Fui para Cabo Verde em agosto de 2006 por conta de um convite de uma amiga, fã incondicional de Cesária Évora. Ela soube que no mês de agosto acontecia em Mindelo, o Festival de Música da Baia das Gatas e que Cesária Évora sempre participava do evento. Topei ir com ela por pura curiosidade de fazer a travessia do Oceano Atlântico a fim de conhecer um pouco mais do nosso continente irmão, a África.
Para se chegar a Cabo Verde, pegamos um avião em Fortaleza. Há vôos semanais das linhas aéreas cabo-verdianas para a capital, Praia. No embarque, logo percebemos a intimidade e aproximação entre o Brasil e Cabo Verde. Na fila estavam inúmeras sacoleiras que compram mercadorias no Brasil para revender lá. Aliás surpreendeu-me muito ver na TV local de Cabo Verde vários canais brasileiros. Na fila de embarque havia também jovens estudantes que retornavam de férias à terra natal.
Um dado interessante sobre os cabo-verdianos é que grande parte da população não mora no arquipélago, vive na diáspora. Muitos estudantes espalham-se pelo mundo como bolsistas. O Brasil, é um dos destinos atuais destes jovens.
Na cidade de Praia, que fica na maior ilha de Cabo Verde, Santiago, encontrei gente formada na Polonia, Russia e etc... O que me parece algo muito interessante, quando se pensa que parte desta população começa a voltar para seu pais e contribuir com a construção de seu futuro moderno.
Nós chegamos na cidade de Praia de madrugada, pelas três horas da manhã. Lá do alto não se via nada. Todas as luzes estavam apagadas e apenas se percebia a sinalização da pista de aterrissagem.
Logo descobrimos que a escuridão e também o barulho de geradores que escutamos ao chegarmos no hotel bem no centro da cidade, resultavam de um black out que já durava um mês. Um mês pra mim era uma eternidade. Mas para eles, e pelo que vi nas ruas no outro dia de manhã, apesar de ser muito desagradável, a constante falta de energia já havia sido incorporada a rotina da população de Praia. Nunca vi tantos geradores barulhentos enfileirados numa mesma calçada. Estávamos de fato na África com todas as suas limitações, incertezas e adaptações locais.
Durante o dia resolvemos sair do centro, o Plateau, e descer a colina da área central da cidade, a região mais antiga, para conhecer o mercado de Sucupira, que nada mais é do que uma grande feira de roupas, tecidos, alimentos e serviços. Descendo as ladeiras da cidade de Praia, sentia-me um pouco em Salvador. Crianças brincavam nas ruas e as casas, quase feias, enfileiravam-se desordenadamente formando os caminhos.
Ao chegar na feira de Sucupira um bafo quente nos pegou a medida que entrávamos. Toda coberta de barracas ao longo do dia seus corredores tornam-se uma verdadeira estufa. Apesar do calor, lá dentro um mundo de áfricas se revela também. Tecidos do Senegal, coloridos e de desenhos variados, roupas prontas e costureiros prontos para fazer uma vestimenta para o cliente interessado. Misturado ao comércio de tecidos e roupas, mulheres arrumam seus cabelos. Muitas trancinhas dos mais variados formatos decoram a cabeça das cabo-verdianas e senegalesas. Elas ficam ali amontoadas, rindo e por horas deixando-se fazer a cabeça. Dá vontade de fazer também, mas não é fácil entrar na roda delas. Nada de fotografias e muito menos gentilezas com as curiosas estrangeiras brasileiras.
O crioulo é a lingua local de Cabo Verde, uma mistura de português com africano. E teve sua origem na própria ocupação do país, totalmente voltado para o comércio de escravos oriundos do continente africano. Ali se fixaram antigos senhores portugueses e negros caçados. Desta mistura e convivência formou-se uma língua comum que é totalmente oral e com acentos diferentes conforme a ilha do arquipélago. Para nós de fala portuguesa, alguma coisa dá pra entender do crioulo, mas a maior parte do que falam é indecifrável.
Depois de comprarmos alguns tecidos, saímos da feira e fomos comer num shopping bem ao lado dela, “Nós África”. A decoração do restaurante é algo que representa a nossa África imaginada, leões, leopardos, elefantes e etc..., depois de conhecer várias ilhas de Cabo Verde, acho engraçado esta primeira apresentação da África que estava desenhada na parede do restaurante.. Os grandes animais denunciavam um descompasso do nosso imaginário ocidental de uma África selvagem, repleta de bichos e matas densas com a paisagem real do que víamos do “Nós África”, uma extensa área de casas e edifícios em construção, numa região quase toda árida.
Nos outros dias em que ficamos na cidade de Praia, fomos conhecer melhor a ilha de Santiago e vimos muitos dos resquícios da escravidão que permanecem na região e estão sendo recuperados para a visitação turística. Ao longo do percurso pela ilha, não vi nada de rios, nada de água doce, apenas pedras, leitos secos e uma vegetação baixa. Nosso guia local, um cabo-verdiano casado com uma mineira, falou muito da reconstrução de Cabo Verde, e de uma certa falta de compreensão dos observadores externos com o desenvolvimento da África como um todo. Nunca vou esquecer a frase que ele disse: o ocidente tem que ter paciência com a transição e modernização da África.
Pegamos novamente o nosso fiel avião das linhas aéreas cabo-verdianos e fomos para uma outra ilha, Sal. Desta vez era dia, e deu pra ver muito bem a ilha de Sal. Do alto ela era totalmente branca, com algumas elevações aqui e ali, e quase nada de vegetação.
Sal é uma das ilhas mais turísticas de Cabo Verde. Há vôos da Europa diretamente pra lá por conta das praias e dos mergulhos. Há muitos hotéis margeando as praias.
Resolvemos descobrir um pouco do que não era praia e fomos dar uma volta na região das antigas salinas da ilha e a cidade dos trabalhadores. Em sua maioria, todo mundo que vive na ilha depende do turismo. Nos dividimos em aproveitar a praia, as águas transparentes, e conhecer as antigas salinas.
Partimos da ilha de Sal para Mindelo, onde seria o festival. Mindelo fica na ilha de São Vicente e talvez seja o centro mais cultural de Cabo Verde. A cidade tem um clima de Havana. Há uma vida noturna intensa em Mindelo, assim como um mostruário arquitetônico bem diverso das outras ilhas que conhecemos. Me diverti registrando fotos de casas, quiosques e letreiros que compõe o universo visual da cidade.
O Festival da Baia das Gatas, acontece há 10 quilômetros de Mindelo e parecia que as 9 ilhas de Cabo Verde resolveram aportar na cidade para ir ao evento. Para se chegar lá havia duas possibilidades, pegar um taxi ou ir de microônibus com os cabo-verdianos. Optamos pelos microônibus e foi muito divertido ver a animação deles diante do festival.
A Baia das Gatas é uma praia bem extensa que na época do Festival fica cheia de barracas de comida e um palco enorme. Tem gente que acampa na praia, os mais velhos levam cadeiras e famílias inteiras desfrutam do clima quente das noites cabo-verdianas do início de agosto.
A música vai tomando a platéia que começa a dançar e repetir as letras mais conhecidas. Achei muito engraçado algumas danças que pareciam misturar o fado português com um tipo de aproximação corporal que tinha a ver com algo próximo do nosso forró, mas que ficava mais perto da África, os corpos se batem e se distanciam rapidamente.
A música, a maioria cantada em crioulo, além de contagiante, também revelava um certo orgulho das ilhas. Os músicos chamavam repetidamente pelas nove ilhas e o povo respondia, mostrando sua presença.
Experimentamos as danças, a comida das barracas e trouxemos muitos cds crioulos para casa como Lura, Maria de Brarros e Césaria Évora.
Santo Antão, foi a última ilha que visitamos. Fica bem próximo de Mindelo e fomos de barco para lá. Ao contrário das outras ilhas, Santo Antão tem uma vegetação maravilhosa. Repleta de montanhas e casas antigas que parecem estar sendo engolidas pela natureza. A cidade acaba e começa no porto. É de lá que chegam os peixes e que partem os homens. As ruínas nos arredores carregam nas marcas da escravidão, mas se não fossem as ruínas, diria que Santo Antão parou no tempo. Ficamos lá um dia inteiro, perto do porto, vendo o movimento dos homens indo e vindo como um circulo sem fim.
De Santo Antão voltamos a Mindelo e de lá pegamos o avião das linhas aéreas cabo-verdianas para voltar a Fortaleza. Com certeza nesta viagem a África ficou bem mais perto de nós.
sobre o autor
Paula Janovitch é antropóloga e historiadora. Editora da Carbono 14 projetos e pesquisas em história e do blog Versão Paulo. Colaborou com um dos percursos do livro “Dez roteiros históricos a pé na cidade de São Paulo” (Narrativa Um, 2008)