No início de abril, quando viajei para a capital carioca para participar de uma banca de doutorado na PUC-Rio, antes de retornar a São Paulo resolvi preencher a manhã de sábado ociosa com uma visita à Cidade das Artes, projeto do arquiteto francês Christian de Portzamparc. Meu interesse ia muito além da curiosidade normal de um historiador e crítico da arquitetura, pois está vinculado a uma série de eventos precedentes. Em 1997 publiquei número especial da revista Óculum sobre o arquiteto francês, focado nas suas obras de caráter urbanístico; o número 9 do periódico traz o artigo “Terceira era da cidade”, texto que causou grande impacto na ocasião e ainda hoje está presente em diversas bibliografias de cursos de graduação (1).
Christian de Portzamparc veio para o lançamento da revista, em noite concorrida no Museu da Casa Brasileira, com uma multidão querendo conhecer ao vivo o ganhador do Prêmio Pritzker. No ano seguinte, em conversa informal com Raquel Rolnik, sugeri o nome do francês para participar do projeto Eixo Tamanduatehy, promovido pela prefeitura de Santo André, durante a administração do prefeito Celso Daniel. Voltei a convidar Portzamparc para retornar ao Brasil em 2004, como um dos palestrantes do Fórum de Debates da 5aBienal Internacional de Arquitetura e Urbanismo, quando ele apresentou publicamente pela primeira vez no país o projeto para a Cidade da Música, como era conhecido na ocasião o projeto do conglomerado artístico.
Não sei como foi feito o convite para o projeto no Rio de Janeiro, pois não tive nenhuma participação, mas o projeto se iniciou mais ou menos em 2002. Em 2008, o arquiteto me ligou de Paris e me convidou para a inauguração do projeto, que ocorreria em dezembro. Compramos passagem para a família inteira, reservamos estadia em hotel, mas acabamos não embarcando pois o corpo de bombeiros proibiu a solenidade. Foi apenas mais um dos inúmeros fatos que sinalizavam as desavenças e problemas vivenciados pelo arquiteto e sua equipe, onde as diversas instâncias do poder público não se entendiam, o que piorou com a mudança de prefeito. Com isso, o projeto nunca era devidamente finalizado e quando o visitei agora em 2016 pude constatar que a obra continua inconclusa.
Localizado no “fim do mundo”, na longínqua Barra da Tijuca, resolvi me deslocar por meio de transporte coletivo, pegando um ônibus no Leblon, numa viagem de quase uma hora. Situada no meio de uma imensa rotatória e ilhada por vias expressas, a Cidade das Artes tem evidentes limitações em sua inserção urbanística devido a escolha administrativa por lugar ermo, fora do circuito cultural carioca. O discurso de abrir novas frentes e novas centralidades parece ter a finalidade exclusiva de obscurecer um privilégio governamental merecido por áreas elitizadas da cidade, como se confirmou nas obras olímpicas.
Conforme me aproximo, a construção torna-se visível das janelas laterais do coletivo quando ele se aproxima do destino. Ao chegar no terminal, logo sou informado da existência de um túnel, que apresso em entrar; durante o percurso, relativamente longo, é possível ver a luz lá no final, que anuncia meu objetivo. Quando volto a ver a luz do dia, a vista é muito impressionante, com o horizonte desimpedido a 360o, com a imensidão do território plano batido pelo sol, com as montanhas ao fundo aqui e acolá. À frente, imenso, uma imensa laje de concreto suportada por potentes pontos de apoio, delineando-se um jardim sob a sombra, que logo me apressei em adentrar. Muito agradável, o jardim projetado por Fernando Chacel, vários graus abaixo da temperatura sob o sol escaldante, é batido pelo vendo, com uma umidade gostosa que é ampliada pela aspersão de gotícula d’água que brotam de canos que rodopiam sem fim.
Do jardim até a laje de acesso que abriga diversos equipamentos culturais temos um pé-direito de oito a dez metros, que pode ser acessada por escadarias, rampas e elevadores. Subi pela escada. O piso principal, uma espécie de térreo elevado, flutua sobre o jardim e conforma uma espécie de megabalcão, que abriga os volumes de auditórios, biblioteca, bar e restaurante, administração e outros usos; entre um e outro, a vista impressionante da paisagem. Até chegar ao interior dos vários auditórios – são de extremo bom gosto, mesmo que sofram com improvisos devido a falta de acabamento adequado, ou mesmo com a falta do próprio acabamento –, passo por vários espaços intermediários, com entrada de luz natural em lugares pontuais em oposição às áreas mais obscuras, contraste que resulta em um impacto sensorial inesquecível. O projeto é de uma beleza indescritível, que evoca a potência da arquitetura de um dos grandes mestres da contemporaneidade.
Duas tipologias exploradas na Cidade das Artes – o jardim inferior junto aos pilotis bojudos e o balcão na laje superior – nos permite dizer que o sonho expresso de Christian de Portzamparc, declarado em várias situações, de ser “um arquiteto brasileiro” (2), foi ao menos em parte alcançado.
notas
1
O arquiteto Paulo Gaia Dizioli, na ocasião morando em Paris e trabalhando no Centre Pompidou, o Beaubourg, foi de fundamental importância para a viabilização do número da revista e a vinda do arquiteto francês ao Brasil. Óculum, n. 9, Campinas, especial Christian de Portzamparc
2
LEONÍDIO, Otavio. Cidade da Música do Rio de Janeiro: a invasora. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 111.01, Vitruvius, ago. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.111/32>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora. Morou em Araraquara de dois a quatorze anos de idade.