O Museu Afro Brasil inaugurou na Oca, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a exposição “Da cartografia do poder aos itinerários do saber”, celebrando seu décimo aniversário. A mostra é um exemplo da ousadia curatorial de Emanoel Araujo, fundador da instituição, ao reunir mapas, instrumentos e peças coloniais do acervo do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, Portugal, com seu enquadre de “coleção científica”, itens do acervo permanente do próprio museu e obras de arte contemporânea.
Tudo isto está justaposto e embaralha os discursos e as percepções sobre África, Portugal e Brasil, colonial e contemporâneo, arte, utensílios, memória, documento histórico e antropológico, sobre produção “autêntica” e aquela coletada pelo colonizador e assim por diante. A perplexidade suscitada por este projeto impele o olhar a desviar de qualquer ponto fixo, tornando Europa, África e Brasil territórios fluídos, com fronteiras, histórias e discursos intercambiantes (o colonialismo e a escravidão sendo, claro, temas centrais). Nesta exposição, a curadoria é realizada também por Paulo Amaral e Catarina Pires.
Além do exuberante acervo permanente, outras exposições estão em cartaz em sua sede no Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, no Parque do Ibirapuera, entre elas “Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão”, com um extenso acervo de máquinas, ferramentas e utensílios coloniais; “O escultor Francisco Brenand: milagres da terra, dos peixes e do fogo” e “Imagens do preconceito”, com objetos cotidianos e banais que materializam o preconceito, mostras que merecem várias visitas e retornos.
O conceito do museu está embutido em seu nome, AfroBrasil ou Afro Brasil, unindo dois continentes e mundos culturais e criando nova espessura de significados fluida no espaço e no tempo. Não é o museu do negro brasileiro ou museu da cultura negra brasileira, porque isto implicaria em um olhar estático como elementos externos e separados, que vieram a um Brasil que já existiria, e cuja presença pode ser identificada de forma “isolada”. África, neste caso, não indica apenas o passado colonial e escravocrata brasileiro, mas é também uma referência atual, como mostraram as várias exposições de arte contemporânea daquele continente, das quais lembro em especial a de Gerard Quenum, do Benin. África, para o Brasil, não é apenas uma origem, um passado, de onde viemos, mas um continente e um mundo com o qual seguimos em diálogo permanente, compromisso ontológico da condição de ser brasileiro.
“Afro Brasil” envolve, portanto, uma construção complexa e distante do clichê da memória da formação do País, do discurso do Outro que vem de fora, da miscigenação cordial e da folclorização do diferente. E longe também do discurso étnico de autoafirmação fechado e ufanista, muitas vezes produzido pelos próprios grupos identitários. O Museu não propõe mostrar a “contribuição para” ou “em”, segmentada no tempo ou no espaço, mas afirma uma presença primordial, básica, fundante, como foi a das populações indígenas, como foi a dos imigrantes e de todos os grupos que constituíram o que se tornou o Brasil. Reconhecer o Outro e sua alteridade é um primeiro passo importante, mas é necessário trabalhar a alteridade construindo uma história comum plural, com presenças que não vêm de “fora” (já que o Brasil é uma nação da periferia, “do fora”), mas que estão na fundação de uma história comum do que se tornou o Brasil (incluindo a violência e a escravidão) e que continuam a se construir no presente.
A abordagem de olhar para cada grupo como “de fora” tem sido consagrada em exposições, especialmente as que abordam a “contribuição” ou a “presença” dos italianos, dos japoneses, dos franceses, dos portugueses, dos libaneses, dos ingleses, dos judeus e outros, até dos índios (vistos como antepassados e sem uma história que continua a se desenrolar). Cada grupo é visto como uma identidade em essência, que veio contribuir para o imenso caldeirão de miscigenação da cultura brasileira. No caso das comunidades de imigrantes, para além de uma celebração do pitoresco, da culinária, das festas, da dança, dos costumes, do vocabulário, das expressões típicas, existe a dificuldade em lidar com a diversidade fora dos limites do exótico e da contribuição que vem acrescentar um tempero, um sabor, à mistura culinária; são contribuições que teriam ficado paralisadas como essências ou logo diluídas e cozidas ao caldeirão das misturas cordiais.
O que há de problemático nesta concepção? Tomando como exemplo a presença indígena, há uma oscilação entre olhar os índios como remanescentes imutáveis, mais ou menos exóticos e “naturais”, dos primeiros habitantes puros e idílicos da terra que depois se tornaria o “país” Brasil e, de outro lado, “assimilados”, como se não fosse possível ser índio em diferentes contextos sociais, geográficos e históricos, inclusive andando de metrô e morando em São Paulo. A identidade é uma produção do presente, por mais que ela mobilize tradições e memórias.
Isso é igualmente complexo e dramático no caso dos negros, cuja presença e cultura foi negada e apagada, processo excludente de embranquecimento cultural que desvalorizava toda a sua produção. Por isso, o museu recusa toda linearidade e cronologia, mostrando que a presença afrobrasileira e de suas variações culturais está em tudo e em todo lugar no Brasil desde sempre, escravos recém-chegados ou abolicionistas e artistas que elaboraram política e artisticamente sua identidade, presença claramente identificada ou não, africana ou afrobrasileira ou brasileira e outros aportes e assim por diante. Não é uma diluição, é a afirmação complexa de uma identidade multifacetada que continua a se recriar em diálogo com outras culturas. Os afrobrasileiros são também rostos e nomes individuais, sujeitos de sua própria história, mesmo quando a escravidão os tratou como mercadoria.
Assim, o Museu Afro Brasil propõe outra chave de leitura do Brasil como nação: longe do discurso do cadinho étnico singular e recusando toda ideia de essência ou pureza, propõe que olhemos para a cultura, para o Outro e reconheçamos que somos como nação e como projeto social, cultural e político de país: múltiplas identidades repletas de tradições e de fissuras, de origens e de rupturas, de completudes e de fragmentos, de encontros e de violência, de originais e de cópias, popular e erudito, de indivíduos e de coletivos.
Do ponto de vista da concepção museográfica a este aspecto corresponde outra subversão do curador: no museu estão lado a lado gravuras originais e cópias, fotografias cotidianas e desenhos, “obras de arte” valorizadas pelo mercado e artesanato popular, souvenir e criações coletivas, documentos e arte, antiga e contemporânea. Mais do que uma discussão sobre o original e o autêntico, embaralha os conceitos de arte, de documento, de história e de memória, sugerindo uma reflexão sobre o sujeito individual ou coletivo que a produz, seu suporte, seu uso, sua recepção e assim por diante. Um exemplo: as máquinas e ferramentas coloniais são obra do sistema colonial escravista, mas também do engenho artesanal dos escravos africanos, que em muitos casos já tinham o conhecimento na África.
Tudo isso faz do Museu Afro Brasil provavelmente o mais original museu da cidade. Sua não linearidade chega a causar certa vertigem aos nos perdermos nos ambientes e passagens e cruzarmos paredes e fronteiras que criam ambientes em que as peças podem ser olhadas de tantas formas que suprimem o ponto de referência fixo, como são as identidades, com seus excessos e adornos. Emanoel Araujo mostra ainda que a criação de um contexto “cenográfico” não se faz com a diluição da importância do acervo da proposta cultural e política da exposição. E mesmo que o museu seja uma forma de entretenimento, sua função primeira é educativa; assim, não há concessão ao modismo tecnológico de apertar botões que mexem imagens digitais para divertimento aleatório.
O Museu Afro Brasil propõe uma leitura e um espaço que oferecem múltiplas possibilidades de pensar o Brasil. Explorar esta leitura em uma cidade tão cosmopolita culturalmente e ao mesmo tempo tão excludente e violenta socialmente como São Paulo é o mínimo que se pode fazer a partir do projeto de Emanoel Araujo neste museu que, AfroBrasil, é sobretudo uma proposta de Museu Brasil e uma reflexão e provocação de como sermos brasileiros e de como nos inserimos no mundo como habitantes de um espaço e tempo comum e múltiplo.
sobre o autor
Roney Cytrynowicz é historiador da Narrativa Um – Projetos e Pesquisas de História e autor, entre outros de Memória da barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial (Edusp), Guerra sem guerra. A mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial(Edusp/Geração), e organizador de Dez roteiros históricos a pé em São Paulo (Narrativa Um).