Quando se pensa em lazer e/ou turismo hoje, é absolutamente imprescindível levar em conta a questão de sua sustentabilidade, aqui referida não apenas no que diz respeito aos recursos econômicos que o turismo aporta mas também, e principalmente, às suas condições de existência. Uma das muitas correntes de estudo dessa atividade toma como condição de sua exeqüibilidade a chamada base local, ou seja, as condições materiais e imateriais existentes nos lugares onde o processo de turistificação (e o de lazer da população local) será exercido. Todavia, o chamado turismo de base local vai utilizar esta base material (muito utilizada) e imaterial (menos utilizada) para ser realizado, através dos elementos que identificam os lugares. Ora, sabe-se que objetos arquitetônicos, espaços urbanos, atrações naturais ou artificialmente criadas são (mais ou menos) importantes, visto que atraem moradores e turistas.
Pretendo fazer algumas considerações acerca de alguns elementos igualmente importantes, pois completam a identificação da ambiência dos lugares dedicados ao lazer e ao turismo. Trata-se principalmente dos tipos de criação, apropriação ou uso da cidade feitos pelos seus próprios moradores.
Sua finalidade é empreender um processo de aprofundamento (um outro e mais profundo olhar) do conhecimento acerca do patrimônio de um lugar (seja para os próprios habitantes locais ou não). Para tanto, deve-se estar consciente da necessidade de uma boa compreensão e do reconhecimento do que compõe o patrimônio territorial que está ligado aos lugares que estruturaram e estruturam uma cidade.
Alguns procedimentos metodológicos precisam ser seguidos: o levantamento do potencial da área, uma análise de suas implicações, principalmente no caso da implantação de qualquer processo de requalificação do lugar, e do impacto que ele vai gerar na ambiência local já existente. Assim, faz-se necessário um conhecimento mais profundo dessas ambiências, dos elementos que compõem a vida cotidiana dos cidadãos e da sua complexidade, dos elementos oriundos do passado, mas também daqueles que são fabricados no presente e dos desejos e necessidades desses grupos sociais, ou seja, de uma leitura e de uma interpretação baseada nesses grupos e nos indivíduos que deles fazem parte, pois eles são os geradores de um processo dinâmico de criação-recriação do lugar no tempo.
Cada grupo social que viveu ou vive em um lugar deixou ou deixa nele suas marcas – algumas o tempo leva, outras permanecem com ou sem significado para as atuais gerações, algumas permanecem mesmo na memória oficialmente estabelecida, outras permanecem na memória afetiva das pessoas que usam os lugares cotidianamente, lugares cujos segredos só elas detêm e que carregam claros ou secretos significados.
Essas marcas ou sinais podem apresentar-se de diversas maneiras. Algumas foram “cristalizadas” com o rótulo de patrimônio cultural e compreendem os bens (móveis ou imóveis) tombados, preservados ou tutelados que compõem um repertório oficialmente estabelecido e passível de guarda. Outras marcas ou sinais, porém, vivem apenas através da memória ou vivência das pessoas. São suas experiências de vida, suas histórias e estórias, que foram marcadas por objetos, signos, lugares, paisagens, odores, cores, ventos, vozes e acontecimentos, elementos aparentemente insignificantes, mas que denotam uma parte consideravelmente grande e importante de suas vidas e do afeto que a cidade (e o lugar, principalmente) inspira em cada um que vive ali.
Esses elementos reunidos compõem a ambiência cotidiana a que estão submetidos os habitantes de cada lugar. Bela ou não, positiva ou não, ela se impõe pela maneira e pela freqüência com que cada cidadão (e cada grupo social) se relaciona com ela, pois uma íntima relação espaço-temporal com um lugar afeta a capacidade de percepção dos objetos e ambientes que o compõe e a de seleção e fixação destes na memória de quem usa (mais ou menos) o lugar e de quem o visita também. Logo, é preciso antes perceber a cidade, selecionar os elementos que cada pessoa ou grupo considera como importantes e que formam a identificação do lugar que, agregada à freqüência de uso e à profundidade desse conhecimento, provoca o sentimento de pertencimento ao mesmo – dando-lhe sentido. Assim, o que diferencia a memória de uma caótica justaposição de elementos é que a memória tem sentido, ou seja, ela impõe uma ordem, uma organização. Acima de tudo ela é o relato, uma narração de um povo. É por isso que existe uma tarefa constante de identificação e de desidentificação segundo as mudanças dos parâmetros encontrados nos objetos que compõem a ambiência cotidiana e o modo de vida dos grupos sociais que se implantaram nos lugares.
Como diz Anthony PaulKerby, “elegemos a história a cada dia do presente, sempre dentro de certos limites. O passado impõe limites às possibilidades de reinterpretar o presente que, ainda são acrescentadas dos próprios limites do presente e do desejo de aspirações ao futuro” (Narrative and the self. Indiana University Press, 1991, p. 76-77). Portanto, será preciso um esforço maior para compreender a ambiência/modo de vida e captar seu sentido para o grupo social em questão, que usa/recria o espaço e o tempo à sua maneira, de modo a que o visitante consiga perceber de forma mais clara e menos deformada possível as características identificadoras do lugar. Assim, como componentes essenciais da ambiência de um lugar devemos considerar também:
– A história pública composta dos edifícios ricos ou pobres, de construções famosas e insignificantes, mas que dão um sentido de lugar mais participativo, o que Donald Olsen (The city as a work f art. Yale University Press, London, 1986, p. 89) chamou de história corporizada, como os velhos e novos centros urbanos – a arquitetura de todos os tipos com a sua escala e as suas variações no tempo, em termos de formas, volumes, cores, uso e re-usos – como uma verdade mutável;
– A história territorial das crônicas e documentos oficiais e as histórias parciais (de classe, de grupos étnicos, de mulheres, de velhos, de crianças), as histórias verdadeiras e os mitos;
– Os personagens que ali viveram e vivem;
– Os traços espacializados da memória que variam de época a época – traços importantes e traços humildes, memórias de que se quer lembrar – como certas árvores, ruínas, etc.;
– A ruas e seus traçados, os itinerários cotidianos e a freqüência aos mesmos;
– O mobiliário urbano;
– A publicidade;
– A estatuária, os monumentos, as formas de arte, os ícones;
– Os atributos naturais como os ventos, o relevo, o clima, a temperatura, etc.;
– Os elementos criados na vida cotidiana do Homem como os odores (agradáveis ou não), os sons (vozes, ruídos, barulhos étnicos ou oriundos de atividade dos grupos sociais), as texturas, etc.;
– Os nomes, pois eles são as primeiras marcas do lugar, e suas mudanças no tempo.
Todos esses elementos criam as ambiências que ficam na memória dos moradores e dos visitantes de uma cidade ou de um bairro. Muitas vezes a cidade trata essas ambiências, elegendo as mais convenientes para si, expurgando as ambiências cotidianas de conteúdos indesejáveis ou potencializando alguns aspectos, mas sem levar em conta que esses conteúdos ou aspectos podem possuir significados importantes para os que a habitam. Outras vezes a cidade possui uma imagem confusa, mesmo inconveniente, e a busca de novas imagens mais de acordo com a política de seus governantes (do que com os desejos de sua população) tem levado à sua remodelação.
Em face de leituras excessivamente standartizadas das cidades (como em muitos circuitos, guias oficiais e trajetos turísticos), o conhecimento da ambiência cotidiana dos cidadãos, de seus significados e dos seus desejos de mudança é o elemento mais importante na definição de um lugar.
O processo de requalificação de um lugar, segundo Alexandre Tzonis e Liane Lefaivre (Architecture in Europe since 1968: memory and invention. London, Thames and Hudson, 1992, p. 102), passa pelo jogo de re-potencialização do poder simbólico contido nas ambiências que compõem a cidade, pois cada elemento re-conectado reforça ou refaz as recordações – ou seja, a cognição e a seleção dos componentes que entrarão na memória. A requalificação passa por um estranhamento da ambiência cotidiana, que, no entanto, deve partir dos elementos da identidade do local, realçando-os ou reinterpretando-os, mas, sempre, levando em consideração aqueles que lhes dão significado – os moradores.
Para tanto, é preciso identificá-los e oferecer ao olhar cotidiano (e também ao do turista) a oportunidade de estranhá-los, re-apreendê-los e re-integrá-los na experiência do cotidiano e/ou da visitação. Esse estranhamento faz com que as pessoas se tornem conscientes das condições de suas vidas, iluminando as coisas familiares de outra maneira e ordem.
Assim, mais importante que a criação de um cenário, que será um mero espetáculo para o visitante, é preciso enriquecer a experiência sensorial e afetiva do morador, fazendo-o reconhecer o lugar onde vive, reforçando experiências e usos, criando passagens, umbrais, direcionando o olhar, recolando elementos fragmentários, dando estrutura e unidade ao todo, realçando a identidade do lugar ou dando-lhe uma nova interpretação compositiva que leve em consideração os desejos e as necessidades dos seus usuários (moradores e visitantes), reforçando a cognição, o conhecimento, o uso e o afeto que os moradores têm pelo lugar e permitindo ao visitante apreender essa situação.
sobre o autor
Angela Maria Moreira Martins. Arquiteta e Urbanista. Professora e Pesquisadora do PROARQ / Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFRJ. Doutora em Arquitetura da UFRJ. Doutora em Planejamento Urbano pela Universidade de Paris X e Pós-Doutora em Turismo e Desenvolvimento pela Universidade de Paris I Panthéon - Sorbonne