É muito difícil escrever sobre uma única praça de uma cidade que conta com pelo menos duzentas (em uma estimativa modesta), e com inúmeras internacionalmente famosas, como a Piazza Navova, a Piazza Barberini, del Campidoglio, Farnese, della Rotanda, apenas para citar as mais ilustres. E cada turista que, por sorte ou por ventura, tenha conhecido Roma, terá certamente a sua preferida ou preferidas (nesse caso, deixemos abertos os caminhos que levam à infidelidade), e criará, a partir dessa experiência de viajante, uma cartografia romana toda ela particular, ou, se preferirem, uma verdadeira cartografia afetiva da antiga cidade dos Papas. Mas, na nossa cartografia – afetiva e aleatória – dessa cidade, há uma praça específica, nem mais bela nem mais ilustre que as já citadas: a Piazza del Popolo, que poderia ser sucintamente descrita como dois semicírculos que nascem de um quadrado, com as suas duas igrejas barrocas que fazem a guarda de honra da Via del Corso, antiga estrada romana que, da atual Porta del Popolo, antiga Porta Flaminia, atravessava a cidade e ladeava o Ara Pacis, templo que o Imperador Augusto mandou erigir em honra à paz.
É, de fato, assaz difícil dizer o que faz desta praça um lugar especial, ou, dito de maneira mais radical, um lugar excepcional, posto que estamos em Roma, cidade sobre a qual é difícil escrever sem cair e recair no exagero, na redundância ou – o que é bem pior – no lugar-comum. E, assim, imaginaria o incauto turista, atiçado pelo seu senso republicano, imaginando que a praça tem esse nome porque, “como todas as praças, pertence ao povo”. Ledo engano, como podemos ler: “A Igreja de Santa Maria del Popolo foi construída no século XI e ampliada um século depois, e teve esse nome por causa das árvores que a circundavam (populus, pioppo) e o transmitiu, depois, a própria praça” (1). Então, aprendemos que a praça não “pertencia ao povo”, mas, se devesse pertencer a alguém ou a algo – o que é, reconheçamo-lo, discutível – seria ao singelo pioppo, árvore da família Salicaceae, ou dito de modo ainda menos científico, árvore que entre nós chamamos de Choupo ou Álamo. Resta explicar, ainda, que a Igreja de santa Maria del Popolo foi a primeira igreja da praça e localiza-se ao lado da antiga Porta Flaminia.
Mas todas essas informações são impessoais, bibliográficas, e, se fizéssemos o mesmo exercício descritivo com qualquer outra das mais de duzentas praças de Roma, certamente que informações semelhantes não faltariam. Ora, quem se espantaria se afirmássemos que na Igreja del Popolo trabalharam, em diferentes momentos e em diferentes empresas, Rafael, Bramante, Caravaggio e Bernini? Não há nada de excepcional nisso, porque é Roma, é a rica Roma dos Papas. Quando lemos, em Sebastianini, que a Porta del Popolo foi iniciada por Vignola sobre um desenho de Michelangelo (provavelmente, é claro...), e transformada por Bernini, “no tempo de Alexandro VII Chigi, por ocasião da entrada triunfal de Cristina da Suécia” (2), é como se ouvíssemos uma longínqua legenda, mais uma legenda italiana, e nem por isso menos crível. E que tal se disséssemos que o obelisco (ainda não havíamos escrito sobre ele) que está no centro da Praça foi trazido do Egito e colocado no centro do Circo Massimo? E que esse obelisco data do tempo do faraó Ramsés II? (3). Como já escrevemos, em uma cidade com tantas portas romanas, igrejas e obeliscos egípcios, basta escolher uma praça.
Nesse sentido, na falta de uma impossível objetividade, recorramos, então, ao seu oposto, a aleatória afetividade a qual aludimos acima. Então, por que a Piazza del Popolo e não outra qualquer? Afinal, são mais de duzentas... Ora, na tauromaquia há o termo querencia, que é o local da plaza no qual o touro se sente bem e ao qual retorna sempre que possível. E, se pensarmos que, segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola (4), há uma relação estreita entre querencia e “amar ou querer bem”, já traçamos aqui a nossa cartografia afetiva de Roma: de todas as praças, a praça... Piazza del Popolo, no nosso caso, a qual queremos tanto bene. Contudo, dentre todos os momentos passados na Piazza, houve um que não se repetirá, e que, a esse título, se tornou um monumento ao passado: em certo fim de tarde, no céu da Piazza, passada a chuva, formou-se um arco-íris – e não um único, mas dois – que se dobrou como se desejasse ser tão simétrico como as igrejas barrocas que ladeiam a Via del Corso. E eis a minha querência.
notas
1
Sebastianini, cesare Jannoni. Le piazze di Roma. Roma: Schwarz e Meyer editori, 1972.
2
Idem, ibidem, p. 101.
3
Coen, Paolo. Le magnificenze di Roma nelle incisioni di Giuseppe Vasi. Roma: Newton&Compton editori, 2006, p. 63.
4
Real Academia Española <www.rae.es/recursos/diccionarios/drae>.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, autor do livro: Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.