Como começou sua vida de cidadão do mundo?
Durante a faculdade de arquitetura eu soube que havia intercâmbios com universidades europeias, e acabei escolhendo fazer o quarto ano na Escola de Arquitetura de La Villette em Paris, entre 1996 e 1997. Fiz um esforço de tentar entender comportamentos e atitudes dos colegas da escola e de tentar pela primeira vez mergulhar num ambiente tão diferente. Funcionou mais ou menos, porque os franceses são osso duro de roer, mas pelo menos uma sucessão de bons amigos, pouco trabalho na escola e tempo livre me permitiram descobrir todos os cantos daquela cidade. Por meio do guia de arquitetura moderna, sapatos confortáveis e muita cara de pau, é possível conhecer facilmente muitos dos projetos relevantes da cidade, sabendo que em Paris sempre acontecem eventos imperdíveis e complementares: exposições, visitas a museus, palestras de arquitetos importantes (o primeiro arquiteto midiático que vi ao vivo foi a Itsuko Hasegawa naquele ano) e os eventos de rua como o Dia da Música ou cinema ao ar livre. Era um ano interessante de inauguração de alguns dos projetos de Mitterrand, fazendo com que o debate entre as escolas e arquitetos fosse bastante produtivo.
Naquele ano viajei bastante: com amigos fiz uma volta pela França visitando as obras de Le Corbusier, em outra ocasião fiz o percurso da arquitetura moderna na Holanda, e visitei os países escandinavos e Rússia. A descoberta da excepcional arquitetura de Alvar Aalto sob a neve daquele inverno polar é uma das melhores lembranças. Tudo isso foi graças à bolsa que menos exige justificantes em todo o mundo, o famoso e prático paitrocínio. Meu pai, coitado, mal sabia que havia criado um monstro, e que aquela viagem seria a primeira de muitas. Felizmente, a partir daquele momento todas seriam patrocinadas pelo meu trabalho como arquiteto e tradutor.
Como é sua relação afetiva com a América Latina?
Meus pais são chilenos, e o idioma oficial em casa era um dos dialetos do portunhol, situação que contribuiu para o sentimento de desenraizamento em relação aos lugares e ambientes sociais. Moqueca, rabanada, feijoada, religião, aquele primo gente boa, o tio cafajeste, a total informalidade eram coisas que eu via, assustado, aos sábados na casa dos amigos e me transportavam a um mundo paralelo com o qual era difícil criar empatia.
Essa falta de identificação deve ter sido a responsável pela busca que levei a cabo durante a década seguinte com a mochila nas costas.
Viagens ao ELEA no Chile, Machu Picchu e Buenos Aires tentaram resgatar esse vínculo com os antepassados e a cultura latino-americana, e também abriram a minha percepção para esse modo de ser resultante da forte cultura indígena andina, muito presente na Bolívia e Peru, a cultura hispânica das grandes metrópoles do Cone Sul e perceber as semelhanças e diferenças do impacto da imigração tardia do século XX entre Brasil e os outros países.
Obras como a Casa Currutchet de Le Corbusier em La Plata, a casa ponte de Amancio Williams em Mar del Plata, a qualidade de arquitetura contemporânea chilena e o impacto da força cultural e artística de Buenos Aires me instigaram muito, e acabaram resultando numa necessidade de fazer os deveres de casa: entender de forma menos arrogante o próprio Brasil, o que me fez visitar pela primeira vez Brasília e Salvador.
O Rio de Janeiro foi trampolim para voltar à Europa?
Um outro passo nos sucessivos choques culturais foi a mudança para o Rio de Janeiro. Não há desafio maior para um paulista do que fazê-lo morar no Rio de Janeiro. Para evitar o choque total, caí num bairro longe da praia (ver alguém de sunga ou biquini no supermercado me deixaria apreensivo e pasmo). Era o bairro de Santa Teresa, numa comunidade de arquitetos que moravam em casas na mesma rua, e também formada por pessoas que tinham alguma conexão com São Paulo. Fiquei na ponte rodoviária da Dutra durante dois anos. Ali surgiu a oportunidade de participar de um concurso organizado pelo consórcio Santiago de Compostela Capital Cultural europeia, no ano 2000, cujo tema eram intervenções em diversas cidades latino-americanas. No nosso caso, fizemos um projeto para a área então ocupada pelo gasômetro do Rio de Janeiro. Fomos selecionados para apresentar o projeto em Santiago de Compostela. Chegando na Espanha, depois de apresentar o projeto em meio a equipes europeias e latino-americanas, recebemos uma menção honrosa. Após dividirmos o prêmio em dinheiro, todos decidimos ficar um tempo pela Europa, viajando ou trabalhando.
Passei um mês tentando achar trabalho na Holanda, mas naquele momento não tive sorte. Paris era sempre a opção mais segura, e por estar ilegal o único trabalho possível era num péssimo escritório, onde fiquei 4 meses desenhando estacionamentos de supermercados. Redescobri a cidade, desta vez sem dinheiro e, graças a um contato da escola de La Villette, dormia num “apartamento” emprestado num squat, um edifício de escritórios que havia sido ocupado por famílias majoritariamente vindas do Mali e que estavam em constante negociação com o governo para exigir habitação digna. Na volta ao Brasil trabalhei alguns meses com a editora Romano Guerra na produção do livro sobre a obra de Rino Levi, e depois no Forum de Debates da Bienal de Arquitetura de SP de 2003. Foi quando uma amiga, Daniela Brasil, me chamou para participar de um projeto de um evento em Lisboa, e desde então nunca mais voltei a morar no Brasil.
Como foi a vida nômade a partir de então?
Nada foi muito planejado. A única constante era o modus operandi: comprar a passagem só de ida para algum lugar de interesse, e chegando lá telefonar para escritórios procurando trabalho.
Nós arquitetos temos a sorte de ter o AutoCAD como ferramenta universal, e a auto-determinação era importante para que as coisas dessem certo, apesar dos trancos e barrancos emocionais, a falta de documentos legais para trabalhar e a pressão diária de uma vida bastante despojada. O prazo para começar a trabalhar depois da chegada variava entre uma semana e um mês. Assim foi na Eslovênia, em 2004. O país estava se preparando para entrar na União Europeia e havia um pequeno boom de construção, embora o país tenha somente 2 milhões de habitantes. Trabalhei um ano para o escritório Dekleva Gregoric, em Ljubljana, a minha melhor experiência em todos esses anos. Éramos quatro pessoas trabalhando para vários países diferentes, com um nível altíssimo de projeto e detalhamento. Foi quando eu descobri a Europa do Leste. Logo os escritórios em Istanbul (2005) e Barcelona (2006) não atingiriam o nível desse escritório esloveno, mas sendo a experiência na Turquia importante para entender o mundo muçulmano e o debate diário político e religioso acirrado dentro daquela sociedade civil. Poucas cidades no mundo representam tanto a ponte entre civilizações quanto Istanbul. E o final da estadia na Turquia coincidiu com a entrega do prêmio Pritzker ao Paulo Mendes no palácio de Dolmabahçe.
A China vai ser a potência do novo século?
Sim, embora isso não seja uma ameaça como muitos pensam. Não é fácil falar positivamente sobre a China sem ser acusado de conivência com o regime autoritário. Entretanto, a experiência de viver naquela realidade nos faz ver a dinâmica social e econômica com uma perspectiva otimista. Os graus de complexidade das relações familiares, de hierarquia e de submissão nos âmbitos socio-culturais também são a base do sistema político que governa essa “futura maior economia capitalista governada por um Partido Comunista” do mundo. Há um contraste brutal entre a forma como a China se vê no mundo (o centro do planeta, a civilização mais antiga com 5 mil anos etc.) e a pouco compreensível sinofobia do restante dos países, reiterada pela imprensa que constantemente apresenta os pontos negativos dentro desse mosaico interminável de 1,3 bilhão de pessoas. A revolução social e o desenvolvimento econômico (ainda faltam décadas para chegar a um grau comparável a qualquer país desenvolvido) são inegáveis e as diferenças radicais entre as gerações são patentes.
Um país que passou de um momento esquizofrênico e esmagador como a Revolução Cultural e que trinta anos depois se encontra no atual patamar econômico e de desenvolvimento, ainda não é capaz de realizar uma mudança política, nem pós-industrial (e consequentemente ambiental) de forma tão rápida como desejam as outras nações do mundo. A partir das conversas que tive com muitos chineses da minha geração, pertencentes obviamente à classe média urbana chinesa que não para de crescer, é possível garantir que eles, dentro de seu contexto oprimido politicamente, têm cada vez mais consciência do desejo coletivo de mudança. Embora esse grupo social seja pouco representativo numericamente, o poder político gradualmente aumenta, pois o diploma universitário é cada vez mais um trampolim social. Nessas conversas ficou clara a intenção de reivindicar uma liberdade de expressão. Esse primeiro passo seria o caminho para traçar o que poderia ser considerado como um processo de “democracia”, apesar da China seguramente marcar a diferença com os modelos ocidentais em todos os âmbitos. A plena reinvenção é a própria forma da China de produzir o seu modelo de desenvolvimento.
Do ponto de vista urbanístico e arquitetônico, o choque inevitável de trabalhar num escritório em Shanghai era ver a escala dos projetos e a vasta rede de cidades médias que estão na fila do desenvolvimento. Tudo já está feito nas principais cidades (Beijing, Shanghai e Guangzhou) e nas Zonas Econômicas Especiais (Shenzhen é a mais próspera e conhecida). Entretanto, o fraco grau de desenvolvimento de outras províncias e o desejo de seguir o modelo das cidades litorâneas fazia com que recebêssemos encomendas de prefeituras que pediam uma projeto urbano tabula rasa de centros de cidades importantes, englobando entre 10 e 30 quarteirões, com propostas de usos, gabaritos, e indicação de espaços e edifícios públicos. O que ainda é um problema crônico é o nível da construção e materiais usados. Mesmo que as coisas estejam mudando nesse aspecto (difícil numa sociedade onde o importante é o preço e não a qualidade), a velocidade de mudança é muito menor do que a urgência de construir habitação para os migrantes do campo que acrescerão 300 milhões de pessoas nos próximos quinze anos às cidades chinesas.
Como foi rodar 6000 km pela Austrália?
A Austrália é um país continente fascinante e apesar da xenofobia e da impossibilidade de trabalhar, aqueles quatro meses em Melbourne foram uma excelente forma de descobrir pela primeira vez a cultura anglo-saxônica. As cidades têm museus e galerias contemporâneas muito boas, entretanto a obra de arquitetos famosos como Glenn Murcutt é privada e inacessível. Depois do choque de Shanghai, aquela interminável periferia de casinhas parecia bastante provinciana.
O interesse da Austrália, portanto, reside principalmente em suas atrações naturais. Alugamos uma van “casa”, com cozinha, cama e fogão. Apesar de ser um teste de fogo do ponto de vista do convívio, higiene e intimidade, é a melhor opção num país que está tão preparado para ser descoberto estrada adentro. A fauna é impressionantemente variada e protegida, vimos cassowaries (uma espécie de ema colorida muito rara), coalas, tartarugas, ornitorrincos, crocodilos, kookaburra, possums, todos em seu habitat natural. Ah, e os cangurus.
Acabamos atropelando um... todo o nosso pesar não corresponde à indiferença dos australianos em relação ao que é considerado como uma “praga” no país. A viagem aconteceu antes dos incêndios e inundações de janeiro de 2009, portanto é triste pensar que muito do que vimos sofreu com desastres daquela magnitude.
E a volta à Europa Ocidental é definitiva?
Não é difícil voltar a Barcelona. É uma das cidades mais agradáveis do mundo, com um cosmopolitismo, pujança e qualidade de vida excepcionais. A qualidade da escola de arquitetura e as novas gerações de arquitetos, além da abertura do mercado aos arquitetos internacionais, seja através de concursos ou não, acrescenta novos projetos ao tecido urbano constantemente. Em Barcelona não se tem tanto medo do contraste como em outras cidades europeias. Apesar disso, nos últimos anos criou-se uma certa tendência em engessar uma “imagem” que nem sempre é positiva para a dinâmica urbana.
A criação da “marca” Barcelona após os Jogos Olímpicos é uma faca de dois gumes, que dá subsídios ao planejamento urbano e ao projeto de infra-estruturas fundamentais à inserção de novas propostas de edifícios públicos, mas ao mesmo tempo acaba gerando um processo de gentrificação muito grande e desastres urbanos como foi o caso do Fórum de 2004 e toda a área em torno ao projeto de Herzog & de Meuron, FOA, etc.
De toda forma, a volta a Barcelona é mais ou menos definitiva, a mochila cresceu e se transformou em mala, e chega um momento em que é importante abrir o leque com a coleção de experiências e agrupá-las com o intuito de criar frutos que se desdobram da flânerie. É bom lembrar a todos os arquitetos que a nossa é uma das poucas profissões no mundo que nos permitem esse trânsito infinito. E para iniciar este processo, altamente recomendável, basta comprar uma passagem de ida e colocar um curriculum na mochila.
sobre o entrevistado
Flávio Coddou em Paris, 1996; e com grupo do Instituto Berlage em São Paulo