Qual seria um roteiro para um turista arquiteto pela arquitetura paulistana?
Há muitos formatos e temas possíveis. Sugiro um roteiro que pode ser elaborado a partir da evolução dos estilos e das técnicas construtivas e associando-as com habitações unifamiliares, passando por taipa de pilão, taipa de mão, tijolo, concreto armado, etc.
Em pedra, não temos nada. Começando por casas bandeiristas, de taipa de pilão, como a Casa do sertanista do Caxingui, a do bandeirante no Butantã, a do Sítio da Ressaca, há também uma em Santana e outra no Tatuapé. De taipa de mão, pode ser a Casa do Grito, no Ipiranga.
De tijolos são os palacetes dos fazendeiros do café, as casas de classe média, em vários estilos do começo do século XX, neocolonial, hispano-americano, normando, todos em paralelo ao neo-clássico.
Temos belíssimos exemplares de art déco, que até merecem tombamento, na rua Ceará em Higienópolis, por exemplo, e em concreto armado, os destaques são as casas do Artigas e Paulo Mendes da Rocha.
Outro roteiro seria pelo bairro da Luz onde arquitetos interessados na requalificação de edifícios antigos poderiam, inclusive, apreciar instalações museográficas interessantes, como aquelas no Recolhimento da Luz, onde se instalou o Museu de Arte Sacra; a Pinacoteca do Estado, no primitivo edifício do Liceu de Artes e Ofícios; o Museu da Língua Portuguesa; a Estação Pinacoteca no antigo D.O.P.S.
Depois, há a Sala São Paulo, dedicada a concertos e apresentações musicais, instalada na velha Estação da Sorocabana, projeto de Christiano das Neves; o Quartel da Força Pública, de fim do século XIX, projeto de Ramos de Azevedo, também autor do edifício da atual sede do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís; e a igreja de São Cristóvão, anexa ao que sobrou do velho Seminário da Luz.
É possível conciliar preservação e turismo?
Para que o turismo persista, é necessária a preservação dos bens culturais que o incentivam, pois o Patrimônio que atrai viajantes curiosos é um capital a atrair dividendos; não preservá-lo significa um prejuízo à economia e sociedade locais.
Muitos não percebem esse perigo aceitando um turismo predador, mal cuidando de seu patrimônio cultural e aceitando o mau uso e o aviltamento das áreas envoltórias dos monumentos. Mau uso de bens arquitetônicos neles instalando programas inadequados ou então, neles, superpondo atuações conflitantes.
Certa vez o nosso amigo professor Ulpiano Bezerra de Meneses deu-nos um exemplo dessa má conjuntura quando mencionou a descompostura passada por um guia, acompanhado de turistas japoneses, a uma senhora que, com toda a devoção de sua fé, rezava frente a um altar de catedral gótica na França.
Aquele profissional demonstrador de belezas, simplesmente reclamou do estorvo que ela representava na livre circulação do grupo de turistas embasbacados. Nessa hora vemos que os limites entre as atrações diversificadas são de difícil administração face às conveniências envolvidas. Não só a catedral, a obra de arte tangível, deverá ser preservada mas, também, o programa original a ela pertinente, mas esse fato não exclui a possibilidade da visita turística. Acordos mil são possíveis. Em qualquer caso, em qualquer hipótese com lucidez todos ficarão contentes.
Quais usos propor para edifícios de valor histórico?
Tirante as igrejas históricas, que até hoje atendem ao seu programa de necessidades original, os demais edifícios participantes do nosso Patrimônio Arquitetônico têm as suas funções primeiras extintas. Como reaproveitá-los? Esse é um grave problema que requer uma pertinente análise crítica dos méritos arquitetônicos e das singularidades espaciais ou volumétricas da construção decorrentes da programação primeira.
Daí, a possibilidade da constatação daquilo que seja intocável e daquilo que possa sofrer intervenções tendentes ao acolhimento do novo programa. Podemos dar um exemplo desse bom procedimento; é o caso da Estação da Luz em São Paulo.
Verificou-se que todas as acomodações referentes aos escritórios da administração ferroviária, situados nos andares elevados componentes da fachada principal, eram absolutamente dispensáveis ao novo sistema de transporte coletivo ali vigente.
Esse fato permitiu a demolição de sucessivas paredes separadoras de inúmeros gabinetes de trabalho burocráticos lá inexistentes, fazendo surgir imensos espaços destinados ao bem-vindo Museu da Língua Portuguesa. Os poucos adendos destinados à facilitação da circulação vertical em nada feriram a integridade da portentosa estação do tempo do trem de ferro fumarento.
O que pensa do tombamento dos bens imateriais?
Eu acho que a instituição do Patrimônio Imaterial veio tarde porque, desde os primeiros dias do IPHAN esse assunto já deveria ter sido tratado conforme o anteprojeto de lei elaborado por Mário de Andrade, que cuidava de todo o nosso Patrimônio Cultural. Motivos vários fizeram com que, em 1937, somente artefatos em geral de ordem histórica ou artística fossem escolhidos para habitar os recém criados Livros de Tombo. Somente bens tangíveis, sobretudo os arquitetônicos. Temos que entender que nossa cultura é sui generis devido ao fato de termos sido uma colônia desenvolvida longe da matriz européia, ibérica ou portuguesa. Aqui houve necessariamente saudades, adaptações ao meio e sincretismos variados. Surgiu uma “condição americana” plasmando sociedades peculiares, no México, no Peru, no Paraguai dos jesuítas, às margens do rio da Prata e no imenso território brasileiro. Falemos da sociedade daqui porque o Brasil é que nos interessa. Nos processos de adaptação, o fato primordial foi a miscigenação, formando mamelucos, caipiras, pardos, mulatos e brancarões povoando as ilhas do nosso peculiar arquipélago cultural até a chegada da corte portuguesa em 1808.
Depois disso, houve o início da migração sistemática de colonos brancos pelo Brasil afora, o que, a nosso ver, veio a propiciar um segundo ciclo cultural. Aqui entre nós, a economia cafeeira, por exemplo, provocou modificações incríveis no cotidiano de todos. Em 1900, na passagem do século, em nossa capital, mais de 43 % da população eram de italianos. Daí as diferenças entre São Paulo e Salvador, por exemplo. Nesses lugares, as ocorrências culturais, que se manifestam em produtos imateriais, são derivadas de sincretismos diversos aparecidos em tempos diferentes. Daí a variação entre o acarajé da cultura baiana, vindo do tempo de Colônia e a pizza paulista trazida há 150 anos trazida pelo café, nesse segundo ciclo a que me referi. Penso, contudo, que agora devemos privilegiar e tombar o bem cultural imaterial definido no tempo de Colônia e presente entre nós até hoje. A macarronada fica para depois.
O pão de queijo é mineiro?
Passa por mineiro, porque houve uma publicidade a respeito, mas tem muita coisa que estão registrando em matéria de comida que ninguém sabe bem quem fez primeiro ou qual é sua origem.
O pão de queijo é sem dúvida alguma feito de polvilho, que foi uma contribuição portuguesa à produção indígena dos derivados do milho, porque a única coisa que índio não sabia aproveitar do milho era o polvilho vindo com o sumo da mandioca, que se perdia. Foi o português, usando a prensa de espremer azeitonas, que aproveitou o novo produto, fazendo decantar o polvilho, e dessa contribuição surgiu nova culinária doceira. Mas esse sistema de obtenção do polvilho e o seu uso foram comuns no Brasil inteiro.
Tem pão de polvilho sem queijo, tem o biscoito só de polvilho e até no Piauí tem o pão de queijo à moda mineira, que se chama rosca. A receita leva polvilho doce, leite, óleo, ovos e queijo ralado, só que lá se assa tudo numa forma de bolos e em Minas é que fazem bolinhos. O aspecto é diferente, porém as proporções dos ingredientes variam pouco. Enfim, a gente percebe que precisa ter um registro mais amplo das variedades existentes no Brasil afora de uma receita ou de determinada música, com determinado acompanhamento.
Quais bens imateriais gastronômicos paulistas têm uma história interessante?
Eu citaria alguns pratos fundamentais nossos e também as maneiras de se fazer paçocas, tanto as salgadas como as doces, os doces de amendoim. Os índios, os colonos, os paulistas, os bandeirantes conheciam variedades incríveis de doces de amendoim que nós nem sabemos mais como foram. O arroz e feijão não são fundamentais ; não são, culturalmente falando, de interesse maior, porque para mim a validade do registro dos bens imateriais estaria nas soluções sincréticas daquilo que é próprio do Brasil.
Há uns 30 anos atrás eu vi uns caboclos lá na zona rural de Iguape fazendo um doce a que chamam de “coruja”. Era a farinha de mandioca misturada meio a meio como se fosse uma paçoca com algum ingrediente qualquer que não me lembro mais qual era. Enfim, faziam uma massa, enrolavam-na em folha de bananeira e punham no forno. Eu provei a tal “coruja” que tinha gosto de amendoim, não era um doce gostoso, daquele que você queira repetir.
Será verdade que tudo que é de pobre é ruim e o que é gostoso é de rico ? Tem o furrundum, para citar mais um exemplo, que a gente comia em antigas fazendas, um doce antiqüíssimo, de cidra com rapadura e um pouco de gengibre; são receitas que precisam ser salvas, importantes de se registrar. E o cuscuz-paulista, foi inventado aqui e batizado com o nome berbere via linguagem do Algarve? Ou chegou a receita pronta, tendo sido o trigo trocado pela farinha de milho ? Pensamos que seja merecido o seu registro.
O que seria “Patrimônio Americano”?
Há sem dúvida um patrimônio arquitetônico decorrente daquela “condição americana”, que acabo de mencionar. Sem dúvida, tal conjuntura própria dos tempos de Colônia condicionou de modo marcante nossas construções devido a condicionantes locais na definição de programas de necessidades; no aproveitamento dos recursos oferecidos pelo meio ambiente e na obediência a normas vigentes, tanto laicas como de fundo religioso próprias da função catequética sobretudo.
As novas condições e os sincretismos marcaram nossa produção arquitetônica de modo indelével. Apesar da atual globalização, ainda hoje há resquícios da brasilidade em nossas construções, pois apesar da massiva migração recebida, sobretudo em São Paulo, nossa cultura antiga foi dominante.
Enfim, vimos insistentemente, nas comemorações dos quinhentos anos da descoberta da América por Colombo, críticos, historiadores e editoras ávidos em localizar a produção artística, principalmente a arquitetônica, que mostrasse ao mundo aquilo que a América poderia devolver com singularidade à Europa, a sua matriz cultural.
Eu gostaria muito de escrever uma história da arquitetura brasileira descrevendo as conseqüências daquelas mencionadas condições americanas vistas concomitantemente ao longo do tempo, pois o método vigente de privilegiar os ciclos econômicos ou a sucessão de estilos nunca dão uma visão global daquilo que estaria ocorrendo no país em dado instante.
sobre o entrevistado
Carlos Alberto Cerqueira Lemos, arquiteto, é professor titular e livre-docente da FAU-USP. Membro do Icomos, foi diretor do Condephaat e membro do conselho consultivo do IPHAN. Chefiou o escritório de Oscar Niemeyer em São Paulo, na década de 1950. Desenhou os loteamentos da praia Vermelha em Ubatuba e Mirim Açu em Ibiúna. É autor de Cozinhas, etc., Arquitetura brasileira, O que é patrimônio histórico, Dicionário da arquitetura brasileira, com Eduardo Corona, Alvenaria burguesa e Casa paulista. Está concluindo o livro Patrimônio: setenta anos em São Paulo