O mistério do turista desaparecido
É fato bastante conhecido a paixão que Jean-Paul Sartre nutria pelas viagens, e é fato igualmente conhecido que, dentre as dezenas de países que ele visitou, a sua preferência repousava na Itália, e, mais precisamente, na cidade de Veneza. Poder-se-ia afirmar, sem o risco de cometer um exagero, que Sartre foi, no século passado, o mais italiano dos escritores franceses.
Em 1951, concluído o ensaio Jean Genet, ele considera algumas possibilidades narrativas, e é fortemente tentado pelo desejo de escrever uma espécie de romance italiano, no qual as aventuras de um turista em solo italiano seriam narradas, um pouco como as Crônicas italianas de Sthendal. Este turista, e é quase desnecessário dizer, era um alter ego do filósofo francês.
Mas este texto nunca foi terminado e, por conseguinte, jamais ganhou a forma de livro. No entanto, no ano de 1981, Arlette Elkaïm-Sartre, a sua filha adotiva, compilou os fragmentos e os publicou com o título com o qual, muito provavelmente, o próprio autor concordaria: A rainha Albermale ou o último turista. Neste livro há um conjunto de fragmentos intitulado Veneza, da minha janela no qual o autor tenta reviver a sua cidade italiana preferida, com as suas construções em parte góticas, em parte mouriscas, os seus canais e pontes e a sua fervilhante vida urbana.
Para Sartre, em Veneza nada poderia ser simples, uma vez que não se trata de uma simples cidade, mas de um arquipélago, e seria isto justamente o que afastaria esta cidade de todas as demais: o mistério da cidade, a cidade que não se deixa desvelar, a cidade dupla dos reflexos cambiantes nos canais: “A verdadeira Veneza, onde quer que você esteja, você a encontrará em outro lugar.” Dito de outra maneira: se há uma Veneza verdadeira, esta não se entrega nunca. Sartre alude ao fato de que, diante de um espelho, o nosso reflexo é nossa representação, e é, ao mesmo tempo, outra coisa.
Veneza se dobra em seus canais; busca-se esta cidade, perpetuamente, de margem em margem, sem jamais encontrá-la: “Veneza está lá onde não estou.” É quase uma referência ao célebre aforismo de Heráclito: “Nas águas de um mesmo rio, sou e não sou.” É o movimento das águas como uma metáfora do eterno devir, é o espaço como uma metáfora do tempo. Segundo o nosso autor haveria uma Veneza secreta. Mas, se segredo há, onde encontrá-lo, onde se desvelaria a sua verdade? E, por outro lado, como poderia um simples turista Hiroshima mon amour a personagem feminina, uma atriz francesa, assim comenta a comoção dos turistas diante das imagens do horror nuclear: “Mas o que poderia fazer um turista, senão, justamente, chorar?” O que pode fazer um turista diante do mistério de Veneza?
Assim como os canais dobram a cidade em uma dupla alteridade, o turista narrador de Sartre contempla um outro turista: “Ele é, horror, meu semelhante, meu irmão”. Os signos estão todos lá, facilmente reconhecíveis: “ele tem um guia turístico na mão e carrega um Rolley-Flex atravessado no peito”.
Mas, o que o encontro com este turista contribuiria para desvendar os segredos venezianos? Ora, “é um turista da outra Veneza e eu não verei jamais o que ele viu.” Doce ilusão... Mas ao turista, a todo e qualquer turista, é concedido o dom da ilusão, mesmo em se tratando de Veneza, a cidade outra. O turista de Sartre pensa, então, em correr em direção ao turista, para tranqüilizar-se, para ter certeza de que ele não é outro, e para confirmar que ele é seu semelhante e seu irmão, e que, a este título, este turista não poderia ter visto o que ele não viu. Seria a chave para decifrar os mistérios de Veneza, estes simplesmente se desvaneceriam como se desvanecem as brumas dos canais. Mas a ilusão passa, e ele desiste: “e minha última visão seria o rosto indecifrável do desconhecido da Outra margem.” É o próprio reconhecimento da impotência do turista: “Mas o que poderia fazer um turista, senão, justamente, chorar?” Segundo o narrador, a comunicação, mesmo entre semelhantes, é impossível, e o mistério se torna desaparecimento: “Misterioso, o turista parte: ele sobe na ponte e desaparece, e eu estou sozinho no Canal imóvel. Hoje, a outra margem me parece mais inacessível ainda.” Foi-se o último turista, e, com ele, a chave do mistério de Veneza.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Autor do livro: Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo