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architectourism ISSN 1982-9930

Vista panorâmica de Casablanca, Marrocos. Foto Victor Hugo Mori

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português
É fato conhecido que após uma tempestade no mar, aos ribeirinhos não resta senão escutar o ruído do mar finalmente apaziguado e contemplar as transformações no ambiente.


how to quote

LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Após a tempestade. Arquiteturismo, São Paulo, ano 05, n. 050.03, Vitruvius, abr. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/05.050/3860>.


Há expressões recorrentes para definir, de uma maneira tranquilizadora, o momento que se segue à tempestade: “o silêncio após a tempestade”, “depois da tempestade, a bonança”. Essas frases são, certamente, belas, no entanto, não é menos certo que não são exatas, posto que se sabe que, com frequência, após uma tempestade contam-se os mortos e anota-se a destruição, e isto nada tem de tranquilizador. Mas os desastres naturais fazem parte da história dos homens, e seja devido a mudanças climáticas ou porque se ocupou um espaço geográfico inadequado, está-se sempre a espera do próximo desastre natural: em dado lugar um terremoto, em outro uma nevasca, acolá uma inundação.

E já que citamos a “história dos homens”, é mister reconhecer que sempre houve uma associação entre o mar e a tempestade. Contudo, em um período em que a única maneira de vencer as longas distâncias entre os continentes era através dos mares, os naufrágios e as suas consequentes mortes faziam parte do cotidiano de certas populações. Mas com Alain Corbin (1) aprende-se algo ainda mais inquietante: nos séculos passados, havia a sinistra figura dos “fazedores de naufrágios”, ribeirinhos que, em noites de tempestade, tentavam atrair, com luzes, as embarcações para os recifes, como as mariposas são atraídas por luzes que, finalmente, terminarão por aprisioná-las. Nesse caso a intenção era clara, causar um naufrágio para pilhar embarcações e náufragos. Ora, há que se reconhecer que histórias como estas estão mais próximas do pathos romântico do que do sublime kantiano.

É fato conhecido que após uma tempestade no mar, aos ribeirinhos não resta senão escutar o ruído do mar finalmente apaziguado e contemplar as transformações no ambiente. Observar, então, com certo assombro obstinado que o desenho da costa mudou, que as falésias, mais uma vez, avançaram terra adentro e que o píer, outrora uma referência e um fator coletivo de segurança, não existe mais. Além disto, há os incontáveis destroços que jazem sobre a areia: embarcações em ruínas atiradas à areia pelo ímpeto da própria tempestade, cadáveres de peixes e de homens, e destroços que o mar devolveu a terra, a maioria deles heteróclita por demais para ser enumerada.

Mas dentre esses destroços (que não são enumeráveis), os mais reveladores do grau de intensidade da tempestade são os troncos que o mar devolve a terra; ora, um simples tour na costa em uma manhã a qual foi precedida por uma noite de intensa tempestade sempre exibe as suas vítimas. Um tronco de uma árvore, talvez uma quase irreconhecível Paineira, poderia estar entre essas vítimas. Mas ali não se trata mais de uma árvore, uma vez que o seu estatuto alterou-se por completo: se podem existir “ruínas naturais”, e se o emprego desse termo não for um abuso de linguagem, então aquela forma escura sobre a areia é uma ruína. Arrancada pelas raízes de alguma ilha próxima, foi entregue pela tempestade ao mar para que este fizesse a sua obra: cinzelando contornos, aparando elementos desnecessários (quid dos pequenos galhos?) e modelando a forma final que, finalmente, reapareceria ao público. No término, conservou-se apenas o suficiente para que a nova forma seja ainda reconhecida em seu passado vegetal (uma escultura em mármore é ainda mármore, e seus veios são sempre visíveis...).

Trata-se, então, de uma escultura – que já surgiu em ruínas – trabalhada pelo mar. A este o tronco deve o seu ser, e uma fenomenologia acurada mostraria a sua nova existência: formas que já foram raízes se deixam arrastar indolentemente pela areia, os galhos, outrora verticais, se contentam em oferecer uma resistência frouxa e inútil contra as vagas; no vazio côncavo do seu tronco, formou-se uma piscina, pequena demais, no entanto, para ter uma nova função; e das orquídeas que cobriam o seu tronco não restam senão filamentos negros que, esquecendo-se da sua morte, tentam ainda agarrar-se a sua antiga vida.

Eis o balanço apenas parcial de uma tempestade que, em algum lugar, retirou da terra uma árvore transformando-a, pacientemente, em uma obra anônima e bela. E poder-se-ia dizer, se isto não fosse uma personificação, que a terra é o elemento fértil que cria inúmeros seres, mas que cabe ao mar o trabalho da criatividade.

nota

1
Corbin, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

sobre o autor

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Autor do livro Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.

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