Em 2013 e 2014 tive a oportunidade de viver na Europa assim como milhares de estudantes da rede de ensino superior brasileira, dentro do Programa Ciência Sem Fronteiras. Mais do que estudar em uma universidade renomada e conhecida como a mais antiga do mundo ocidental – a Università di Bologna – estes anos foram uma das experiências mais significativas da minha vida.
Quando escolhi Bolonha, me atentando às ofertas formativas do curso de Ingegneria Edile – Architettura, não imaginei o que a vivência nesta cidade poderia me proporcionar, muito mais do que qualquer experiência vivida dentro do ambiente acadêmico.
Bolonha (1) é uma cidade que, mesmo quando passamos pelas mesmas construções todos os dias, sempre há algo novo a reparar e, quando resolvemos mudar o caminho, sempre descobrimos algo super interessante, mas que fica ali um pouco escondido, sem chamar muito a atenção.
Bononia, como era chamada pelos romanos, a cidade alcançou uma autonomia administrativa e grande crescimento a partir do domínio daqueles sobre as terras, com a construção de estradas, aquedutos, teatros e termas. A partir do século 10, Bolonha já era uma cidade renomada. Um dos elementos essenciais para o seu desenvolvimento econômico e cultural foi a fundação da Alma Mater Studiorum em 1088, esta última que caracteriza a cidade como o maior polo universitário da Emiglia Romagna nos dias atuais.
Durante sua história, seu cenário urbano e paisagem passaram por muitas transformações. Destaca-se a presença das grandes torres construídas pela famílias mais abastadas. Estas torres, construídas principalmente durante a Idade Média, constituem a identidade do lugar e permanecem no imaginário dos italianos e turistas. A maior parte das torres construídas já não existe mais. Entre as que foram preservadas destacam-se as torres Garisenda e degli Asinelli, principais pontos turísticos da cidade.
Damos um salto na história até o fim do século 19 e início do século 20 para descobrir que a cidade, principalmente o centro, passou por grandes reformas. Neste contexto, o seu caráter de cidade medieval foi reavaliado e passou a ser considerado uma singularidade. Esta característica pode ser observada nos projetos de Afonso Rubbiani, que interveio na cidade usando traços d era medieval, considerando-a um período rico de valores e fundamental para Bolonha.
Como caráter cultural, observo que a população de Bolonha sempre esteve muito envolvida em todas as transformações na cidade. Como exemplo, lanço mão dos conflitos durante a reforma urbana no final do século 19, quando parte da população se opôs à demolição dos muros medievais, conforme era previsto no plano regulador da cidade aprovado em 1889. De qualquer maneira, os muros foram demolidos, restando apenas as portas que davam acesso à cidade.
Os pórticos bolonheses
Entre os pontos marcantes enquanto cidade, os quais constituem a sua própria identidade e que delineiam o seu perfil entre as cidades italianas, estão os pórticos de Bolonha, que se alongam por 38 quilômetros e que narram a história e arquitetura da cidade com o passar dos tempos. Mesmo um turista que chega na cidade e logo procura as Duas Torres, com certeza se perde caminhando sob os pórticos e, ao final de seu percurso, encontrá-las acaba sendo somente uma consequência.
Um pórtico pode ser considerado uma galeria aberta que fica na parte exterior do térreo de um edifício. Na Itália, os pórticos podem ser encontrados em outras cidades como Padova, Florença e Turim. Em outros países como na Espanha também são encontrados os pórticos. Porém, a permanência e utilização dos pórticos de Bolonha se prolonga por mais de 1000 anos e se deve a uma particularidade que vai ser explorada a seguir.
Entre os séculos 11 e 12, a falta de controle do espaço público por parte das autoridades italianas permitiu que um grande número de pórticos fossem construídos em áreas públicas, ou seja, o uso privado do espaço público. No final do século 12, o grande desenvolvimento econômico das cidades e o aumento da população fez com que as autoridades proibissem este tipo de invasão do espaço público e alguns edifícios, ou parte deles, foram demolidos.
E é neste ponto da história que se constitui a individualidade de Bolonha em relação aos seus pórticos.
Desde o século 11, já não se construíam pórticos utilizando o espaço público. A partir de então, todos eram construídos em espaço privado, e dia após dia, esta importante mudança se tornou uma regra definida. Enquanto nas outras cidades as pessoas precisavam ser licenciadas para usar o espaço público, a permanência dos pórticos de Bolonha foi definida como quase obrigatória para todas as ruas onde eles permitiam, além do uso privado, o uso público do espaço.
O uso dos pórticos nesta época ainda pode ser relacionado com a Alma Mater Studiorum que, entre 1100 e 1200 d. C., atraiu um grande número de estudantes de toda a Europa para Bolonha. Originou-se então uma nova tipologia de habitação para estudantes nos pisos superiores dos edifícios, enquanto lojas e oficinas de artesãos foram localizados no piso térreo, logo abaixo das habitações. Estas construções foram, aos poucos, constituindo as diferentes funcionalidades dos pórticos.
Em 1288 d. C., a legislação determinava que todas as casas novas deveriam ser construídas com pórticos de 7 pés bolonheses de altura, para permitir a passagem de um homem montado a cavalo. Estas estruturas garantiam o uso público do solo e, apesar da manutenção ser de responsabilidade do proprietário, a construção de um pórtico oferecia a oportunidade de ampliar a metragem quadrada dos pisos superiores.
Além disso, a comunidade urbana gostou da possibilidade de caminhar na rua protegida do mau tempo e também de trabalhar ao ar livre.
A diversidade de estilos e apropriações dos pórticos
Bolonha apresenta diversos tipos e estilos de pórticos preservados: pórticos de madeira medievais, pórticos estruturais góticos, pórticos renascentistas que estão integrados aos edifícios e os pórticos do século 19 que caracterizam a arquitetura da corte e pórticos dos subúrbios.
Os pórticos medievais tem seu maior exemplo no pórtico da Corte Isolani, na Strada Maggiore. Todo feito em madeira e com cerca de 9 metros de altura, foi construído em 1250 em estilo românico-gótico e hoje é um dos poucos exemplos da construção civil bolonhesa do século 13. A arquitetura renascentista pode ser observada nos vários pórticos da época, como no pórtico da Basilica di San Giacomo Maggiore, na Via Zamboni e em alguns edifícios da Piazza Santo Stefano.
Além de se tornarem uma singularidade urbana, os pórticos assumiram em alguns casos significado religioso e social. Desde o século 12, o povo de Bolonha subia em peregrinação a colina chamada Monte della Guardia para chegar a Basilica della Maddona di San Luca. No final do século 17, um longo pórtico de 3,5 quilômetros e 666 arcos foi construído graças às contribuições fornecidas por todos os cidadãos para abrigar os peregrinos durante a subida. Este pórtico é o maior em extensão e permanece como o símbolo do espírito cívico e religioso do povo de Bolonha.
Considerações finais
Caminhando por Bolonha, é impossível não reparar como este elemento tem um papel fundamental na composição arquitetônica e cultural da cidade. Esta singularidade urbana e, ao mesmo tempo, a pluralidade de estilos oferecem ao observador uma grande enciclopédia, senão um museu ao ar livre sobre pórticos e suas mais variadas leituras e releituras. Os pórticos de Bolonha se perpetuaram porque são úteis em escala pública, e a população encontrou os melhores métodos para utilizá-los.
Ao vivenciar no cotidiano a utilização destas construções, percebi a flexibilidade que elas propiciam, bem como todas as formas de apropriação possíveis. A cada esquina, a cada estação e a cada evento, os pórticos são reinventados pelos usuários. Existe um ciclo de significação para os pórticos e é isto que os torna tão singulares.
Atualmente, os pórticos de Bolonha são protegidos de acordo com a legislação nacional e municipal. Desde 2006, o Ministério dos Bens e Atividades Culturais da Itália pretende, por meio de uma inscrição, proteger o conjunto de pórticos a nível mundial, na categoria Bem Cultural pela Unesco.
notas
NA – Este texto foi baseado nas minhas impressões como intercambista durante um ano em Bologna, Itália. Entre 2013 e 2014, fui contemplada com uma bolsa de estudos no exterior concedida pela Capes, dentro do Programa Ciência Sem Fronteiras, que permitiu dentre outras, as experiências relatadas neste texto.
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Diversas informações usadas no texto podem ser encontradas em: COSTA, Tiziano. Bologna ieri e oggi. Bologna, Costa Editori, 2013.
sobre a autora
Jéssica de Fátima Rossone Alves possui graduação em Arquitetura e Urbanismo (2016) pela Universidade Federal de Juiz de Fora(2016)com período sanduíche na Universidade de Bologna (2013/2014). É integrante do Laboratório de Patrimônios culturais (LAPA/UFJF) e mestranda em Ambiente Construído pela UFJF (2016/2018).