Milhares de turistas povoam as ruas de Praga no réveillon ano 23 após o fim do comunismo, as ruas da cidade que deixou o grau zero do turismo para se tornar uma das cidades mais visitadas no mundo. Milhares de turistas de todos os lugares do mundo podem observar – mas não há garantia alguma que eles o façam – , do alto da colina onde se encontram o castelo e a catedral, um conjunto de telhados recém-renovados, trechos de fachadas também recém-renovadas e, caminhando pelas ruas e ladeiras, apreciar os diferentes padrões geométricos das novíssimas calçadas em pedras pretas e brancas – que não são portuguesas porque são tchecas – que, como os telhados e fachadas, parecem estar contentes e aliviados de ainda terem sido completados antes da atual crise financeira dita europeia. Os telhados são limpos e arrumados como os de Salvador em 1993 ou os de Lisboa em 2000, as fachadas estão tão bem cuidadas como as de Viena ou Munique e as pedras tcheco-portuguesas das calçadas – novíssimas mesmo e super bem executadas – mostram o caminho contrário ao que o prefeito de Salvador resolveu tomar recomendando que os proprietários de imóveis retirassem todo o calçamento em pedra portuguesa da cidade, seguindo o seu exemplo no porto da barra.
Os milhares de turistas que caminham pelo centro histórico de arquitetura materialmente muito bem conservada em Praga concretizam em datas como o Réveillon a multiplicação da experiência do corpo do pedestre na cidade, são dezenas, centenas, milhares de corpos na cidade, em sua dimensão quase essencial de serem efetivamente corpos (pouco ou nada pensantes), na sua automação comportamental das multidões, seguindo e integrando ao mesmo tempo a horda que cumpre e conduz uma série de desafios físicos – sim, os corpos no centro histórico alimentam um novo esporte – estabelecidos pelo conjunto formado pela topografia urbana.
O novo esporte – muito além da diversão, é preciso justificar a viagem, o jantar da noite, a bebedeira depois do jantar – oferece ao turista do centro histórico uma seqüência de subidas a torres em escadas e elevadores, travessias de um lado a outro do rio sobre pontes de pedra e concreto, subidas a colinas através de ladeiras íngremes, escadas e planos inclinados: os corpos no centro histórico dedicam-se a subir e descer dezenas e dezenas de degraus, abrir caminhos por entre o fluxo e o contra-fluxo da grande multidão, a repetir as mesmas fotografias impressas nos guias de turismo e a procurar incessantemente pelas recompensas de tanta atividade.
Recompensas estão garantidas para os corpos no espaço do centro histórico em Praga através da invasão das lojas de souvenires, todas iguais, todas baratas, mas não lojas de souvenires artesanais com produtos com aquela estética de parecer ser feito a mão, não, nada disso, lojas de souvenires em cadeias, com filiais em cada rua e viela do centro antigo, com artigos luminosos e espelhados, todos industrializados e produzidos em algum país muito distante para garantir que os preços sejam estonteantemente baixos, e através da proliferação de caricaturistas, músicos e vendedores ambulantes de bijuterias a cada 5 metros. As outras recompensas estão disponíveis em restaurantes de comidas locais, ou cadeias de restaurantes de comidas locais, aprimorados até a perfeição para que os corpos dos turistas sejam capazes de reconhecer as marcas de cerveja e o serviço que eles já conhecem dos seus lugares de origem e ao mesmo tempo para que estabeleçam um ambiente “unicamente” local. Nada artesanal, tudo industrialmente local.
E como no caso da pedra portuguesa, Salvador vai na direção contrária a uma fórmula onde uma enorme massa cada vez mais barata é capaz de manter a materialidade do centro histórico; vê-se através do exemplo de Praga o desperdício imenso em uma cidade cujo centro antigo, antes histórico, por si só já dividido em cidade baixa e alta: imaginemos as ladeiras da montanha e da conceição dedicadas exclusivamente aos milhares de corpos de turistas na cidade – e porque não de moradores também – subindo-as e descendo-as a pé ou com a ajuda de tobogãs e elevadores e escadas rolantes e dos planos inclinados, podendo tomar um teleférico da saúde ao terreiro de Jesus e dali seguir com um conjunto de tirolesas entre o que restou do belvedere da sé e o forte de são marcelo, passando por algum topo de edifício no comércio. Do forte de são marcelo à marina através de outro teleférico, a exemplo da Barcelona tão querida pelos baianos, e dali, por um caminho sob a avenida de contorno, subir mais uma vez a pé, por escadas rolantes, planos inclinados ou elevadores, até o largo dois de julho, dali até a praça da sé, mais uma vez subindo e descendo por santa teresa, em um percurso no qual o turista poderia se deleitar com dezenas, centenas de pequenas lojas de souvenir, cadeias mesmo, que se estenderiam homogênea e ininterruptamente até o taboão, até o carmo, até a lapinha!, em um grande desafio esportivo, com várias outras conexões para possibilidades de plataformas altas de onde podem ser reproduzidas as fotos impressas nos guias de turismo. No centro de tudo isso, a exploração de body jumping a partir da ponte do elevador Lacerda, onde um café avarandado em balanço, à frente de sua fachada mais avançada em direção à baía ofereceria a recompensa final ao turista extasiado. Poderíamos assim ao menos ter garantidas as calçadas portuguesas.
Sobre o autor
Márcio Correia Campos é Professor Assistente da Faculdade de Arquitetura da UFBA, Mestre em Arquitetura pela Universidade Técnica de Viena, Áustria.