O tema da Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano não poderia ser mais apropriado para o momento atual: a expressão “Reporting from the front”, usada pelos correspondentes da imprensa em áreas de conflito, já nos passa a ideia de que não podemos fazer de conta que está tudo bem pelo mundo afora. Segundo o presidente da Bienale, Paolo Baratta, as bienais anteriores haviam demonstrado um distanciamente entre a arquitetura e a sociedade civil: “a arquitetura é um bem público no sentido técnico: sua fruição por parte de uns não reduz a possibilidade de fruição por parte de outros”. Baratta destaca, ainda, que a arquitetura é “a mais política das artes”, algo que está sem dúvida presente na curadoria de Alejandro Aravena.
O arquiteto chileno diz ter se inspirado na arqueóloga alemã Maria Reiche, que perambulava pelo deserto peruano carregando uma escadinha de alumínio, na qual subia para poder observar as linhas de Nazca. Vistas desde o chão, aquelas pedras não apresentavam nada de especial, mas a partir do ponto de vista proporcionado pela escada, uma tecnologia muito simples, já era possível ter uma nova percepção do fenômeno. Aravena nos convida, assim, a utilizarmos o que temos à mão para percebermos a realidade que nos cerca, sem culpar a falta de recursos por nossa incapacidade de resolver problemas. “Contra a escassez: a inventividade”, sugere ele; “contra a abundância: a pertinência”.
A Bienal deste ano se propõe, assim, a escutar aqueles que, do alto de uma escadinha, puderam ver o mundo sob uma nova perspectiva, e podem agora compartilhar seu conhecimento e sua experiência conosco, que seguimos com os pés no chão.
Disposição da exposição e temas
A Bienal de Veneza utiliza vários espaços na cidade, concentrando-se em dois: Giardini, onde se localizam os pavilhões de cada país e um pavilhão principal, e o Arsenale, um conjunto de antigos galpões militares. É nestes dois últimos que se concentra a exposição curada por Aravena, enquanto o conteúdo dos pavilhões nacionais fica a cargo de um curador de cada país. Além disso, há também algumas exposições complementares, como a Horizontal Metópolis na ilha de Certosa, além de uma série de eventos paralelos espalhados pela cidade. Logo na entrada dos dois pavilhões curados por Aravena, dando o tom da mostra, há instalações feitas com material aproveitado da última Bienale: as paredes são recobertas por pedaços de painéis de gesso acartonado empilhados horizontalmente, enquanto o forro é formado por perfis anodizados retorcidos, pendurados no teto. Essa subversão no uso dos materiais invoca não apenas a inventividade, mas também preocupações com a geração de detritos, a necessidade de reciclar e de reaproveitar os recursos, enfim, a sustentabilidade em seu aspecto mais essencial. Outros temas declarados como prioritários pelo curador são: qualidade de vida, comunidades, imigração, habitação, informalidade, periferias, desigualdade, segregação, criminalidade, poluição, tráfego e desastres naturais.
Materiais de construção tradicionais
Diversos trabalhos discutem o uso de materiais tradicionais ou alternativos, como bambu, madeira, barro e até mesmo lixo, como solução para o problema da escassez. As propostas são apresentadas por meio de protótipos em grandes escalas. Alguns deles têm em comum a forma abobadada, como os módulos para construção de mercados na África de Norman Foster (Droneports) e as abóbadas de tijolos do Gabinete de Arquitectura, dos paraguaios Solano Benítez, Gloria Cabral e Solanito Benítez, que recebeu o prêmio Leão de Ouro pela Melhor Participação na Exposição Internacional deste ano (1).
Novas tecnologias
Enfocando a compressão como estratégia de construção sustentável (por não utilizar menos aço e mais concreto), a ETH Zurich também apresenta seus exemplos de abóbadas pré-fabricadas com recursos de controle numérico, que permitem uma construção rápida e precisa, que explora a boa resistência à compressão do material.
Personalização da habitação
Muitos projetos fazem referência à necessidade de acomodar pessoas com diferentes necessidades e estrutura familiar no grandes projetos de habitação. Diversas maquetes com detalhes dos interiores, entrevistas com moradores e fotos dos apartamentos modificados demonstram a importância da personalização em massa. Um dos projetos apresentados escritório francês LAN, por exemplo, é um conjunto de habitação social em Bègles que permite aos moradores modificar a planta e a área do apartamento conforme suas necessidades mudam, ao longo da vida.
Pavilhões nacionais
China
Embora a China não disponha de pavilhão próprio nos Giardini, sua exposição foi montada em um dos galpões do Arsenale, resultando em uma das mais belas representações nacionais. O tema escolhido foi a valorização da cultura tradicional chinesa, frente à onda de construção massiva de habitações para acomodar os grandes movimentos migratórios em direção às cidades. Diversos projetos, expostos de maneira original em pequenas tendas de madeira e tecido, mostram soluções para requalificação dos antigos hutongs (casas de pátio) de Beijing, quem vêm sendo demolidos sumariamente (2). A exposição busca um resgate de técnicas artesanais desde a confecção de objetos, roupas até casas, indicando que o trabalho manual ainda persiste em oposição à industrialização.
Alemanha
O pavilhão da Alemanha é sem dúvida o mais engajado dentre os pavilhões nacionais. Dedicado ao tema “Arrival city” (cidade de chegada) ele descreve o processo de apropriação do espaço pelos imigrantes e refugiados e a infra-estrutura que precisa ser instalada para recebê-los: centros de distribuição de roupas e alimentos, escolas, serviços de saúde e habitação emergencial. A cidade de chegada é informal, pode ser um edifício ou um bairro, é uma resposta espontânea e complexa ao processo de imigração. Os alemães reconhecem a necessidade de simplificar seu altíssimo padrão de qualidade e nível de detalhamento, inclusive permitindo a participação dos moradores no processo de construção, para conseguirem suprir a grande quantidade de habitações necessárias. Inspiram-se em soluções latino-americanas, como as famosas casas populares projetadas por Aravena.
Brasil
Com o tema “Juntos”, o pavilhão do Brasil tem curadoria de Washington Fajardo (3). A descrição dos projetos pode ser vista na reportagem “Participação brasileira na Bienal” (4).
Espanha
Com o tema “Unfinished” (inacabado), o pavilhão da Espanha descreve a atual situação da construção civil no país, em consequência da grave crise econômica que já se arrasta por vários anos. Por um lado, edifícios inacabados e, por outro, o surgimento de uma nova estética, baseada em materiais mais baratos e menos tecnológicos e técnicas construtivas mais simples. Os displays são feitos com perfis galvanizados, molduras de pinus e caixas de papelão, e as imagens expostas contam as histórias de edifícios e de pessoas afetadas pela crise.
França
O pavilhão da França apresenta pequenas transformações ocorridas em espaços comuns, como uma padaria, em áreas rurais. As transformações são documentadas por fotos, maquetes e protótipos, alguns dos quais mostram paredes construídas com materiais naturais, como madeira e palha, ao invés de materiais sintéticos de isolamento térmico.
Países Nórdicos
Suécia, Noruega e Finlândia compartilham o mesmo pavilhão, com o tema “In therapy” (em terapia). A partir da hierarquia de necessidades básicas de Maslow (necessidades fisiológicas, necessidades sociais, auto-estima e realização pessoal), os projetos apresentados são classificados respectivamente nas categorias Fundamental (preocupados com as necessidades básicas), Pertencimento (que criam espaços públicos) e Reconhecimento (valorização da cultura nórdica).
Os projetos, construídos entre 2008 e 2016, são apresentados por meio de videos, entrevistas e fichas com um resumo de cada obra. Alguns divãs estão dispostos em frente à TVs com os arquitetos comentando seus “dilemas”.
Japão
O pavilhão do Japão apresenta 12 projetos de arquitetos japoneses, enfocando o tema do envelhecimento e encolhimento da população, e do consequente desaparecimento de algumas comunidades. Os projetos procuram promover a comunicação entre as pessoas e suas comunidades. A apresentação é baseada em maquetes e protótipos em diferentes escalas, da urbana ao interior 1:1, com grande riqueza de detalhes.
Fugindo do tema
Alguns pavilhões fugiram completamente do tema. Alguns exemplos:
Suíça
Com o tema “Incidental space”, a Suiça apresenta uma enorme escultura em gesso que lembra um meteorito, fazendo uma reflexão sobre arquitetura e arte. A peça é oca e permite que se veja o espaço em seu interior.
Rússia
A Russia faz uma apologia a um passado glorioso, com réplicas de esculturas antigas e a projeção, em grande formato, de imagens de edifícios neo-clássicos russos. Um dos ambientes mostra uma cidade de planejamento barroco como um circuito eletronico, em mais uma tentativa de unir a tecnologia atual com uma linguagem do passado.
Inglaterra
Com o tema “Home economics: five models of domestic life” (economia da casa: cinco modelos de vida doméstica), a Inglaterra discutiu o tema da especulação imobiliária e das habitações destinadas a serem utilizadas por horas, dias, meses, anos e décadas.
Novas tecnologias
Excetuando os projetos da ETH, projetadas digitalmente e produzidos com impressão 3D e pedras cortadas por CNC, o uso de novas tecnologias em si não foi destaque nesta exposição. As tecnologias aparecem já incorporadas ao processo de projeto nos resultados apresentados, com muitas maquetes produzidas por corte a laser ou impressão 3D e alguns sistemas construtivos que utilizam equipamentos de controle numérico. O arquiteto japonês Kengo Kuma, foi um dos únicos a discutir o tema, citando a “batalha” entre os processos tradicionais de construção e as tecnologias do século 21, entre a produção massificada e a customizada, e entre a execução manual e a da máquina.
Outro exemplo que procura aliar tecnologia e processos tradicionais é o de Norman Foster, que apresentou o projeto Droneport para África, um sistema construtivo reutilizável para a construção de abóbodas autoportantes de tijolos de argila. O conceito do projeto consiste em criar mercados públicos para economia informal que poderiam ser abastecidos por Drones.
Impressão final
Percebe-se nos projetos apresentados uma preocupação com os modos de vida contemporâneos, com as diferentes estruturas familiares, com a flexibilidade construtiva e em como repensar a unidade habitacional. A temporalidade da habitação também é bastante discutida, especialmente considerando a situação de refugiados ou sobreviventes de desastres naturais. São apresentadas diversas soluções vernaculares repensadas sob um ponto de vista contemporâeo, resultando em construções rápidas para curtos a médios períodos de tempo.
Na Bienalle 2016, a função social do arquiteto é realmente apresentada de maneira simples porém impactante. Em meio a live tweets projetados no chão de um dos saguóes de entrada da exposição, era possível ler as hashtags: affordable, digitalfabrication, community, rural, mobility, housing... Outros destaques são a problemática do lixo no mundo subdesenvolvido, soluções para a crise habitacional como os apartamentos containers de Rogers, e a apropriação de espaços inacabados como já visto anteriormente na Espanha e também na África.
Apesar de algumas exceções, Aravena entrega o que promete: uma arquitetura mais engajada, mais preocupada com os problemas sociais, mais humana... definitivamente um bem público.
notas
01
O Leão de Ouro pela obra foi conferida ao arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha: BELLEZA, Gilberto. Paulo Mendes da Rocha ganha Leão de Ouro em Veneza. Destaque internacional à arquitetura brasileira. Drops, São Paulo, ano 17, n. 104.09, Vitruvius, maio 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.104/6035>.
02
CELANI, Gabriela. Três Beijings em quatro dias. Arquiteturismo, São Paulo, ano 07, n. 078.06, Vitruvius, ago. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.078/4859>.
03
FAJARDO, Washington. Juntos. Mostra brasileira na 15ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza – Reporting from the front. Projetos, São Paulo, ano 16, n. 185.02, Vitruvius, maio 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/16.185/6033>.
04
PORTAL VITRUVIUS. Projetos brasileiros da Bienal de Veneza 2016. 15a Mostra Internacional de Arquitetura São Paulo. São Paulo, Notícias, 29 mar. 2016 <www.vitruvius.com.br/jornal/news/read/2527>. Ver também: PORTAL VITRUVIUS. Vila Flores. Um processo arquitetônico: ressignificação, coletividade e aprendizado. Projetos, São Paulo, ano 16, n. 184.01, Vitruvius, abr. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/16.184/6015>; PORTAL VITRUVIUS. Casa Vila Matilde. Projetos, São Paulo, ano 16, n. 184.02, Vitruvius, abr. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/16.183/5857>; PORTAL VITRUVIUS. Conjunto Habitacional do Jardim Edite. Projetos, São Paulo, ano 13, n. 152.04, Vitruvius, ago. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/13.152/4860>.
sobre os autores
Gabriela Celani é professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp.
Maycon Sedrez é pesquisador do Institute for Sustainable Urbanism, em Braunschweig Technical University.