O Porto encanta turistas de todo o mundo, deslumbrados pela singular combinação de suas arquitetura, paisagem e cultura (arte, gastronomia, vinicultura, vida noturna, etc) amalgamadas num sítio que favorece espetaculares panoramas de seu patrimônio urbanístico. O valor excepcional do sítio que abrange a área intramuros à beira do Rio Douro, correspondente à área designada como Centro Histórico, legitimou sua classificação como Patrimônio Mundial pela Unesco, em 1996, respaldada pela existência de uma gestão qualificada de reabilitação urbana. A partir de então, é crescente a simbiose do patrimônio cultural e do turismo, ensejando a designação do Porto como Capital Cultural Europeia em 2001 e a recente indicação como melhor destinação turística europeia em 2014.
Para o arquiteto – turista e/ou pesquisador, o centro histórico do Porto é um livro aberto sobre práticas de reabilitação urbana, uma vez que seu sítio tem sido um laboratório de ações exemplares, bem como das predatórias. A partir da década de 1970, planos de recuperação e requalificação do casario e do espaço público do centro histórico vem consolidando uma cultura de reabilitação urbana na cidade. Um mosaico de paisagens contrastantes revela-se ao percorrê-lo: nos circuitos turísticos, observam-se edificações em obras e conjuntos renovados, em padrões globalizados, destinados a meios de hospedagem, servidos por comércio, bares e restaurantes sofisticados; fora das ruas principais, despontam edificações abandonadas, em ruínas, conjuntos edificados e espaços públicos mal conservados, bem como moradias populares em conjuntos reabilitados. Ao nos embrenharmos nos morros de tecido urbano medieval, ao pé da Sé, no Barredo e na Ribeira, encontramos o casario reabilitado através de programas exemplares, entre as décadas de 1970 e 1990, em mal estado de conservação. Nesse intrincado tecido urbano medieval encontra-se uma paisagem cotidiana de varais com roupas estendidas que anunciam a existência de moradias populares, pontuadas por alguns imóveis renovados, convertidos em flats e meio de hospedagem.
Merecem destaque as intervenções na área da Ribeira-Barredo das décadas de 1970 e 1980, cujo caráter paradigmático repercute até os dias de hoje, tanto pela pioneira abordagem de conservação integrada, mas especialmente ao se comparar com as atuais intervenções no Centro Histórico, de resultado cenográfico e gentrificador. Iniciadas com as ações de recuperação de unidades habitacionais propostas no paradigmático Plano de Renovação do Barredo, em 1969, seguidas das propostas do CRUARB (Comissariado para a Renovação Urbana da Área de Ribeira/Barredo), de 1974 a 2003, tais intervenções, norteadas por questões sociais, conservaram as relações morfológicas e o tecido social locais.
Concebido pelo arquiteto Fernando Távora, o Estudo de Renovação Urbana do Barredo foi um projeto piloto para a área da Ribeira-Barredo, visando integrá-la humana, social e paisagisticamente na vida do Porto. No Plano, Távora defendia “não mais um gueto nem um monte de ruínas, mas um centro vivo e um belo elemento da paisagem urbana”. Associando a ação física à intervenção social, reforçando os processos participativos, o cuidado na conservação do que tem valor, conciliada com a necessidade de adequar as condições para vidas contemporâneas. Para Távora, a essência da proposta para o Barredo seria um “continuar-inovando”, com espírito global e aberto.
No contexto pós-revolução de 25 de abril de 1974, a reabilitação da área fica a cargo do Comissariado para a Renovação Urbana da Área de Ribeira - Barredo (CRUARB), criado em resposta às reinvidicações da população local para soluções para o agudo problema habitacional e posteriormente ampliado ao centro histórico. Pode-se percorrer esses espaços, qualificados por intervenções arquitetônicas e urbanísticas, incluindo projetos premiados, tanto de edificações residenciais como equipamentos sociais, elencados no livro comemorativo dos 25 anos do CRUARB, no âmbito das publicações relativas à chancela de Patrimônio Mundial.
A sensibilidade social e a reabilitação cautelosa parecem ter ficado como práticas do passado, como se percebe ao percorrer o atual canteiro de obras, que toma algumas ruas do polo turístico do Porto. Agenciada pela Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) Porto Vivo para a área do Centro Histórico, a partir de 2009, a nova política é pautada no estímulo à reocupação dos imóveis vazios, na requalificação dos imóveis e espaços públicos e na promoção do turismo. Tais objetivos aparentemente louváveis, são balizados pelos interesses do mercado imobiliário, com respaldo da SRU Porto Vivo, produzindo um novo modelo de intervenções - predatório e cenográfico - justificadas por menores custos e pela eficiência energética das novas instalações. As renovações fachadistas e a gentrificação em curso têm sido questionadas pelo ICOMOS, pelos meios acadêmico e profissional, por seus resultados questionáveis em termos arquitetônicos, urbanísticos, sociais e de conservação do patrimônio cultural. Para melhor conhecer tais ações, vale a visita ao sítio da SRU Porto Vivo na internet, ou em sua sede no centro histórico - a Loja de Reabilitação Urbana – denominação que já denota em si o modelo instaurado.
Na área limítrofe da Baixa e do Centro Histórico, próximo à Estação São Bento, encontra-se o Passeio das Cardosas, projeto emblemático do novo modelo, no qual a quadra foi inteiramente renovada para incorporação de unidades residenciais e instalação de um hotel de luxo, em antigo palacete. A estratégia de marketing desse projeto pauta-se na valorização imobiliária trazida pela localização de centralidade turística e na qualidade das novas instalações. Ainda com unidades vazias, sendo muitas de uso de aluguel temporário e hospedagem, o projeto se impõe como um modelo de reabilitação urbana e um padrão gentrificador de consumo arquitetônico. São inúmeras as críticas a esse projeto, que demoliu o miolo da quadra para implantação de pátio de lazer e estacionamento subterrâneo. O resultado cenográfico resulta não só do enclave de novos usos mas, sobretudo, da liguagem pastiche das edificações renovadas e reconstruídas, revestidas de novos materiais, especialmente azulejos imitando a padronagem típica do local.
O rica textura dos conjuntos arquitetônicos portuenses vai se pasteurizando com um aspecto “velhinho em folha”, sem aproveitar o material autêntico disponível, não só proveniente das próprias edificações em obra, como do Banco de Materiais da Câmara Municipal. Situado no Palacete dos Viscondes de Balsemão, o Banco de Materiais funciona como uma reserva museológica visitável, guardando materiais recolhidos de edificações históricas demolidas com o objetivo de salvaguardar e difundir os materiais construtivos típicos da cidade, para serem disponibilizados aos munícipes. O acervo em exposição constitui-se de azulejos, cachorros, pilastras, cornijas, peças de serralheria, etc.
A reabilitação urbana apresenta-se como uma política urbana chave em Portugal, sob as diretrizes da União Europeia. Em destinações turísticas como o Porto, constitui-se um desafio canalizar investimentos de forma socialmente sustentável, em meio a uma conjuntura de crise econômica, em que as pressões especulativas por parte dos investidores - frequentemente estrangeiros - ditam as ações sobre o estoque edificado e sobre a utilização do espaço público.
Percebe-se uma disparidade entre a conservação dos espaços de maior centralidade turística em relação às áreas de menor fluxo turístico. O que ocorre também nos espaços de uso público fora dessas rotas, como por exemplo o Miradouro da Vitória, desprovido de tratamento urbanístico, apesar da espetacular vista panorâmica do local. Como no modelo em vigor a cidade está fracionada em Áreas de Reabilitação Urbana (ARU), as intervenções dependem dos interesses do empreendedor, geralmente circunscritas às áreas de maior rentabilidade em função do turismo e tratadas como vitrines da cidade. Por outro lado, esse tratamento desigual preserva a autenticidade de inúmeros imóveis nessas áreas de menor atratividade para o turismo em massa, que são focos de resiliência do modo tradicional de viver, mas também de casarões fechados e degradados, muitos dos quais, em risco de ruir. O reconhecimento desse legado de boas práticas de reabilitação pode contribuir para a reapropriação e a sustentabilidade desse significativo patrimônio urbanístico como um patrimônio vivo.
sobre a autora
Andréa da Rosa Sampaio é professora associada do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Arquiteta e Urbanista (UFF), Mestre em Desenho Urbano (University of Nottingham) e Doutora em Urbanismo (Prourb UFRJ). Pós-Doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com Bolsa Capes.