Meio dia, Barcelona, esquina de Rambla Catalunya com Gran Via: um grupo de turistas toma o sol mediterrâneo de julho, prometido pelo folheto da agência de turismo alemã. Enquanto isso, um ônibus, entre centenas, inicia seu percurso turístico por uma Barcelona a meio caminho entre "gaudilândia" e o estádio do Barça.
Há vinte anos atrás a cidade estava em obras para abrigar os Jogos Olímpicos de 92. Depois vieram as obras para o malogrado Fórum Universal 2004, a ampliação portuária, o Distrito 22@, o novo terminal aéreo e o sonho de pertencer de uma vez por todas à Europa graças a um trem de alta velocidade. O AVE cruzará pelos subterrâneos da cidade, ameaçando a integridade da Sagrada Família e cortará a fronteira natural dos Pirineus até Perpinyá, capital do Roussillon francês para uns e capital da Catalunha do Norte para outros.A possibilidade de que a obra inacabada de Gaudí caia devido ao túnel do trem de alta velocidade é motivo de piada na escola de arquitetura de Barcelona. A obra parece ter algo de espanhol que desagrada a alguns estudantes catalãs. Talvez as torres lembrem os braços de uma dançarina de flamengo...
"Aixó no és Espanya" [isto não é Espanha], tentam explicar os catalães para os turistas incrédulos e bêbados que passeiam pelas Ramblas cantando "viva Espanha" debaixo de um ridículo sombreiro copiado de um western spaghetti de Sergio Leone; antes seria necessário convencê-los de que isto não é o México. A administração municipal mais de uma vez ensaiou a proibição da venda de souvenires que não estejam vinculados estritamente com a cultura e a tradição catalana. Uma obra difícil e duvidosa que tem em mira, junto com o sombreiro mexicano, castanholas, touros, abanicos e dançarinas de flamengo vendidas nas lojas das Ramblas por imigrantes hindus e paquistaneses que dominam o mercado da área.
Empenhada em encontrar seu souvenir tipicamente catalão, que pudesse acompanhar a camisa do Futebol Clube Barcelona e as miniaturas das obras de Gaudí, a Consejería de Comercio, Turismo y Consumo de la Generalitat realizou um concurso que reuniu cerca de duzentas idéias para genuínos souvenires da terra de Sant Jordi. O resultado trouxe entre outros um adesivo reproduzindo a silhueta de um burrico catalão tradicional dos Pirineus.
O burrico aparece como oposição aos adesivos do touro de Osborne, muito utilizado nos automóveis e em bandeiras de grupos radicais nacionalistas. Este adesivo reproduz em miniatura a silhueta negra das placas metálicas promocionais do famoso conhaque. São peças de 14 metros que se espalharam há cinqüenta anos pelo território espanhol e hoje se conservam alguns exemplares protegidos como patrimônio pelo Estado.
Para uns é a imagem da Espanha mais profunda e genuína, como insinua Bigas Luna em Jamón, Jamón (2002). No filme, o touro de Osborne é cenário para a reprodução dos clichês apaixonados e genuinamente espanhóis representados pelos personagens de Javier Barden e Penélope Cruz.
Para um turista médio europeu esta imagem está ligada ao sonho de férias de verão alimentado desde sua adolescência, num frio e inóspito subúrbio de trabalhadores de uma cidade pós-industrial do norte da Europa.
Sentado na parte superior do ônibus que inicia um circuito pelo centro de Barcelona, ao nosso turista chamará atenção as fachadas dos edifícios em obras cobertos por grandes painéis publicitários, prática que remonta às obras pré-olímpicas da segunda metade dos anos 80.
O projeto Barcelona Posat Guapa que nasceu nessa época é uma espécie de maquiagem reparadora para edifícios com problemas de conservação. Criado no âmbito do Distrito de Ciutat Vella pelo então Regidor, futuro prefeito e atual Ministro da Indústria, Comércio e Turismo, Joan Clos i Matheu, o programa financiava o estudo das cores e a restauração das fachadas dos edifícios de maior visibilidade do Centro Histórico da cidade. Essas fachadas, como ainda hoje, eram cobertas por lonas de proteção que traziam mensagens promocionais da própria prefeitura em prol da melhoria da imagem urbana da cidade. Posteriormente, as lonas passaram também a serem utilizadas para divulgar eventos culturais de instituições públicas ou privadas e, finalmente, passaram quase que exclusivamente a veicular propaganda comercial. Não admira que existam edifícios que estão sempre em obras...
Dolce Gabana, Vodafone, Sony, Vogue, H&M, TIM, Springfield, Motorola, Samsung, Gisele Bündchen... Como nas lojas de souvenires das Ramblas, onde um hindu de sorriso enigmático oferece touros de Osborne e sombreiros mexicanos, nada de genuinamente catalão – excetuando o ânimo de lucro – ocupa as lonas do Barcelona Posat Guapa. Não tardará muito e a Generalitat utilizará o mesmo critério de nacionalização dos souvenires e promoverá um concurso de catalanização das lonas publicitárias emulando um certo tenente-coronel latino-americano.
Enquanto isso não acontece, nosso turista comprará o sombreiro mexicano, a camiseta com o touro de Osborne e, sentado na esquina da Gran Via com Rambla de Catalunya, tomando uma cerveja belga, observará admirado a lona que cobre a fachada de uma loja da madrilenha Cortefiel: na lona, uma bela imagem da topmodel alemã Gisele Bündchen...
sobre o autor
Xico Costa [Francisco de Assis da Costa], arquiteto, doutorado e pós-doutorado pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona. Trabalhou para o Centro de Cultura Contemporánea de Barcelona [1992-2002] e atualmente é Professor Adjunto da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia onde coordena os projetos Visões Urbanas, Atlas histórico de cidades e O lugar da violência