Em abril passado recebi uma proposta de trabalho: fazer parte de uma equipe de consultoria ambiental para um projeto hidrelétrico. Até aí, nada de muito novo. Eu já participara de diversos projetos semelhantes no Brasil e graças a eles tive oportunidade de conhecer locais lindos e interessantíssimos em Rondônia, Mato Grosso, Pará e Tocantins.
Mas desta vez o destino era uma surpreendente novidade – Moçambique, a ex-colônia portuguesa da África oriental. Minha agenda estava complicadíssima mas não costumo recusar viagens e conhecer a África negra me parecia algo simplesmente imperdível.
Um mês depois eu estava desembarcando no aeroporto de Maputo, a antiga Lourenço Marques do período colonial. Há um século Maputo substituiu a cidade de Moçambique como capital do país, numa ação de geopolítica que visou reprimir um eventual expansionismo da África do Sul, cuja fronteira se alcança em apenas duas horas de automóvel.
A chegada ao aeroporto, a espera pelos vistos e o percurso até o hotel foi suficiente para me fazer sentir num lugar ao mesmo tempo muito semelhante e muito diferente do Brasil.
Semelhante nos cartazes e letreiros escritos em português, no colorido da paisagem, na música no ar, na cidade baixa e cidade alta como na Bahia, na simpatia das pessoas.
E diferente nas línguas nativas que são faladas pela maioria do povo negro, nas capulanas coloridas que vestem as mulheres e amarram seus filhos às costas, no trânsito de mão inglesa, nos carros quase todos japoneses ou coreanos.
Maputo é uma cidade de quase dois milhões de habitantes e tem poucas construções antigas. Também praticamente nada foi construído durante as quase duas décadas de guerra civil que se seguiu à independência em 1975.
O centro e os bairros residenciais do período colonial têm ruas e avenidas largas, calçadas sombreadas com flamboiãs, e o que salta aos olhos na maior parte da área central da cidade são muitas belas edificações art deco ou prédios elegantes em estilo modernista dos anos 50-60.
Estes apresentam muita semelhança com a arquitetura brasileira deste período, com muito uso de pilotis, brises e painéis de elementos vazados nas fachadas.
Muitos dos prédios estão em mau estado de conservação e ainda se vêm palacetes abandonados e algumas ruínas.
Mas é notável o esforço de reconstrução do país, possibilitado pela paz e estabilização econômica dos últimos anos.
Os novos bairros residenciais estão se implantando ao longo das praias e neles construções de gosto muito duvidoso pipocam, como a demonstrar que a decadência dos padrões arquitetônicos é, infelizmente, um fenômeno global.
A imensa maioria da população de Maputo vive em bairros periféricos, em condições de urbanização muito precária - casas frágeis, ruas de terra, falta de infra-estrutura básica. Nenhuma surpresa para quem vem do Brasil, mas na periferia de Maputo, a aridez e adensamento que costumamos ver nas favelas e bairros populares por aqui, é substituída por uma paisagem mais amena e menos sufocante, marcada por uma densidade bem menor, com árvores, terreiros e quintais organizando a distribuição das pequenas construções.
Outra característica é a ocupação de todos os terrenos vazios com roças de subsistência, criando em alguns casos ilhas de áreas ágricolas em meio aos subúrbios.
Após uma semana de trabalho em Maputo, partimos para atividades de campo que nos levaram à província de Tete, 1.500 km a noroeste da capital, junto às fronteiras de Zâmbia e Malawi.
Como parte de nossa missão, sobrevoamos todo o trajeto em baixa altitude para observar um possível traçado de uma linha de alta tensão.
Foi uma incrível oportunidade de ver a paisagem das planícies úmidas litorâneas ir gradualmente se transformando em savanas semi-áridas nas regiões mais altas do interior, bastante semelhantes às caatingas do nordeste brasileiro.
Estávamos no início do inverno, que corresponde à estação seca, e quase todos os leitos dos rios já estavam praticamente sem água, parecendo estradas sinuosas de areia.
Tete, a capital da província, é uma típica cidade de fronteira, um centro de apoio comercial e rodoviário bastante movimentado.
A população é muito heterogênea e, como em todo o resto do país, alí também é forte a presença de grupos de origem indiana e a religião muçulmana é bastante praticada.
A falta de atrativos urbanísticos de Tete é compensada pela presença do magnífico rio Zambeze, um dos maiores da África e sempre caudaloso, que divide a cidade ao meio e é cruzado por uma ponte pênsil que é o principal cartão postal do local.
Tão notáveis quanto o rio são os lendários e imponentes baobás, onipresentes em toda a região e até mesmo nos quintais.
A partir de Tete fizemos incursões e sobrevoos nas nossas áreas de estudo mais afastadas. Foi oportunidade de conhecer regiões muito isoladas onde a população ainda mantém modos de vida tribais. O contato com o resto do mundo e o consumo de produtos alí é mínimo, e as atividades são todas voltadas para a subsistência.
A paisagem em alguns locais é deslumbrante, especialmente nas montanhas, onde o leito do Zambeze forma corredeiras nos cânions rochosos. Cheguei a ver hipopótamos se banhando no rio, onde ninguém se arrisca a nadar por conta dos crocodilos gigantes e traiçoeiros. Coisas da África.
Em Moçambique o Estado é proprietário de toda terra, cabendo a ele conceder seu uso e reconhecer as posses da população nativa. No sertão quase não existem demarcações de terras. Os assentamentos tradicionais acontecem na forma de habitações e roças de subsistência espalhadas pelas savanas. A densidade é muito baixa, mas quase não há áreas desertas.
Nas habitações rurais tradicionais não existe uma "casa", e sim um conjunto de choupanas muito pequenas, isoladas e organizadas em torno de um terreiro, onde sempre existem árvores. Boa parte das construções tem planta circular e tudo é construído em madeira, barro e palha. Em geral uma das choupanas é ocupada pelo chefe do clã, cabendo outras a cada uma de suas mulheres com os respectivos filhos pequenos, outras aos velhos e outras aos adolescentes. Esses conjuntos de construções lembram pequenas tabas e sempre incluem compartimentos separados para banho, silos para grãos, jiraus e galinheiros.
Duas semanas após minha chegada, deixei Moçambique carregando comigo sensações e imagens inesquecíveis, com uma enorme vontade de voltar a esse país irmão e com o qual senti uma grande identidade a partir do pouco que dele pude conhecer nessa viagem inesperada e surpreendente.
sobre o autor
Marcelo Antoniazzi, 55 anos, é arquiteto formado pela FAU-USP em 1974 e Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela COPPE-UFRJ em 1981. Trabalha como arquiteto, urbanista, planejador urbano e consultor ambiental para diversos clientes privados e governamentais. Adora viajar.