"Sabedoria é encontrar o final da jornada em cada passo do caminho". (Ralph Waldo Emerson)
“Uma aventura!”. A frase traduz a inexorável impressão dos amigos a quem contávamos nossos planos de ir de carro desde Florianópolis até o deserto de Atacama. Mas nós estamos muito mais para Derzu Uzala do que para Indiana Jones. Não costumamos incluir peripécias em nossos objetivos. E embora as possibilidades de algo desagradável ocorrer sejam maiores do que numa viagem a Paris ou Campos do Jordão, se pudermos viajar sem derrapagens à beira de abismos, sem enfrentar atoleiros ocultos atrás de curvas fechadas ou encarar algum caminhoneiro tresnoitado numa errática trajetória oscilando entre a pista dele e a nossa, tanto melhor! Numa viagem como esta, asfalto, hotéis limpos e comida fina são tão desejáveis e procurados como em Viena, Bruges ou Gramado. Obviamente, não encontrar uma, duas ou todas essas qualidades faz parte do pacote! Por outro lado, não temos a intenção de definir o que é certo ou errado, melhor ou pior, nessa ou naquela forma de viajar. O objetivo destas linhas é apenas o relato de uma inesquecível experiência!
E, talvez com uma dose de pretensão, sugerir formas mais eficientes e proveitosas de perceber a beleza à sua volta, muitas vezes oculta pela pressa, por horários desnecessariamente rígidos ou pela escolha do transporte inadequado! Bem, dito isso, vamos aos fatos. E às fotos! A viagem por rodovia em veículo próprio, com itinerário e cronograma flexíveis, ou ainda melhor, indefinidos, tem a vantagem de proporcionar total liberdade. Nenhum pacote turístico permite que o tempo do viajante para apreciar qualquer aspecto da viagem seja superior ao do cronograma, estabelecido antes e arbitrariamente! Em outras palavras, as agências decidem de quanto tempo você precisa para desfrutar de algo! Viajando em seu carro há óbvios benefícios, dos quais destacamos alguns, iniciando pela possibilidade de parar por mais tempo, em qualquer lugar, poder olhar com calma e acuidade cada detalhe que nos cerca. Quantas vezes fomos para o acostamento ou desviamos por pequenos caminhos porque havia uma floração vistosa (Peltophorum dubium), um curioso perfil topográfico, um belo fundo de vale (Quebrada de Humahuaca), uma simpática vila (Purmamarca) ou uma inusitada forma de erosão (Garganta del Diablo).
Estas numerosas paradas, às vezes de apenas poucos minutos, enriquecem a forma de apreciar e ajudam a entender as formas, cores, texturas e outros aspectos de um panorama. Mas se você está num ônibus ou trem, que apenas passa pelas atrações, terá um vislumbre, a sensação de que acha que viu algo belo ou interessante, como que iluminado pelo fugaz e inesperado clarão de um flash. Ficará somente a frustrante sensação de como seria bom ver mais, poder parar ali e “entrar” calmamente no cenário, até fazer parte dele. Rodovias podem servir para ir de um local a outro, quando o objetivo é chegar ao destino. Servem também como formas de acesso a belezas indescritíveis, se o espírito do viajante não estiver predisposto apenas a concluir a viagem, mas, ao contrário, prolongá-la ao máximo, parando quando quiser, saindo do carro e caminhando e se deslumbrando por um ou dois minutos, por uma ou duas horas ou até por um ou dois dias. Assim é possível observar toda a natureza que se estende diante de seus olhos, no seu tempo, sem ruídos e correrias, percebendo as feições que provocaram a sensação de beleza, de mistério, de curiosidade, de admiração.
Outra possibilidade enriquecedora é observar as transições entre diferentes paisagens, às vezes suaves, preparando gradualmente o deslumbramento, como numa sinfonia em que pequenos segmentos insinuam a melodia que se debate para, pouco a pouco, surgir em todo o seu esplendor; ou a mudança abrupta, provocando surpresa e incredulidade! Após uma curva, surge um improvável salar ou uma surpreendente laguna. Suas margens claras ferem o olhar e contrastam com o azul do céu, da água e as multivariadas tonalidades dos solos, fazendo fundo à brancura do sal ou da neve nos cumes longínquos. E, aproveitando a metáfora musical, o sinuoso traçado das estradas nas regiões montanhosas faz da paisagem variações sobre um mesmo tema, quando permite que olhemos as montanhas em seus mais diversos ângulos, delas nos aproximando e afastando, vendo as em seus diversos perfis. Cruzamos os Andes em dois diferentes pasos, o de Jama, na ida, rota convencional asfaltada, de quem vai de San Salvador de Jujuy (Argentina) para San Pedro de Atacama (Chile), e o de Sico, na volta, sem pavimentação e mais ao sul, voltando à Argentina por Toconao, Socaire (Chile) e Santo Antonio de los Cobres (Argentina), em direção à simpática cidade de Salta.
Duas rotas, duas sensações que não podiam ser mais distintas. Na primeira, postos de abastecimento, vaivém de carros, caminhões e motos, pequenas cidades, hotéis. Na outra, o ninguém absoluto, nenhuma construção, nenhum tipo de veículo indo ou vindo, num trecho de 350 km. Poderá pensar o leitor: “Se isso não é aventura...”. Pode ter sido!
Mas não intencional, o que explica a contradição. Tínhamos informação segura de que a estrada pelo Paso de Sico estava em boas condições e com movimento normal de veículos. Apenas não avisaram que o normal, ali, é zero!
Notamos a ausência de movimento quando já não havia muitas opções a não ser seguir em frente. Quando percebemos a solidão, ela já era parte das paisagens! E que paisagens!
Talvez a menos impactante das atrações do Atacama seja a cidade de San Pedro, embora muito simpática, com seu ar de oásis e arquitetura típica. Depois de conhecê-la, ali queríamos apenas comer, descansar, olhar e-mail – que ninguém é de ferro – ou tomar um revigorante banho para, no dia seguinte, entrar de novo no deserto.
As atrações da área mais seca do planeta estão à volta da cidade, em quase todas as direções. Algumas, mais próximas, outras mais distantes, todas relacionadas com as formas da terra, suas cores e texturas – gêiseres, lagunas com flamingos, montanhas, altiplanos – ou com sítios arqueológicos, marcas deixadas pelos incas e outros povos mais antigos, aldeias com 2.000 anos, sepultadas pela fuligem expelida pelos vulcões, e fortificações nas encostas, aproveitando a visão de cima, como estratégia de defesa. Daí tem-se também belas visões dos salares, dos oásis e das extensas dunas em rampa, cinzas que descem dos vulcões da Cordilheira.
Poderíamos nos deter mais detalhadamente em uma aprofundada descrição do Vale da Lua (foto 16 – Vale da Lua), por exemplo. É tentador, claro, mas não nosso propósito elaborar textos desta e de todas as atrações atacamenhas para turistas, pois cada um deles tem sua própria forma de olhar e observar. O objetivo maior aqui é um simples convite: observar de forma mais profunda as paisagens e ver em sua plenitude as belezas que uma viagem nos reserva. Para tanto, escolha uma forma de viajar que lhe permita usar sua própria escala de tempo. Experimente esta sugestão num roteiro curto, de um ou dois dias. Não empenhado em chegar ao seu destino, mas parando a qualquer momento em que algo lhe desperte sentimentos de beleza, de espanto ou mesmo de simples curiosidade, será surpreendente perceber como o tempo pode se esticar até que você se dê por satisfeito. Aí está a diferença entre um efêmero deslumbramento e uma leitura mais aprofundada da paisagem.
Certa vez, estando em Ushuaia, Argentina, vimos chegar um navio de cruzeiro, que atracou por seis horas. Seis horas! Será que os turistas que desembarcaram por tão pouco tempo acreditam que estiveram em Ushuaia? Classificar tal visita como fast seeing não seria nenhum exagero. E os arredores? E a periferia? E os Andes, por trás da cidade? Nesse caso, é inevitável a imagem do relógio de ponto! A pessoa desce do navio, dá uma rápida volta na cidade e... re-embarca! E o pior, acreditando que esteve lá!
Assim como certa vez imaginei um restaurante slow food, em que o objetivo seria prolongar ao máximo o comer e conversar com os amigos, convido o leitor a experimentar um slow seeing, isto é, uma viagem sem relógios, em que permanecer num lugar ou seguir viagem seja definido pela ampla satisfação de todos os seus sentidos e a indescritível sensação de que, naqueles momentos, você pertenceu à paisagem que admirava.
nota
[sobre o Atacama, ver o artigo “São Pedro do Atacama”, Chile, de José Carvalho Góes]
sobre o autor
José Tabacow é arquiteto paisagista, formado pela FAU-UFRJ, especialista em Ecologia e Recursos Naturais pela UFES e Doutor em Geografia pela UFRJ. É professor das disciplinas de Paisagismo e Coordenador da Pós-graduação em paisagismo do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNISUL. Possui um arquivo fotográfico com mais de 20.000 imagens de paisagens, principalmente do Brasil. As fotos deste artigo são de sua autoria e de Cintia Chamas