Em 794, início da Era Heian, a capital do Japão foi transferida para Heian-Kyo (Paz e Harmonia), atual cidade de Kyoto, que do século 8◦ ao 19◦, dominou a vida política, intelectual e cultural do Japão.
Em Kyoto, onde habitei por onze meses, o meu olhar de arquiteta e urbanista buscou o conhecimento, o belo e a compreensão dos ideais da estética japonesa tradicional, que revolucionam os princípios estético e cultural de qualquer ocidental.
Ao chegar a primeira vez em Kyoto, era tarde da noite e ao despertar visualizei, da janela do hotel, os belos e inesquecíveis telhados da cidade, visão esta, que logo em seguida passei a admirar da mansarda da minha própria casa, que era um misto de ambientes ocidentais e orientais e é claro, com um pequeno jardim.
Assim, iniciei a descoberta da antiga capital do Japão, onde a presença da arquitetura contemporânea está sempre em contraponto marcante à arquitetura anciã.
Ao caminhar pelas ruas da cidade encontra-se ao lado da tradicional casa de chá, uma clínica dentária projetada por Shin Takamatsu, que é um exemplo da ousadia arquitetônica contemporânea.
O traçado urbano da cidade, inspirado no arruamento da cidade chinesa de Chang An (Dinastia Chang), que é dividido simétricamente, em quadrados, por ruas largas e depois subdividida por ruas mais estreitas, permite passeios facilmente localizáveis nos mapas disponíveis.
Seus equipamentos e serviços são muito atentos aos cidadãos e nas ruas antigas, estreitas, sem calçadas a convivência pacífica entre o pedestre, a bicicleta e o automóvel é fantástica.
A minha peregrinação pelos templos zen, budistas e xintoístas (“Caminho dos Deuses”, religião nacional do Japão), palácios e vilas imperiais com jardins divinos, museus, teatros, o comércio, parques e ruas da cidade revelou enfim para mim, os princípios da estética japonesa tradicional: a assimetria (fukinsei), a simplicidade (Kanso), a naturalidade (Shisen), a profundidade (Yugen), a espiritualidade (Datsuzoku), o silêncio(Seijaku) e a disciplina rigorosa (Koku).
As fotos apresentadas em paralelo ao texto, fazem parte do ensaio fotográfico, que realizei durante os 11 meses em que habitei em Kyoto, bem como do meu projeto de exposição e publicação sob o título: Wa-Harmonia, uma exigência moral e estética japonesa. Jamais esquecerei a pergunta do Cônsul Geral do Japão no Rio de Janeiro, Sr. Takahisa Sasaki ao conhecer o meu ensaio fotográfico: “Quanto tempo a senhora ficou no Japão?”. Eu respondi: Onze meses. E ele voltou a perguntar: “Onze meses ou onze anos?”.
As Vilas Imperiais, relíquias arquitetônicas de Kyoto, assim como o Templo koke-dera, visita-se mediante prévias autorizações, as quais são reverenciadas por quem as recebe, pois, é a permissão para entrar no paraíso da beleza e da simplicidade.
Katsura representa um dos tesouros da arquitetura vernacular do Japão.
O arquiteto e mestre da cerimônia do chá Kobori Enshu projetou a Vila Imperial Katsura, em 1620, para o príncipe Toshihito Hachijô.
A Vila foi Implantada em uma área de 56.000 m² e é considerada uma das mais belas construções projetadas no estilo arquitetônico japonês puro denominado Sukiya, cujo conceito determina que a função de uma residência está acima dos adornos desnecessários e destaca a importância da dinâmica da sua beleza estrutural global.
Esta combinação de idéias mostra sua sintonia com a estética da arte da cerimônia do chá, que gozava grande popularidade no momento da sua construção.
O resultado final da harmonia entre a arquitetura e a simbologia do traçado de seus espaços externos, mostra o exemplo típico da própria essência da pureza, refinamento e simplicidade encontrada em todas as artes tradicionais do Japão.
Trinta anos depois da existência de Katsura, foram iniciadas as obras da Vila Imperial Shugakuin, localizada na região nordeste de Kyoto junto ao Monte Sagrado Hiei.
Concluída em 1659, ocupando uma área de 70 ha, a Vila consiste em três palácios, o superior (Kami-no-Chaya), o médio (Naka-no-Chaya) e o inferior(Shimo-no-Chaya). É considerada uma das mais importantes vilas montanhosas do período Edo (1603-1868).
Na implantação da Vila, a vivenda, as casas de cerimônia do chá, um templo e outros edifícios foram pontilhados cuidadosamente sobre os jardins.
Particularmente famosa é a possibilidade de visualizar do Pavilhão Rinun-tei, que fica no nível superior da Vila a 149 m acima do nível do mar o belo lago que pertence ao complexo de Shugakuin.
Se sobre Katsura é através do planejamento que a natureza pode ser imposta ao natural, em Shugakuin é a própria natureza que mais impressiona.
Saihõ-Ji leva o seu nome popular de Koke-Dera ou o Templo dos Musgos, por apresentar um extraordinário paisagismo composto de aproximadamente quarenta variedades de musgos.
Embora o templo, executado de forma extremamente rústica, tenha sido fundado no século 8, o jardim foi criado no século 14 baseado nos conceitos do paisagismo japonês, ou seja, rigor e naturalidade onde o nível estético é de tal forma sofisticada que a mão do homem é evidente, mas em nenhum lugar é visível.
A visita ao Koke-dera é organizada em grupo de dez pessoas, que circulam em torno dos mais variados tons de verdes e ligeiras ondulações na superfície do solo, observando os contrastes dos musgos com as formas e cores dos vários Momijis (acer japonicum), arbustos e samambaias.
Ao fim do percurso o grupo é conduzido para o interior do templo do conjunto Koke-dera e convidado a assistir a leitura dos sutras e cada pessoa elabora o seu próprio sutra e finalmente o zazen (meditação zen) é exercitado junto aos monges presentes.
Para definir o paisagismo no Japão eu encontrei nas palavras do professor Satoshi Tanaka, professor da Universidade de Meisei, Tókio, uma explicação interessante: “o japonês se satisfez com a representação realística de seu sentimento pela natureza. Constatando que, na natureza, não existem formas iguais, o japonês não emprega o compasso para construir arcos ou desenhar curvas. Ele não se interessa pela simetria, já que esta não existe na natureza, de cuja multiplicidade sua estética é reflexo”.
Quanto à arquitetura das Vilas Imperiais da milenar Kyoto, altamente sofisticada pelo seu despojamento, funcionalismo e harmonia com os seus espaços externos exerce, ainda hoje, uma visível influência na arquitetura contemporânea oriental e ocidental.
"De meu tempo fiz
Uma alameda de juncos
Rumo ao bambuzal"
(Issa 1763-1827)
sobre o autor
Maria do Carmo Maciel di Primio – Pós-graduada na École d’Architecture Paris-Villemin, França. Foi diretora cultural do IAB/RJ (1998-99). Em Kyoto onde morou por 11 meses, realizou ensaios fotográficos sobre a cultura japonesa, além de estudar a técnica suiboku-ga, pintura de influência Zen. Teve fotos expostas no foyer do Consulado Geral do Japão, RJ, e fotos e artigos publicados no “Notícias do Japão”, do Centro Cultural e Informativo do Consulado geral do Japão