhar um pouquinho mais atento, descortinar um sem número de outras máquinas maravilhosas que garantem nosso bem-estar de turistas mal acostumados. Na verdade, são máquinas que dão conta das necessidades ordinárias do cotidiano urbano, cujas existências transcendem nossa grande idéia de estar ali diante delas.
Como o sutien (ou a moça) daquela propaganda muito antiga, a primeira máquina urbana a gente nunca esquece. A minha se materializou diante dos meus olhos no já longínquo ano de 1993, na cidade de Paris. Caminhando vagarosamente pelo Champs-Élysées nas imediações do Louvre, olhava para todos os pontos cardeais, girando minha cabeça em longas panorâmicas que descortinavam suntuosas construções. Um barulho bem irritante me despertou para o ambiente imediatamente circundante. Olhei e vi a minha primeira máquina urbana, uma linda e jovial maquineta de limpeza, elegante, esbelta e reluzente na sua carcaça vermelha brilhante, cuja vassoura circular deixava impecavelmente limpos aqueles quilômetros quadrados de chão impermeabilizado.
A mesma máquina fotográfica que fotografou o Jeu de Paume e a pirâmide translúcida de Pei foi incapaz de registrar aquele momento inesquecível da minha história pessoal, falha grotesca que só me dei conta depois, quando constatei que não parava de pensar na aparição. Pois é, nossa primeira e apaixonante máquina urbana a gente nunca fotografa!
Voltei por diversas vezes ao mesmo local esperando a "menina" passar, o que nunca mais aconteceu. Mas ali mesmo pude observar (e fotografar) uma silenciosa, mas truculenta grua fazer a manutenção de enormes vasos de cerâmica. Olhei de pronto para o entorno e constatei com enorme felicidade que as hordas de turistas passavam diante da cena sem nenhum interesse específico (a não ser um ou outro olhar de desprezo pelo incômodo causado nos trajetos). Ignorantes, preocupados unicamente com os edifícios consagrados, eram incapazes de compartilhar comigo aquela descoberta singela. Sentia-me como o menino que enxerga por detrás dos óculos e do aparelho ortodôntico a menina mais bonita da escola. Por falar nisso, nunca mais me esqueci de fotografá-las.
Daquele dia em diante, seja qual for a cidade nova que conheço, sob meu olhar deslumbrado de turista se esconde um sempre alerta olhar de "morador", preocupado com a manutenção da cidade, com o conserto das coisas que insistem em se quebrar, com a reposição das coisas que teimam em desaparecer, com a substituição das coisas que insistem em envelhecer, com as necessidades e problemas mais prosaicos do aborrecido dia-a-dia que precisam de instrumentos para ser atendidos ou solucionados.
Não deixa também de ser uma maneira muitíssimo interessante e divertida de se conhecer as cidades. Muitas vezes peculiaridades curiosas se manifestam nas predileções de certas comunidades por determinadas máquinas. Quando estive no norte da Itália há muito tempo pude constatar grandes diferenças entre as cidades, não só na arquitetura – que se mostra muito mais regional do que aprendemos nas aulas de história da arquitetura clássica –, mas também na forma como os moradores e o poder público tratam os monumentos urbanos que se acumularam ao longo dos séculos.
Se em Veneza tudo estava coberto pela pátina do tempo – os edifícios, as fundações de madeira encravadas na água, as luminárias e cisternas das praças secas –, em Bolonha tudo reluzia como se tivesse terminado de ser construído no dia anterior. Cidade aristocrática governada duas décadas seguidas por comunistas (seguramente não é contraditório na Itália), Bolonha impressiona pela limpeza urbana. Um dia, caminhando e olhando para a pavimentação impecável, ao virar uma esquina ergui os olhos e me deparei com ela, à minha espera: uma eficaz máquina de limpeza de fachadas de edifícios!
Por fim, uma última foto e a lembrança de uma agradável surpresa: o dia em que constatei que Veneza não era uma cidade temática para turistas. Como qualquer cidade que tem a necessidade de abastecimento cotidiano de bens de consumo, a pequenina capital do Veneto teve que inventar suas máquinas urbanas maravilhosas, dentre elas um fantástico barco equipado com grua, que vai parando de cais em cais para entregar engradados de frutas e hortaliças, caixas de latas de refrigerantes, pacotes de chicletes...
sobre o autor
Abilio Guerra, arquiteto, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius e do Arquiteturismo.