Com a Cidade do México como destino final e tendo que fazer, necessariamente, uma conexão em “At lanta” (pronuncia-se praticamente dessa forma), onde a Delta Airlines concentra suas operações, resolvo passar quase um dia na capital do estado da Geórgia, antes de seguir para o país vizinho. Era agosto de 2012 e fazia calor nos Estados Unidos – felizmente, a temperatura seria um pouco mais agradável durante a estadia no México.
Desembarco em um dos aeroportos mais movimentados do mundo, o Hartsfield Jackson Atlanta International Airport. Passo pelo detector de metais sem cinto e de meias – exagero desnecessário tendo em vista as denúncias recentes sobre as falhas de segurança nos aeroportos americanos – e explico o motivo do desembarque umas três vezes a um funcionário com traços orientais – o visto americano havia sido tirado três anos antes, para uma viagem (infelizmente cancelada) para Nova Iorque, onde iria participar de uma mesa redonda na Columbia University coordenada por Kenneth Frampton, premiado há pouco na Trienal de Arquitectura de Lisboa (1).
Por uma incrível coincidência, encontrei um motorista português. O mais incrível é que entendi errado o valor da corrida. Por outro lado, ele foi extremamente atencioso em localizar a William R. Cannon Chapel (1981), obra de Paul Rudolph na Emory University. O dean de Yale realizou pelo menos duas obras primas em outros campi universitários nos Estados Unidos além do Yale Art and Architecture Building (1964), o Jewett Art Center, Wellesly College (1958), e a Cannon Chapel. Seu maior e controvertido trabalho na área, não obstante, é o campus da Universidade de Massachussets em Dartmouth (2), de 1969. A relação com a Emory provavelmente se estabeleceu pelo fato de seu pai ter sido um dos primeiros graduados no curso de teologia da universidade, na Candler School of Theology.
O campus principal da Emory, concebido por Henry Hornbostel, arquiteto graduado em Columbia com passagem pela École des Beaux-Arts de Paris, situa-se em meio ao subúrbio de Druid Hills, projeto de Frederick Law Olmsted, o mesmo do Central Park de Nova Iorque. A localização é resultado de uma doação de Asa Griggs Candler, fundador da Coca-Cola. Universidade e bairro estabelecem um harmonioso diálogo entre o sotaque francês e a tradição inglesa. Chegando ao campus, contudo, flagro uma típica cena suburbana americana, em uma área residencial próxima.
Depois de algumas paradas para pedir informações, sinto-me seguro para dizer ao motorista que gostaria de descer. Queria me aproximar da capela, a pé, aos poucos. Não tive dificuldade em encontrá-la. Subi uma pequena colina, passei pelo Michael C. Carlos Museum de Michael Graves e após atravessar um típico quadrangle ou quad, voilà!
Avisto a elevação sudeste com a rampa de acesso, subo cautelosamente e encontro a porta fechada. Desço, reparo a textura do concreto, a forma dos pilares associados aos tubos de queda aparentes, como uma poesia arquitetônica sobre a mecânica do equilíbrio, sobre o estático e o fluido, sobre a luz e a sombra, e dou a volta para a parte baixa, espécie de pilotis. É uma área de convivência. Subo uma escada com detalhamento refinado – degraus de convite, um cuidadoso jogo entre mureta de concreto e corrimão em ferro – que conduz a outra porta, cujo desenho se une, elegantemente, ao da esquadria ao lado.
Da área de convivência, passo a uma pequena praça cuja concepção cria um ambiente na medida adequada, articulando o novo ao antigo através da exploração do desnível do terreno, com bancos, vegetação etc. O “monumento isolado”, visto através de imagens antes da viagem, assume uma complexidade imprevista, uma sábia inserção em um lugar, ajudando em sua configuração e dialogando com as pré-existências.Rudolph gostava de enumerar o que chamava de princípios ou DNA da arquitetura: sítio, espaço, escala, estrutura, função e espírito. Em depoimento encontrado por acaso na internet, S. W. Cofer escreve que a Cannon Chapel é a obra mais humana e intimista, a que melhor expressa a sensibilidade do arquiteto em relação ao sítio, espaço, circulação, luz e textura. Como queria Rudolph, cada um elabora sua própria lista de princípios arquitetônicos. Se o sítio é fundamental – e o espaço não se discute – à escala, estrutura, circulação, função, textura, luz e espírito poderiam ser somados ainda dois aspectos discutidos pelo arquiteto em texto dos anos 1950 (3), mesma época da definição de seus princípios, os quais ainda citava pouco antes de falecer.
São eles a relação da obra com o solo e com o céu. Ao rodearmos a capela, percebemos que ora ela se eleva sobre pilotis ou falsos pilotis ora sobre uma espécie de pódio. Mais do que a variação pilotis/pódio, é a constante associação entre pilares/tubos de queda que nos instiga sobre aquela relação. A descarga dos esforços estruturais no solo, o equilíbrio estático, une-se ao recolhimento da água que cai do céu, em um equilíbrio estético: o peso se dilui. A textura do concreto aparente, por sua vez, faz a aspereza transmutar em diálogo silencioso entre a luz e a sombra, entre o reflexo da luminosidade celeste e o mistério da escuridão.
Restava uma última opção para tentar flagrar tal conversa no interior da igreja, a entrada sudoeste. Antes dessa derradeira tentativa, reparo que a capela cola-se à edificação ao lado e no acerto das cores, texturas e materiais utilizados, em harmonia com o mármore das fachadas e as coberturas em telha cerâmica dos edifícios próximos. Infelizmente, para minha decepção, a capela estava, de fato, fechada.
Ao longo dos anos, me acostumei com situações como essa. Para ficar nas igrejas, só consegui entrar na Capela de São Francisco de Assis, de Oscar Niemeyer na Pampulha, depois de duas ou três tentativas frustradas. Em Milão, consegui entrar no Duomo, mas em compensação o exterior da catedral estava envolto em tapumes, em razão de obras de conservação. Não obstante, em um mundo onde (acho) museu algum abre às segundas-feiras, já pude visitar, o Museu Brasileiro de Escultura, de Paulo Mendes da Rocha, sozinho e com as luzes apagadas; e o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, abriu suas portas exclusivamente para mim e um amigo que me acompanhava. Coisas da vida de qualquer arquiteto-viajante, expressão que é quase uma redundância.
Um pouco cansado, me dirijo para um café/ livraria, descanso, tomo um café horroroso, me informo como chegar ao centro e fico conhecendo o/a Marta – Metropolitan Atlanta Rapid Transit Authority – sistema de transporte coletivo integrado da cidade. Apresentações feitas, sigo direto para a estação Arts Center para visitar o High Museum (1983) de Richard Meier, irmão mais velho do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA, 1995) e do Getty Center (1997) em Los Angeles, e a ampliação realizada por Renzo Piano. Piano foi relativamente discreto em sua intervenção, fora pequenos deslizes como o sofrível detalhamento da marquise de acesso. A ampliação lembra vagamente o Bauhaus Archiv, obra tardia de Gropius em Berlim, em sua branca elevação denteada. A compreensível alteração do acesso em função da posição da estação Arts Center, entretanto, esvazia o sentido teatral da entrada imaginada por Meier – talvez tão interessante, como registro de uma época, quanto a presença lateralmente dissimulada do MACBA na Plaça dels Àngels.
Piano, entretanto, seria impiedoso com a obra de Rudolph. Durante a polêmica sobre a demolição do Blue Cross Blue Shield Building, em Boston, para a construção de uma torre de oitenta andares projetada pelo italiano, chegaria a afirmar que se o edifício de Rudolph não fosse demolido para a construção de uma praça, sua torre poderia parecer muito agressiva (4). Algo semelhante aconteceu com a Riverview High School, em Sarasota, que não resistiu a argumentações semelhantes e foi destruída em 2009.
Voltando ao museu, ele possui em seu acervo uma bela coleção de arte decorativa e design, que inclui nomes de peso como Josef Hoffmann e Frank Lloyd Wright, entre outros, e surpresas como o Skyscraper Furniture do vienense émigré Paul Frankl – não confundir com o historiador da arte alemão homônimo – que tinha clientes como Fred Astaire e Alfred Hitchcock.
Saindo do museu, vou até Downtown e almoço perto do Hardy Ivy Park, em um restaurante que me chamou a atenção pelos tonéis de fermentação de cerveja logo na entrada. Entusiasmado pela sorte de encontrar uma microcervejaria no caminho, entro, sento e, ao abrir o cardápio, logo encontro listada uma Dogfish Head 60 minute IPA. Entre a oportunidade de experimentar uma cerveja local ou uma das lendas de Sam Calagione, confesso, optei pela última. Como ainda tinha o que visitar, não seria aquele o momento de provar uma cerveja produzida na Geórgia.
Na verdade eram mais duas as paradas previstas, o Equitable Building (1968) de Skidmore, Owings and Merril (SOM), para variar, envolto, no térreo, em tapumes; e a Atlanta Central Public Library de Marcel Breuer. Em relação ao primeiro, não deixa de ser irônico o fato de que, posteriormente, outro prédio de SOM (o Georgia-Pacific Center, 1982) o tenha sobrepujado em arrogância.
Já no caso da Central Public Library (1980) de Breuer, sua horizontalidade acaba a destacando do entorno verticalizado – afinal trata-se de um equipamento público, não da concretização arquitetônica de interesses particulares. Seu parentesco com o Whitney Museum de Nova Iorque, ao que parece, foi proposital, já que foi o museu que despertou a atenção dos idealizadores da biblioteca para a obra de Breuer. Trata-se de uma escultura de concreto, cuja composição ocorre por subtração. Bem próximo a entrada, havia um descarte de livros onde encontrei um sobre o campus da Emory University. Com essa volta no parafuso, e a hora do embarque se aproximando, retorno ao Hartsfield Jackson a tempo de saborear, finalmente, uma cerveja local – uma Sweet Water 420 Pale Ale – tão boa quanto a lenda de fama internacional. Aliás, o lema da cervejaria é “don’t float the mainstream”.
notas
1
Algo do que iria apresentar lá, e que era o motivo da minha viagem para a capital mexicana, pode ser visto no seguinte texto: ROCHA, Ricardo. Lúcio Costa e a Argentina: da boa tradição ao “ser americano”. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 096.02, Vitruvius, dez. 2009 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.096/3012>.
2
Cf. MEHRTENS, Cristina. Identidade brutal: Paul Rudolph, a cidade e a renovação do moderno. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 090.02, Vitruvius, nov. 2007 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.090/189>.
3
To Enrich Our Architecture. Journal of Architectural Education, vol. 13, n. 1 (Spring, 1958), p. 9-12. Disponível em <http://www.ithaca.edu/faculty/brcak/fff/readings/paul-rudolph.pdf> acesso em 12/02/2014.
4
Ver HAY, David. Another Building by a Noted Modernist Comes Under Threat, This Time in Boston. The New York Times, Nova York, mar. 2007 <http://www.nytimes.com/2007/03/07/arts/design/07rudo.html>.
sobre o autor
Ricardo Rocha é arquiteto, míope (mas usa óculos) e professor na Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.