Imagine Paris. Agora, imagine Paris após um apocalipse.
Assim era Beirute nos anos de 1990. Recém-saída de uma guerra civil (1975/1990), a capital libanesa, um dia conhecida como Paris do Oriente, estava destruída. Essa imagem de Beirute, lida na apresentação da capital libanesa no guia Lonely Planet, preparou-me para conhecer uma cidade em transformação.
Do caminho do aeroporto ao hotel, novas luzes e cores: o amarelado das construções se misturava com os toldos listrados de branco, verde ou azul, que protegem as varandas do sol. Já no centro, um tapume não protegia nada do sol, mas isolava uma das quadras centrais que esperam pelas novas construções. Revelou-me uma imagem conhecida, e a frase: “como Barcelona tem seu landmark, Beirute também terá o seu”. O rosto de Jean Nouvel ilustrava os tapumes do que será a “torre Agbar” libanesa, uma referência ao projeto do arquiteto na cidade espanhola. Uma quadra adiante, e mais tapumes: desta vez, a promessa de um quarteirão inteiro sustentável, com edifícios de uso misto e comércio no térreo.
Era apenas o começo do que Beirute ainda ia me mostrar: a movimentação em torno de um centro em transformação. E que faz pensar na riqueza de ter tanto espaço à disposição para repensar mobilidade, densidade, uso misto, espaços públicos. Rem Koolhaas mesmo lembra a sorte que teve por começar sua carreira em uma Roterdã devastada pela guerra – e, por isso, com muita oportunidade de trabalho, poucos recursos e muita criatividade. “A pobreza é um ótimo ambiente para começar a carreira”, pontuou o holandês.
Nesta Beirute em transformação, no entanto, nota-se certo conflito de investimentos e de prioridades. Quem não gostaria de ter à disposição uma área tão nobre de uma cidade? Os especuladores imobiliários que o digam. Parte do centro – a downtown – foi reconstruída exatamente como era antes da guerra civil. Outra parte foi derrubada, e recebeu projetos de todos os tipos. Quem visita Beirute hoje se impressiona com a ousadia de alguns deles. Além do edifício assinado por Nouvel, a região central tem obras de Foster & Partners, Herzog & de Meuron, Arquitectónica. Arquitetura arrojada ao lado de edifícios assinados por arquitetos locais com o slogan-clichê sobre ‘novos conceitos de viver’ e traços quase neoclássicos.
Entre a memória, o futuro e o Real Estate
Há um responsável por toda a transformação da zona central de Beirute. Chama-se Solidere, empresa privada (uma joint-stock company) a quem o governo libanês deu a liberdade de projetar um novo centro. Sim, uma carta branca. Formam a Solidere ex-proprietários de lotes na região central – o que inclui cerca de 4700 de donos de pequenos espaços no souk, o antigo mercado árabe, que brigaram por uma quantia na empresa. O maior acionista é Saad Hariri, primeiro ministro libanês.
No início dos planos – e ainda hoje – polêmicas em torno dos projetos não faltaram. Todas incluíam uma linha comum: a herança histórica, o passado, as lembranças. Mas não eram as lembranças de uma só cultura. O Líbano possui 18 comunidades multirreligiosas, que passaram a evocar um passado e a chamar por suas rotas próprias: do passado fenício à conquista muçulmana no século 7; da invasão das Cruzadas no fim do século 11 ao passado Otomano e até a colônia francesa.
Ex-proprietários de casas ou comércio em downtown, historiadores, planejadores urbanos e arquitetos desaprovaram ações da Solidere. Houve algumas boas consequências disso, com a revisão dos primeiros planejamentos e seleção de edifícios para serem preservados. Mas, claro, que não agradaram a todos: reconstruir uma cidade é sempre problemático, mais ainda após uma guerra civil em um país de tantas culturas onde o desaparecimento de determinados edifícios evoca problemas de identidade e poder.
Entre os escolhidos para reconstrução, está o conjunto em torno da Place d’Étoile. Jim Muir, jornalista da BBC, conta que chegou a Beirute pela primeira vez em 1975. Sem conhecer a cidade, parou ao lado da praça dos Mártires, no coração da downtown. “Os souks enchiam as ruas estreitas perto da praça, pulsando vida. Fui bombardeado por cores, sons e cheiros”, escreve em um artigo para a BBC (1). Três meses depois, a guerra começou. Trinta e seis anos depois, chego à cidade e à praça dos Mártires.
Era ainda cedo. O primeiro passo era almoçar. O segundo, ir a pé até downtown. Após o primeiro meluquie de minha vida, em um restaurante simples em Gemmayzeh , era hora de descobrir Beirute. Downtown estava perto. Primeiro, a mesquita. Depois, a praça dos Mártires. E como chegar à Place d’Étoile? No mapa era simples, mas todos os acessos estavam obstruídos por cercas móveis e um guarda – e aqui, o mínimo que eles carregam é uma AR 15, nada incentivador. Até descobrir que aquilo não significava proibição de entrada, e de entrar meio desconfiada, já tinha dado a volta no local.
A downtown de 2011 e a de 1975 são separadas por uma guerra civil, pela invasão de Israel em 1982 e o conflito em 2006, pela especulação imobiliária, pelo medo. O centro continua com seu comércio – mas desta vez sem barulho, cores, cheiros e vida. A recuperação dos edifícios foi exímia. Mas no lugar do mercado árabe está o shopping de luxo. E, em volta do relógio que marca a praça, cafés e pequenos restaurantes com seus narguilês a postos recebem turistas e uma seleta sociedade libanesa, com seus filhos correndo e brincando, sempre cuidados por babás filipinas ou africanas (as filipinas são sempre mais caras). Um entardecer ali é lindo. Mas como seria antes?
Transformações similares foram feitas em outras áreas. Como a dos hotéis de luxo. O antigo Phoenician voltou ao seu glamour do início dos anos de 1970 – ainda que a seu lado o Holiday Inn nos faça lembrar da guerra, com suas paredes e fachadas baleadas. O edifício foi ocupado pelos falangistas em 1975, grupo cristão que lutava contra as Forças Unidas, uma união de milícias pan-árabes que defendiam a presença e a influência palestina. Os dois brigaram pela ocupação do mais alto edifício no bairro hoteleiro.
O futuro do Holiday Inn? Há quem aposte na reconstrução. Há quem sonhe com um memorial de guerra nos primeiros andares, e residência acima. Hoje, é uma lembrança de um período difícil, onde quem vivia em uma parte da cidade não cruzava para a outra, e vice-versa. A parte leste e a oeste, a cristã e a muçulmana. Entre as duas, o centro da cidade, a downtown: um território sem lei e sem dono.
O prédio ainda não foi demolido por seu tamanho e pelo perigo que causaria aos edifícios vizinhos. E não foi recuperado por seu tamanho e alto custo. O local não pode ser visitado, tampouco fotografado de perto – tanques e exército tomam conta de seu térreo, e um dos militares pediu para que não fotografássemos sua presença ali. Um dos argumentos para a não-entrada de pessoas é a de que o Hotel Phoenician não quer o mau-uso da perfeita vista do Holiday Inn, temendo um possível ataque. Sim, ainda.
E permeando tudo isso, finalmente, os star architects.
Jean Nouvel com o Landmark, um empreendimento de uso misto de 42 andares com hotel, apartamentos e um bloco horizontal para comércio e lazer. O suíço Herzog & de Meuron com o Beirut Terraces, residencial que promete reviver um estilo de vida que integra espaços exteriores e interiores. São 130 unidades, todas diferentes, com vista para a marina.
E entre um tapume e outro, o 3Beirut, de Foster & Partners. Toda uma quadra, ali perto da marina e do bairro dos hotéis de luxo. Promete uma via para pedestres cruzando seu térreo, onde também haverá lojas, cafés, restaurantes, academia, uma galeria de arte e um jardim público. A fachada norte, envidraçada, garante a vista da marina, e a cobertura verde promete ser a primeira na cidade. Isso, claro, para quem nunca esteve em um terraço coberto pelas parreiras nas casas da pequena Bcharre, a 100 km dali.
Não, Beirute não é mais a Paris do Oriente. Tampouco a Paris após um apocalipse. É uma cidade em busca de identidade, cujo centro se aproxima a uma colcha de retalhos: entre quadras inteiras demolidas e prontas para um novo empreendimento com assinatura internacional; hotéis de luxo em volta do simbólico e baleado Holiday Inn; casas em processo de demolição no bairro de Gemmayzeh, ao lado de bares, baladas e restaurantes; edifícios reconstruídos levando em conta exatamente as formas originais; o antigo souk substituído por um shopping center de luxo. Aqui, os olhos não podem reclamar de monotonia. Mas talvez se perguntem sobre o passado demolido; e sobre o futuro nas garras das gruas.
nota
1
MUIR, Jim. “Beirut rises from the ruins”. BBC News, Londres, 16 dez. 2004 <http://news.bbc.co.uk/2/hi/programmes/from_our_own_correspondent/4097965.stm>.
sobre a autora
Bianca Antunes é editora da revista AU-Arquitetura & Urbanismo (Editora PINI). Jornalista formada pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade São Paulo (ECA-USP) em 2000, tem mestrado em jornalismo na mesma instituição concluído em 2008, na área de investigação Teoria e Pesquisa em Comunicação/Linguagem e Produção de Sentido, no qual estudou representações e produção de identidade no discurso midiático. É autora dos livros Livraria Cultura – Fernando Brandão, Casa Natura e Nucleora, Sistemas de Alimentação, todos da Editora C4.