(Julio Cortazar, “Las babas del diablo”)
Em 1988 tive a oportunidade de participar do desenvolvimento do Memorial da América Latina através da participação no grupo de trabalho do qual resultaria a estrutura conceitual daquela instituição. Entretanto, ao perceber o ritmo frenético do canteiro de obras, em turnos que se revezavam dia e noite, ocorreu-me o projeto da documentação fotográfica de sua progressão. Era a maneira prática de dinamizar minha função original, mais ligada a atividades burocráticas. Sem preocupar-me com um acompanhamento técnico convencional procurei, mais livre, a expressão plástica dos projetos. Já nas primeiras tomadas percebi a riqueza das formas encobertas por toneladas de andaimes. Afinal, era um projeto do mestre, Oscar Niemeyer.
O recorte das obras no visor da câmera era arrebatador, surpreendia-me a cada imagem. Mas, foi a interação com os trabalhadores que me levou a enveredar por outros caminhos, romper a fronteira entre a fotografia de expressão e linguagem com o registro de cenários e personagens. A variedade étnica e cultural dos operários, com dominante presença nordestina, despertou-me, contudo, ainda outra abordagem. Passei a colecionar uma grande quantidade de retratos daqueles homens em situação limite - o abandono da família no torrão natal em troca da aventura por um futuro de mais esperança - agravada pela dificuldade de inserção na cidade grande, pela economia do salário reservado para uma volta incerta, pela saudade da família.
Fotografando em diapositivos, passei a montar as imagens sobre monóculos e distribuir entre eles o material não editado. Era minha chave para penetrar no quotidiano daqueles trabalhadores, seus momentos de intenso labor intercalados pela pequena pausa das refeições. Assim, percorri cada etapa da obra, o trabalho noturno, a precariedade das normas de segurança e os riscos assumidos pela necessidade da manutenção do emprego.
Hoje, passados vinte anos, viajo de volta àquele tempo. Como não era ligado a um projeto editorial específico, afora algumas imagens esparsas, o conjunto se manteve inédito. Não realizei sua devolução pública, razão pela qual me sinto em dívida com aqueles operários anônimos, símbolos de tantos outros que continuam a erguer nossas cidades.
Penso na sofisticação técnica das estruturas e do processo construtivo, na elegância sutil dos projetos, suas abóbadas e vãos gigantescos em contraste com aquelas vidas, retirantes crônicos da construção civil, cuja discrepância das escalas se reforça no grande vazio central do conjunto arquitetônico, qual plaza mayor das cidades hispânicas, a se opor ao espaço congestionado da metrópole. Volto também a olhar minha formação, substantivo sem o qual as imagens produzidas não brotariam de modo tão espontâneo, como reação direta à emoção provocada pelas cenas vividas.
sobre o autor
Pedro Ribeiro Moreira Neto é fotógrafo, arquiteto e urbanista.Como fotógrafo privilegia temas sócio-culturais, arquitetura e artes plásticas. Atualmente é produtor cultural, consultor e professor de planejamento urbano e regional no programa de pós-graduação da Universidade do Vale do Paraíbe-UNIVAP