O que acontece na infância guardamos com sete chaves na cachola. São cheiros, estados de ânimo, dor no coração ou dor de barriga, mal-estar, fragilidade ou vigor, sensações múltiplas e simultâneas despertadas por alguma impressão, algum distúrbio, alguma inquietude. Efeito sinestésico poderoso, que se multiplica sem fim quando o adormecido acorda sacudido pelo próprio passado que se apresenta diante dos nossos olhos.
Passei minha infância com as canelas sempre sangrando devido às arranhadas provocadas pelos arbustos cheios de espinhos, às picadas infeccionadas pelas unhas sujas ou aos chutes mais ríspidos dos colegas de pelada. Os pés sempre descalços, pisando terra, cruzando matagais e pulando trilhos de trem, tinham calos cascudos onde só pregos conseguiam entrar. Caçar manga era uma das brincadeiras prediletas – na impossibilidade de trepar os troncos gordos e altos das mangueiras, nos esmerávamos na arte de derrubar os frutos com pedradas certeiras nas hastes que os sustentam –, mas como era bom catar barbante de embrulhos nos armazéns vazios para confeccionar as redes das traves de futebol caixão – mas que nunca duravam muito, pois eram levadas embora pelos policiais que detestavam nos ver correndo pelas ruas feitas exclusivamente para o tráfego de automóveis e ônibus, mas onde se aceitava a contragosto cavalos do tempo do meu avô.
Quando volto à cidade ferroviária da minha infância todas essas imagens pulam dos pacotes abandonados nas cavernas mais escuras da memória – como gosto dessa alegoria de Santo Agostinho... – e ficam se comparando com os vestígios do passado ainda presentes em diversos bairros meio abandonados. Essas sobrevivências são as coisas mais lindas de Araraquara, mas ninguém parece me acompanhar na valorização do seu significado, muito menos nas paixões esquisitas que me despertam. Quando os trilhos, a terra e o mato sumirem da sua paisagem pouco ou nada sobrará da minha infância.
nota
NA – artigo originalmente publicados no Facebook, na série “Crônicas de andarilho”
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora. Morou em Araraquara de dois a quatorze anos de idade.