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architectourism ISSN 1982-9930

Museu do Ipiranga, São Paulo. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
Abilio Guerra entrevista José Albano, fotógrafo cearense autor do recém lançado livro "Manual do Viajante Solitário", um manual prático com guias para explorar as estradas em duas rodas, feito a partir das experiências de Albano em suas viagens de moto


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GUERRA, Abilio. Entrevista com José Albano. Arquiteturismo, São Paulo, ano 04, n. 043.03, Vitruvius, set. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/04.043/3551>.


Introdução

Tudo começou meio por acaso. Em 1983, o fotógrafo José Albano, para se desvencilhar de um vendedor desagradável de telemarketing, acabou finalizando a conversa alertando o interlocutor que “já estava farto de carros e, se fosse comprar um veículo novo, seria uma moto””

Sem o saber, estava prognosticando seu futuro. No ano seguinte comprou uma moto pequena, de 125cc, e com ela começou a cruzar o país, fotografando os mais diversos aspectos das paisagens natural e construída. O resultado desta experiência acaba de ser, em parte, publicado no Manual do viajante solitário (Terra da Luz Editorial, 2010, 112 páginas).

1984. Moto recém-comprada, em frente à casa do sítio em Sabiaguaba, Fortaleza, com Regina e Emília
Foto divulgação [Manual do Viajante Solitário, p. 14]

Não é um livro de aventuras, mas um manual prático, onde o autor dá um monte de dicas muito úteis para aqueles que quiserem seus passos, ou melhor, seguir os rastros de suas duas rodas. O livro é dedicado a J.E.R.M.L., um motoqueiro falecido na estrada e desconhecido do autor, mas cujas iniciais estavam gravadas em um monumento erguido na beira da estrada, nas proximidades de Icó, no Ceará.

As fotos presentes nesta entrevista ilustram as respostas do entrevistado, que avança em questões ausentes do livro. Entre o planejamento e o improviso, trabalhando mas se divertindo, trata-se de uma experiência completamente fora do corriqueiro. Quem sabe esta entrevista não é o embrião de um futuro livro, com as aventuras e descobertas de um viajante há três décadas na estrada?

Periquito, Minas Gerais
Foto José Albano [Manual do Viajante Solitário, p. 38]

Porque viajar de moto

Abilio Guerra: Como nasceu a ideia de viajar de moto pelo Brasil?

José Albano: Minha primeira viagem aconteceu em 1988, quase que por obrigação. Morando em Fortaleza, aceitei um trabalho em Teresina (PI), que teria cerca de dois meses de duração. Despachei minha moto no trem cargueiro que liga as duas cidades e viajei de ônibus. Só que a moto demorou duas semanas para chegar lá. Terminado o trabalho, para evitar essa demora, resolvi enfrentar os 600 km da BR 222 e levei três dias de Teresina até Fortaleza...

Apesar do encantamento com a liberdade e a beleza da estrada, a viagem me pareceu muito desconfortável. Tinha que parar frequentemente por causa de dores nas costas e, principalmente, pela dormência na bunda, pois a sela se tornava impossível de sentar depois de 30 minutos de estrada. Nas duas noites, passadas em dormitórios de caminhoneiros, dormi muito mal pelo barulho, calor, mosquitos e o desconforto das camas, o que resultou em cansaço e sonolência no dia seguinte, na estrada.

Tive vontade de fazer outras viagens, mas os desconfortos me desanimavam. Talvez o problema fosse a minha moto... Então resolvi estudar o assunto com mais seriedade e mandei buscar nos Estados Unidos o livro Motorcycle Touring, de Bill Stermer, publicado em 1982. Foi lá que aprendi quase tudo sobre viajar de moto. O resto venho descobrindo a cada nova viagem, pois há sempre o que aprender.  

Em síntese, o livro do Stermer foi fundamental pelo fato de o autor desmitificar o que se poderia chamar de “moto de viagem”, que todos imaginam deva ser uma estradeira possante e veloz. Isso me liberou o uso da 125, mesmo para as viagens mais longas.

Todo ano faço pelo menos duas viagens de dois tipos diferentes. Numa delas, geralmente dentro do Ceará, saio com o roteiro vagamente definido e com data de retorno em aberto. Essas são viagens em missão fotográfica, aonde vou registrando diversos aspectos do Ceará para os arquivos do Imagem Brasil, um banco de imagens, cujas fotos são vendidas pela Internet para livros, revistas, folhetos, cartões-postais, calendários, anúncios, etc. Ando pelas praias, serras e sertões, usando todo tipo de estrada, incluindo a “pista” de areia dura, deixada pela maré baixa, ao longo dos 500 quilômetros do litoral cearense. Essas viagens, geralmente, duram de 10 a 20 dias. Não fosse pelo meu trabalho em Fortaleza, viveria nas estradas cearenses o ano inteiro.

O segundo tipo de viagem envolve data e destino específico com roteiros de 8.000 km ou mais, pelas estradas do Brasil. Desde 1990, participo, todo mês de julho, do encontro anual de comunidades alternativas, cujos membros praticam vivência comunitária, agricultura ecológica e a busca da saúde através da fitoterapia, do vegetarianismo e de práticas espirituais, como autoconhecimento e meditação. E eu sempre vou de moto!

Os encontros duram uma semana e sempre ocorrem nas zonas rurais de diversos estados do Brasil, como Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Bahia, Paraíba, Ceará ou Piauí, entre outros. Somando o tempo de ida e volta, a partir de Fortaleza, são percursos de três dias (no caso da Paraíba), três ou quatro semanas (no caso do Rio Grande do Sul), quase todo o tempo por estradas federais, as nossas famosas BRs. Frequentemente, aproveito esses encontros para fazer turismo ao longo do roteiro, principalmente na volta, porque não tenho data marcada para chegar a Fortaleza.

Além dessas, gosto de viajar pelos estados do Nordeste do Brasil, com seu clima maravilhoso, para fazer turismo e rever os muitos amigos que tenho na região.

Santo Antônio do Rio Grande, Minas Gerais
Foto Kal Venturi [Manual do Viajante Solitário, p. 08]


Abilio Guerra: Qual o motivo de escolher uma moto 125cc? Quais as vantagens e desvantagens?

José Albano:  Aprendi a andar de moto já aos 40 anos de idade. A 125cc  me pareceu mais adequada ao aprendizado inicial. Só que me acostumei e permaneci com ela. Tenho pelo menos três argumentos em defesa das baixas cilindradas em geral ( de 125cc a 150cc) e da minha ML em particular. Em primeiro lugar, ela tem o motor que foi o mais popular do Brasil – o modelo com o comando de válvulas por varetas. Assim sendo, encontro peças e mecânicos para a minha moto praticamente em qualquer lugar do país.

Em segundo lugar, é um modelo menor e mais leve, mais adequado à minha estatura mediana e ao meu peso corporal, pouco mais de 60 quilos. Além disso, agora, já na casa dos 60 anos de idade, não tenho muita força muscular, mas assim mesmo, quando levo uma queda, ainda consigo levantar minha moto, o que talvez fosse impossível no caso de um modelo mais possante, certamente mais pesado.

Em terceiro lugar vem a boa relação entre economia e desempenho, fator importante tanto nas viagens como na utilização urbana da moto.

A desvantagem fica por conta da potência e da velocidade limitadas pois, com velocidade de cruzeiro entre 70 e 80 km/h, viajar de 125 significa ser ultrapassado por todos os veículos na estrada, exceto caminhões carregados em subidas longas. E esses mesmos caminhões terminam ultrapassando você novamente nas descidas e nas retas. Para quem não tolera ser ultrapassado, a 125cc não é a moto ideal.

BA 463
Foto José Albano [Manual do Viajante Solitário, p. 34]


Abilio Guerra: Por que usar sempre a mesma moto por décadas? É alguma crença mística, vontade de uma mitologia pessoal ou uma questão prática?

José Albano: Na minha insistência em manter a velha ML, conto com o apoio do amigo Bigode que cuida da sua mecânica desde que foi comprada em 1984.

E a história de não querer trocar de moto não é só capricho, não. Há muito tempo ela já se tornou invendável, pois o preço de tabela para uma ML usada, do ano da minha, é muito baixo – ninguém pagaria as peças que fui substituindo ao longo dos anos, peças que só têm reforçado a minha decisão de mantê-la. Por exemplo, quando troquei o tanque de gasolina, aí pensei: já que troquei o tanque (em vez de vender a moto por estar com o tanque velho), então vou trocar também os aros e os raios (alumínio e aço inox) das rodas. Em seguida, dentro do mesmo raciocínio, troquei a instalação elétrica. Há ainda as adaptações que foram feitas para aumentar o conforto nas viagens.

Não pretendo trocar minha moto por uma nova que, além do custo de aquisição, me forçaria a voltar a pagar o IPVA (Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores), do qual minha moto está dispensada há anos, e ainda ficar preocupado em vê-la cobiçada pelos ladrões...  Enfim, uma troca aumentaria os meus custos e não traria novos benefícios, além de uma possível partida elétrica. No mais, a moto nova faria o mesmo trabalho da minha velha e querida ML.

Outro fator na minha decisão de mantê-la está nos cuidados extras do Bigode que, além de mecânico, é também metalúrgico, cuidando tanto do funcionamento quanto da integridade estrutural da moto, fator importante em Fortaleza, cidade à beira-mar, onde a ferrugem corre solta, reduzindo a vida útil de tudo o que é feito de ferro...

Abilio Guerra: Como sua família vê suas viagens?

José Albano: Consegui convencê-los do fato da moto ser mais perigosa no uso diário, na cidade, do que nas estradas. Embora confiem na minha competência enquanto piloto, eles temem que eu seja assaltado, fato que já me ocorreu... Minha filha não se conforma com a minha teimosia em não levar comigo um telefone celular...

Abilio Guerra: Seu livro é dedicado a um motociclista morto na estrada. É algum amigo ou parente?

José Albano: Não. Nem mesmo sei quem é… Sua familia mandou construir  o monumento que ilustra a dedicatória mas, além das datas de nascimento e falecimento, constam somente as iniciais do nome do acidentado. Fiquei comovido com o desenho da sua moto, uma 125cc vermelha como a minha.

Ouro Fino, Minas Gerais, estátua do Menino da Porteira
Foto José Albano [Manual do Viajante Solitário, p. 37]


Como viajar de moto

Abilio Guerra: Qual o melhor horário para enfrentar as estradas?

José Albano: Em geral, prefiro viajar à luz do dia: começo de manhã cedo, se possível, antes do nascer do sol, e paro antes de escurecer. Sempre levo comigo uma barraca de nylon, do tipo iglu, e nos minutos críticos entre o pôr-do-sol e o cair da noite procuro acampar em local protegido ao lado da estrada. Costumo parar entre 1:00 e 2:00hs. da tarde quando como um almoço leve e dou uma cochilada.

Abilio Guerra: Como achar o lugar adequado e como é a melhor forma de dormir?

José Albano: Sempre levo comigo uma barraca de acampamento. Uma noite bem dormida é condição fundamental para o sucesso de uma viagem de moto. Por isso, é tão importante escolher bem um lugar para armar a barraca. Sempre prefiro acampar longe das cidades, nos grandes espaços vazios atravessados pelas nossas estradas. 

Para mim, o ideal é dormir sozinho na barraca e quanto mais isolado melhor. Nada de pedir pousada em fazendas, onde a boa vontade dos anfitriões exige conversas, quando tudo o que quero é dormir cedo e escapulir antes do sol aparecer na manhã seguinte!

Já acampei em florestas de pinheiros e de eucaliptos, dentro de canaviais, em pistas de aeroportos e campos de futebol de zonas rurais, em praias, à margem de lagoas, açudes e rios, em áreas limpas próximas a antenas de rádio ou torres de apoio a redes elétricas de alta tensão, ao lado de trilhos de trem, em desvios ou segmentos de estradas abandonadas, em áreas de onde se extraiu barro para serviços de terraplanagem ou simplesmente ao lado dos acostamentos, quando há desnível, barranco acima ou abaixo, onde os faróis dos carros não atingem minha barraca.

Embora já tenha usado estradas vicinais para sair à procura de lugares mais tranqüilos para dormir, prefiro acampar nas áreas de domínio ao longo das BRs, isto é, nos cerca de 35 metros de espaço vazio em ambos os lados da estrada, entre o acostamento e a cerca das fazendas. Às vezes, moitas ou arbustos ou desvios ao longo das cercas, usados quando a estrada está bloqueada, oferecem bons esconderijos para a moto e a barraca. Poucas vezes tenho a sorte de não encontrar nenhuma cerca e poder, assim, adentrar o terreno para acampar mais longe da estrada. Isso acontece em áreas agrícolas ou reservas de matas onde posso estar mais protegido de olhares curiosos. Mas, mesmo se eu ou a barraca e a moto formos vistos ao lado de uma BR, fica claro tratar-se de um viajante que parou pra dormir.

Gosto de identificar bons lugares para acampar, mesmo durante o dia, uma maneira de treinar o olho nessa função.

SP 055, Ubatuba - São Paulo
Foto José Albano [Manual do Viajante Solitário, p. 42]


Abilio Guerra: É muito complicada a arte de se alimentar em trânsito? Comer o habitual ou experimentar a culinária local?

José Albano: Gosto muito de uma refeição ou bebida quente no café da manhã e no jantar. Acampando na beira das estradas, é sempre possível encontrar lenha e pedras para cozinhar numa trempe. Mas o bom mesmo é viajar com um fogareiro. Se estou na barraca, preparo o jantar e o café da manhã ao meu modo usando uma espiriteira onde queimo álcool comprado nos postos de combustíveis. É preciso ter muito cuidado com fogo dentro da barraca, e sempre que o clima permite —ausência de frio, chuva ou vento — cozinho do lado de fora.

De manhã, gosto de tomar chá, café ou chocolate quente, comer granola com frutas, mingau ou papa de cereais com mel ou rapadura. No almoço, geralmente não uso o fogareiro: como pão com peixe enlatado, geralmente sardinha ou atum, e tomate ou salada de ervilha ou milho em conserva, queijo ou um ovo cozido, e castanha de caju ou amendoim torrado.

À noite, gosto de comer milho ou ervilha aquecidos com proteína texturizada de soja e fibra de trigo, ou tomar caldos em tabletes com verdura, macarrão oriental, o famoso miojo, muito prático em acampamentos, que reforço com uma proteína que pode ser queijo, soja texturizada, missô ou ovo, e fibra de trigo. Às vezes, prefiro chá ou café com bolachas ou pão com mel, doce de leite pastoso, manteiga de amendoim ou pasta de gergelim.

No meio da manhã ou da tarde, como frutas, compradas no caminho, que são excelentes merendas. Embora não frequente os restaurantes à beira da estrada, paro às vezes nas padarias ou lanchonetes para um café e não resisto à tentação de comer um salgado ou um doce, aproveitando a oportunidade para provar os quitutes locais: pamonha em Goiás, pão de queijo, em Minas e o bolo de sal do Piauí são bons exemplos de culinária regional que eu gosto de experimentar. Em dias quentes, um sorvete cai bem!

Em casa, sou totalmente vegetariano, vegano mesmo, mas, viajando, relaxo um pouco. Como diria o meu genro Michael, também motociclista: “Em casa vegano, na rua mundano”!

Abilio Guerra: Uma viagem como a sua, mistura aventura e planejamento. Como minimizar os riscos esperados em uma viagem de moto por grandes distâncias?

José Albano: Viajando dentro do Ceará, me entrego à aventura, procurando encontrar surpresas para enriquecer  meu acervo fotográfico do estado cujas paisagens de praia, serra e sertão mudam muito ao longo do ano. Já as viagens pelo Brasil exigem um pouco de planejamento visando racionalizar tempo e combustível em função dos objetivos pretendidos. Minimizar riscos? Nunca pensei nisso...

Abilio Guerra: Qual o lar possível de se levar sobre uma moto?

José Albano: A barraca tem que ter espaço para 3 pessoas embora eu quase sempre viaje só. À noite, tenho que ter o conforto da luz elétrica. A espiriteira e um bom kit de cozinha para o preparo de refeições quentes, um bom saco de dormir com colchonete isolante térmico,  cobertor espacial de polietileno espelhado e um travesseirinho de penas de ganso são condições sine qua non para uma boa dormida. Como bom cearense, levo também uma levíssima rede de nylon.

Como entretenimento, levo sempre um rádio AM/ FM e um pequeno sistema de som com MP3 e uma boa seleção de jazz e música clássica, dotado de alto-falantes para evitar os incômodos fones de ouvidos. E para alimentar o espírito, levo sempre um livro de poesia, frequentemente do Fernando Pessoa , quase sempre uma antologia  do Alberto Caeiro.

Icó, Ceará
Foto José Albano [Manual do Viajante Solitário, p. 68]


Como trabalhar viajando

Abilio Guerra: No início de sua aventura, como você conseguiu se acertar com as agências que comprariam suas fotos?

José Albano: Tenho uma relação bem flexível com o Imagem Brasil, banco de imagens que é o principal cliente das minhas fotos. O foto-jornalismo que exerço é do tipo “frio”, isto é, não cubro as notícias “quentes”, que estão acontecendo no momento. Assim, não tenho pressa de descarregar  a produção fotográfica das viagens.

Abilio Guerra: Você oferece os trabalhos ou os temas e roteiros lhe são encomendados pelas agências?

José Albano: Quase sempre tenho a liberdade de pautar, eu mesmo, o meu trabalho. Ocasionalmente, sigo um roteiro ou cumpro uma pauta encomendada.

Abilio Guerra: Qual é o equipamento fotográfico adequado para este tipo de trabalho, levando em conta as viagens e o tipo de foto que faz?

José Albano: Depois de anos sofrendo com o peso das velhas Nikons e Canons e as muitas lentes cambiáveis e outros acessórios, simplifiquei minha vida usando uma única câmera digital compacta, uma Lumix, da Panasonic, de apenas 170 gramas, 10 megapixels, opções de exposição manual, dotada de uma extraordinária lente zoom 5x da Leica cuja grande angular corresponde a uma 25mm analógica. Acessórios? Um monopé e um grampo sargento, e só!

Abilio Guerra: Como é o cotidiano de enviar as fotos para os clientes? Você é dependente da tecnologia informatizada e da rede mundial?

José Albano: Embora faça pouco uso devido à natureza do meu trabalho, sou dependente, sim, da Internet, das “lan houses”, dos cartões de memória, dos “pen drives”, dos “back-ups” em CDs e DVDs, dos HDs externos e de boa parte da parafernália digital miniaturizada dos tempos de hoje. Só não uso nenhum tipo de telefone celular por ter horror a essa “coleira eletrônica” presa ao pescoço de quase todo o mundo... Estou fora!

Canindé, Ceará
Foto Guthemberg Barbosa [Manual do Viajante Solitário, p. 76]


Olhando o país

Abilio Guerra: Na sua recordação, quais são as paisagens mais bonitas e interessantes do país?

José Albano: As chapadas: do Araripe, no Ceará, Diamantina, na Bahia, dos Veadeiros, em Goiás, dos Guimarães, no Mato Grosso, a Serra da Mantiqueira no sul de Minas, a estrada Rio-Santos, a descida da Serra da Graciosa, no Paraná, as praias do sul da Bahia, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, os parques nacionais de Sete Cidades e da Serra da Capivara são algumas das minhas paisagens favoritas.  

Abilio Guerra: Quais as cidades mais marcantes? Porque?

José Albano: Posso dizer que as cidades que mais me agradam são as que estão próximas da água ou têm relevo interessante. Minhas favoritas, quanto ao relevo: Viçosa do Ceará; Milagres e Jacobina, na Bahia; Ouro Preto, em Minas. Quanto à proximidade da água, amo todas as cidades do litoral brasileiro, com destaque para Vitória e o Rio de Janeiro, generosas na presença de água e relevo. 

Abilio Guerra: Você fez ensaios fotográficos sobre o patrimônio arquitetônico de cidades brasileiras?

José Albano: Nenhum ensaio sério. Tenho fotos de passagem, como turista.

Abilio Guerra: Quais as obras de arquitetura que mais gostou?

José Albano: Ouro Preto e Tiradentes, em Minas, Paraty, no Rio, Olinda, em Pernambuco, Aracati, no Ceará , Lençois, na Bahia, e a área do Pelourinho em Salvador. E já chorei de emoção em Brasília. 

Abilio Guerra: Como conciliar os caminhos retos impostos pelas encomendas de trabalho e os tortuosos, motivados pela curiosidade de conhecer o desconhecido?

José Albano: O bom é manter a agenda aberta e fotografar sem pauta, sem compromisso. Sem o custo dos filmes e da revelação que sempre limitavam a criação dos fotógrafos, as câmeras digitais nos deram a liberdade de fotografar praticamente sem limites. Fotografo o que me pedem, o que pode gerar vendas, mas faço também o que me interessa, sem me amarrar a um esquema comercial.

BR 116, Bahia [Manual do Viajante Solitário, p. 79]


Viver viajando

Abilio Guerra: O sumário do seu livro tem os capítulos identificados com fitas de slides. Além de fotografar profissionalmente, as viagens expressam um desejo de fazer da vida um filme pessoal?

José Albano: Mais um “Road movie”? É bom lembrar que esse livro nasceu como um manual prático para motociclistas urbanos com medo de enfrentar as estradas. Não narro as minhas viagens embora cite casos e vivências para ilustrar alguns pontos que os motociclistas viajantes precisam saber. Quanto ao “filme pessoal”, gosto de fotografar a minha velha motocicleta como personagem das fotos que faço da paisagem vista da estrada. Tenho centenas dessas fotos!...

Abilio Guerra: Você deve ter muitas histórias curiosas para contar. Alguma engraçada em particular? (ou estranha, surpreendente, inesperada...)

José Albano: Aí vão duas: A primeira, um incidente com a polícia. Viajar com a barraca e o equipamento de cozinha já me livrou de um impasse com a polícia. Fui parado numa cancela na divisa entre Pernambuco e Bahia. O policial queria conferir o número gravado no chassi da moto, usando um lápis e um pedaço de papel. Como a ferrugem na peça impedia a transferência dos números para o papel, o policial decretou a apreensão da moto. Aparentando a maior calma possível, anunciei que, se a moto estava retida, eu ficaria ali também e indiquei onde armaria a minha barraca. Fazendo valer minha intenção, comecei a desfazer a bagagem quando o policial lembrou que poderia lixar a peça e tentar novamente conferir o número. Fiquei na minha enquanto ele procurava a lixa e removia a ferrugem para a verificação. Isso feito, fui dispensado, mas creio que foi a ameaça de armar a barraca ao lado da cancela que trouxe a bom termo o incidente...

A outra história tem a ver com minha roupa e os pelos brancos da minha idade. Sobre roupas claras que aumentam a visibilidade, gosto especialmente da cor vermelha, sejam as camisas de mangas compridas, seja o casaco que visto por cima. Esta cor já me valeu uma cena engraçada quando estava voltando de uma viagem na época do Natal. Parei num boteco de beira de estrada para beber um refrigerante, sendo atendido por uma mulher que estava acompanhada da filha pequena. Quando tirei o capacete, revelando os meus cabelos, bigode e barbas brancas, vestido, como estava, de vermelho, a menina perguntou de olhos arregalados: “Mãe, esse é o Papai Noel?” Mas o melhor foi a resposta da mãe: “Não, filha. É o irmão dele”!

Abilio Guerra: Um dos capítulos do livro se chama “E o que mais as viagens ensinaram?” Você comenta sobre a pressa, o ritmo, a humildade e outros itens interessantes. Do ponto de vista pessoal, o que as viagens lhe ensinaram sobre o relacionamento com as pessoas e consigo próprio?

José Albano: O relacionamento com pessoas desconhecidas que provavelmente nunca vou voltar a ver me fascina pelo número de vezes em que encontro alguém que me olha no olho, com quem surge um sentimento de confiança plena, e mútua, uma amizade em potencial. Lamento me despedir dessas pessoas sem mesmo trocar endereços por saber da impossibilidade de manter ou de aprofundar o contato. Por outro lado, a viagem  propicia o reencontro comigo mesmo, confirmando a veracidade do texto Zen com o qual eu fecho o manual:

“Um dia podemos descobrir que toda viagem é, de algum modo, uma peregrinação em busca de um lugar que é o coração do viajante. Seu destino final é a sua realidade interior. Mas, faz parte do ritual a busca em lugares distantes, aonde o seu coração sempre vai desejoso de um encontro que nem sempre acontece”.

Abilio Guerra: Na história literária e cinematográfica são muitos os viajantes solitários; em geral, os personagens estão à procura de algo, que muitas vezes não sabem do que se trata. Você sabe o que procura?

José Albano: Mais do que alguma coisa fora, eu procuro escapulir da minha casa, da minha cidade, das rotinas da minha vida, do assédio social. Na estrada, tenho a oportunidade de escutar meu pensamento, a oportunidade de estar comigo mesmo durante horas seguidas, dias seguidos, sem a interrupção do trabalho, da família, dos amigos, do telefone, da TV.  Dentro do capacete, falo sozinho, canto, digo poemas que sei de cor, choro ou dou risadas na medida em que se desenrola a fita da memória de bons e maus momentos que vivi. Sobre a moto, solto nas estradas, tenho a oportunidade de arejar a cabeça, de reciclar minha vida, rever o passado, planejar o futuro, enquanto desfruto da rara oportunidade de estar imerso no presente. Aproveito esse estado de consciência para definir prioridades, mudanças para quando voltar pra casa, como melhorar as coisas, o que fazer pela qualidade da minha vida... Viajando de moto, me dou a oportunidade de passar a vida a limpo, enfim...

 

Abilio Guerra: Vai sair um outro livro, registrando paisagens, cidades, locais, pessoas e situações que conheceu e vivenciou?

José Albano: Pode ser, mas não do ponto de vista do motociclista. Na juventude, no inicio dos anos 1970, passei um ano viajando pela Europa, pedindo carona, de mochila nas costas e câmeras no pescoço. As dez longas cartas para a minha familia e cerca de 6.000 fotografias resultantes dessa aventura aguardam ser editadas e esse poderá ser o meu próximo livro. Um livro também de viagens, como esse.

ficha técnica

José Albano

Nascido em Fortaleza, Ceará, em 1944, José Albano é fotógrafo desde 1967, quando cursava Letras na Universidade Federal do Ceará. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou na Manchete Press Agency, agência de notícias da Editora Bloch (1969-1970). Com bolsa da Comissão Fulbright, estudou nos Estados Unidos, onde obteve o mestrado em Fotografa para os Meios de Comunicação na Syracuse University, em Nova York. Exerceu o fotojornalismo percorrendo os Estados Unidos, o Canadá e 12 países da Europa.

De volta ao Ceará, trabalhou na Escala Publicidade durante cinco anos, até abrir seu próprio estúdio, onde passou a fazer fotografia profissional para o comércio e indústria cearense, ilustração fotográfica de livros, restauração e reprodução de fotos antigas, retratos, documentação da paisagem, ecologia e turismo no estado do Ceará.

Faz fotografia de expressão pessoal documentando o movimento alternativo em todo o Brasil, as viagens de motocicleta e os meninos do Projeto Albanitos. Seu trabalho autoral foi publicado no livro “José Albano 40 Anos de Fotografia” (Terra da Luz Editorial, 2009). Foi contemplado com dois prêmios pelo conjunto da sua obra. Faz documentação fotográfica, junto ao seu irmão Maurício Albano, para o projeto “Comida Ceará”, do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura. “E continuo fotografando tudo o que me interessa na vida... e não é pouco!

Abilio Guerra

Arquiteto, professor da FAU Mackenzie e editor da Romano Guerra Editora e portal Vitruvius. Com Michel Gorski, é editor da revista Arquiteturismo.

Entrevista

A presente entrevista foi realizada por email, durante o mês de agosto de 2010.

Capa do livro "Manual do viajante solitário", de José Albano
Foto divulgação


Livro

ALBANO, José. Manual do Viajante Solitário – Rodando de 125cc nas estradas do Brasil. Fortaleza, Terra da Luz Editorial, 2010, 112 p. Preço: R$ 45,00.

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043.03 Entrevista
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043

043.01 Exposição

Mostra "Ao vento", de Adriana Rosset

Rosely Nakagawa

043.02 Viagem de estudo

Koolhaas X Mies

Carlos M Teixeira

043.04 Exposição

Muito alem da rue de Sèvres

Silvana Rubino

043.05 Arquiteturismo em questão

Oostende e o por do sol branco da melancolia

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima

043.06 Ensayo fotográfico

Un testigo ocular de "Las fiestas de La Mercè"

Rodrigo Stocco

043.07 Arquiteturismo en cuestión

¡!La Mercè en dos carteles

Carlos Capretz

043.08 Exposição

Tempo ao tempo!

Juan Esteves

043.09 Ministério do Arquiteturismo

Ministério do Arquiteturismo adverte...

Abilio Guerra and Michel Gorski

043.10 Editorial

Criança turista

Michel Gorski and Abilio Guerra

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