Para fugir da loucura do trânsito e da atordoante multidão de Tóquio, como nos animes, basta atravessar um portal. Pequenos oásis no deserto de concreto urbano, os santuários xintoístas salpicam toda a cidade.
Localizados em terreno elevado, com uma vista privilegiada, esses santuários são generosamente providos de pequenas florestas onde, segundo a crença, escondem-se os deuses locais.
O acesso a esses templos, normalmente coberto por uma centena de pedriscos, induz ao caminhar mais pausado e sonoro que redireciona os sentidos.
Marcada por portais de madeira ou pedra chamados torii e por monólitos com ideogramas chineses gravados em baixo-relevo, a entrada define precisamente o limite entre a cidade e o espaço sagrado.
À esquerda do santuário principal encontram-se fontes de água, onde praticantes do xinto lavam as mãos, simbolizando a purificação de todo o corpo, num ritual lento que introduz em um novo ritmo o turista apressado. Junto à porta do edifício principal há lanternas, guirlandas de papel, talismãs e os koma-inu, mistura de leões e cachorros de pedra que guardam o local.
O santuário, constituído basicamente por colunas e vigas retas de madeira, exibe o contraste com a suave curvatura do grande telhado de pedra ou de cobre esverdeado. Esses espaços compõem um arranjo harmonioso entre arquitetura, objetos e natureza que nos salva, por alguns instantes, do caos circundante.
Sem fundador ou cânone, o xintoísmo é a única religião genuinamente japonesa, diferentemente do budismo, que tem origem indiana e influência chinesa. O xinto, ou “caminho dos deuses”, é uma crença animista com raízes no clima e nas condições naturais do Japão.
Não se trata de uma teologia, mas da força da tradição e da participação nos rituais, pois se crê que “o ritual correto é mais importante que a doutrina correta”. A imensa influência desse pensamento sobre o comportamento e o modo de vida dos japoneses é claramente percebida no cotidiano.
Nos espaços xintoístas são realizadas cerimônias de toda sorte, de casamentos a festivais como o Tanabata, que teve origem em uma lenda sobre o romântico encontro de duas estrelas. Nesse dia o povo escreve seus desejos em tiras de papel colorido, que são amarradas em imensos ramos de bambu para que, poeticamente, alcancem o céu.
Geralmente, ao redor dos complexos existe um típico e animado comércio com casas de chá, sapatarias, lojas de kimono e doces, pequenos restaurantes e até teatro de bonecos. O xintoísmo prefere tratar da vida e deixar a cargo do budismo os funerais e os cultos fúnebres.
Nas grandes cidades japonesas, as áreas verdes que envolvem esses santuários representam oásis preciosos na urbanização densa e caótica. Apesar de à primeira vista serem comparáveis aos parques ocidentais, as áreas arborizadas que circundam os santuários xintoístas simbolizam os locais sagrados das montanhas e têm significado prioritariamente religioso.
A idéia ocidental de parque como espaço verde público e secular, um pedaço do campo na cidade onde podemos passear, foi introduzida no Japão apenas no século XX. Após a modernização do país, outras áreas foram transformadas em parques, mas os santuários xintoístas continuam a ser lugares especiais que mantêm, a despeito do crescimento ininterrupto da cidade, uma atmosfera muito particular que vale a pena ser experimentada.
sobre a autora
Simone Neiva é doutoranda em Projeto de Arquitetura pela FAU/USP, mestre em Arquitetura pela Universidade de Tóquio (2003), pós-graduada em História da Arte e História da Arquitetura pela PUC/Rio (2000), graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFES (1994). Atuou como pesquisadora de arquitetura, urbanismo e cultura japonesa pela Fundação Japão, Tóquio (2006)