Em todo o Brasil temos inúmeros exemplos de construção de monumentais conventos e igrejas pelas grandes ordens religiosas. Em Minas Gerais ao contrário, com a proibição da entrada na região das ordens Iª e IIª, a responsabilidade da expressão e prática da fé recaiu sobre as irmandades ou ordens terceiras e leigos que professavam a religião católica.
O Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens (1770), assim como seus vizinhos Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas de Félix da Costa (1714) ou a Ermida de Nossa Senhora da Piedade do Irmão Bracarena (1767), não fogem a essa regra: são o fruto do esforço individual de leigos devotos que, à margem da hierarquia eclesiástica oficial, criaram importantes comunidades.
O Caraça foi fundado pelo Irmão Lourenço de Nossa Senhora na serra deste mesmo nome, no século XVIII, e se destinava a um convento de missionários Varatojanos (1), sob proteção de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Hoje, o Santuário do Caraça (2) é propriedade privada dos padres da Congregação da Missão Lazaristas do Brasil (3), e está inserido no Circuito Histórico Barroco e no Circuito do Ouro de Minas Gerais.
Localização do santuário
O Santuário está localizado na Serra do Caraça, no município de Catas Altas/MG, emancipado de Santa Bárbara em 21 de dezembro de 1995. A cidade está a 120 km de Belo Horizonte, a 12 km de Santa Bárbara e a cerca de 60 km de Mariana. Grande parte das terras do Parque Natural, cerca 52%, estão localizadas no município de Santa Bárbara.
O conjunto arquitetônico está no centro de uma pequena ilha, ligeiramente elevada e em forma de triângulo. A frente do edifício, cerca de 200m, corre o rio Caraça, que recebe pela direita as águas vindas do Tanque São Luís. O córrego da cozinha recebe águas do mesmo tanque, irriga a horta e leva água até o rio, fechando assim, o citado triângulo. Em torno do conjunto está todo o maciço de montanhas que o protege contra as rajadas de vento.
Origens do santuário
Segundo consta, o Irmão Lourenço era um fidalgo português, de nome D. Carlos Mendonça de Távora, que veio para o Brasil, fugindo das perseguições do Marquês de Pombal, por crime de alta traição. Primeiro estabeleceu-se no antigo arraial do Tijuco, atual Diamantina, como membro da Ordem Terceira de São Francisco, em 1763. Em 1770 já se tem notícia de seu estabelecimento da Serra do Caraça para construção da Ermida de Nossa Senhora Mãe dos Homens e fundação da irmandade de mesmo nome, ficando ali até seu falecimento, em 27 de outubro de 1819.
As primeiras edificações foram a Capela, ainda em madeira e inaugurada em 1774, e o "hospício", edifício destinado à hospedagem de religiosos e romeiros. A primeira igreja, seguindo a tradição mineira de demonstrar a fé através da ornamentação, recebeu pintura e douramento, em 1783. No século XIX recebeu sete altares dos Passos da Paixão e os trabalhos do Mestre Ataíde.
No início, com saúde e recursos necessários para as obras, o Santuário viveu anos de prosperidade. Com o passar dos anos, entretanto, o irmão não conseguiu levar adiante o seu intento, porém diz a tradição que antes de morrer, teve uma revelação da Virgem Santíssima que, em lugar dos Varatojanos, viriam para o Caraça, missionários de outra ordem.
Ao morrer, já velho, o Irmão Lourenço constituí D. João VI o "Herdeiro e Testamenteiro do Santuário da Nossa Senhora Mãe dos Homens do Caraça em Minas Gerais". O soberano, que estava então no Rio de Janeiro, resolveu fazer doação daquela casa à Congregação da Missão, por intermédio do Padre Leandro Rabelo Peixoto e Castro e do Padre Antônio Ferreira Viçoso, este último, posteriormente, Bispo de Mariana. Em janeiro de 1822, abriu-se o colégio.
O Colégio do Caraça cumpriu com êxito sua missão educativa até o ano de 1968, quando um incêndio destruiu toda a ala onde funcionavam os dormitórios dos alunos, biblioteca e alguns laboratórios. Após esse episódio, o colégio ficou impossibilitado de continuar com sua principal função, se dedicou apenas à formação de religiosos para a Congregação.
Atualmente, a principal vocação do Santuário é o turismo religioso e o ecoturismo. Tais atividades podem ser compatíveis, desde que previstas em um detalhado Plano Diretor e regidas por normas que visem a conservação, manutenção e preservação do Patrimônio Natural e Arquitetônico ali reunidos.
O Conjunto Arquitetônico, composto pela igreja, casa e claustro dos religiosos da Congregação da Missão, catacumbas, ruínas do antigo colégio, museu, biblioteca, pousada e anexos de serviço, foram tombados pelo SPHAN em 1955, segundo processo nº 407-T, inscrição 309 no livro Histórico e inscrição 15-A no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. O Parque Natural é composto por números sítios naturais, grutas, gargantas, córregos, riachos, rios, cachoeiras, matas e bosques e tem Tombamento Paisagístico pelo IEPHA desde 1989.
O edifício
O conjunto tal como o vemos hoje, foi sendo construído aos poucos. Cada irmão que chegava dava sua contribuição e deixava suas marcas. Tudo começou em 1770, com a construção da Capela Barroca e dos dois blocos laterais, até a sexta janela, pelo Irmão Lourenço.
Os primeiros mosteiros de que se tem notícia, eram toscos e primitivos, principalmente se os compararmos com a serenidade das igrejas bizantinas contemporâneas, devido a busca da realização espiritual através da pobreza, abstinência e solidão. Muitos acreditavam que a verdadeira vida cristã só poderia existir na pobreza e no sofrimento de duras condições de vida.
O Santuário do Caraça não foge a regra, tendo como principal característica o Claustro, um pátio interno, com jardim central e varandas laterais. Seu principal diferencial é que, ao contrário de outros claustros conhecidos na Europa e mesmo no resto do Brasil, este se dá em dois níveis, inclusive com acesso ao pavimento inferior do edifício que o circunda: catacumbas e adega.
Não existem muitos dados sobre a capela primitiva. Além de ter sido edificada em 1774, sabe-se também de sua conformação através de um desenho enviado a Portugal, sem data. O certo é que sua graciosidade compunha o acervo colonial do Caraça e seu tamanho não comportava os inúmeros religiosos e alunos residentes.
O conjunto é uma construção de linhas horizontais, construído para convento e, posteriormente adaptado para colégio. O edifício destinado a hospedagem compunha-se de duas alas laterais à capela, com dois pavimentos e seis janelas para cada lado, e escadaria de acesso ao adro, tudo em pedra. No lado esquerdo de quem entra, completa-se o conjunto com claustro, refeitório, cozinha e oficinas. O interior destas edificações era simples e austero, como convinha a uma edificação monástica.
Em torno de 1826, Pe. Leandro acrescentou mais cinco janelas no bloco à direita de quem entra na igreja e construiu a chamada "Casa das Sampaias". Entre 1860 e 1885, a igreja neo-gótica foi construída em substituição a antiga capela, pelo Pe. Clavelin, assim como a primeira metade do edifício destinado aos alunos, depois incendiado. Entre 1885 e 1889 o Pe. Boavida terminou a construção da ala dos alunos e finalizou as obras iniciadas pelo Pe. Clavelin. Desde então pequenos acréscimos foram feitos de forma a atender as necessidades do Santuário, mas nenhum teve a importância dos edifícios já citados.
A atual igreja neo-gótica em cantaria, construída em substituição à antiga capela barroca demolida, destruiu em parte a impressão de horizontalidade, pelas linhas verticais adotadas. De acordo com inscrição em sua fachada, esta é de 1880 e destaca-se pela simplicidade de suas linhas e cuidado em sua execução, sendo considerada pelos especialistas, um dos principais exemplos deste estilo no país.
O Bloco A: Casa dos Padres foi construído para abrigar os inúmeros religiosos que o Irmão Lourenço imaginou que viessem a viver no Santuário. Hoje, esse número foi reduzido a 3 padres e 2 irmãos da Congregação da Missão, com isso a Casa dos Padres passou a se restringir ao pavimento superior, junto ao Museu/Capela do Irmão Lourenço e ao Claustro.
Todo o pavimento inferior dessa ala foi reaproveitado e adaptado para atender a demanda da pousada, com quartos mais simples e banheiros no corredor. Sob o trecho da casa construído ainda pelo Irmão Lourenço, até a sexta janela, localiza-se a adega, que vem a ser o cômodo mantido mais próximo ao original do séc. XVIII.
A intervenção
"A restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte na sua consistência física e na sua dupla polaridade estética e histórica, tendo em vista sua transmissão ao futuro". Cesare Brandi
O Santuário do Caraça é uma obra de grande valor histórico e arquitetônico que deve ser ao máximo respeitada, seja pelos estilos e materiais adotados, pela localização escolhida ou simplesmente pelo uso a que se destina. Seu reconhecimento como patrimônio, no seu sentido mais amplo, implica na escolha de um método que o trate de maneira diferenciada, com operações de caráter conservativo, visando a manutenção de seus aspectos originais, de acordo com as normas internacionais; mesmo que a conservação da obra limite o ato criativo do autor do projeto ou implique na adaptação dos equipamentos de conforto necessários à vida moderna.
"As obras de adaptação deverão ser limitadas ao mínimo, conservando escrupulosamente as formas externas e evitando alterações sensíveis das características tipológicas, da organização estrutural e da seqüência dos espaços internos" (4).
Deve-se ainda considerar os múltiplos extratos da obra: ao longo dos anos o Santuário vem sendo administrado por diversos padres e cada um, a seu modo, imprimiu ao edifício suas marcas pessoais, suas experiências, seus desejos, etc. São eles valores agregados ao longo da história que não podem ser desconsiderados.
Toda a fachada principal do edifício será respeitada, sem nenhuma inclusão e/ou supressão de elementos. Algumas alterações estruturais serão adotadas para adequar a edificação ao novo uso, mas sempre visando a reversibilidade destas.
O único ambiente que possibilita uma maior intervenção do ponto de vista criativo é a adega. Sempre deixada à margem do edifício por ser um ambiente de serviço, conserva uma das mais belas e antigas paredes de pedra de toda a edificação, ainda da época do Irmão Lourenço, que deverá ser descascada de forma a apresentar toda a sua beleza construtiva.
Memorial justificativo da intervenção
Do ponto de vista crítico, todas as intervenções propostas o Santuário do Caraça, visam sanar os problemas atualmente detectados e buscar um retorno às soluções arquitetônicas originais. Como por exemplo, a supressão do entulho colocado no pavimento inferior da Casa dos Padres que impediu a passagem da água e a ventilação natural.
Dentro do conjunto arquitetônico, o Claustro e a Casa dos Padres, são os edifícios que se encontram em pior estado. Além de soluções de restauração, necessitam de um projeto de reestruturação dos espaços de forma a adequar a antiga edificação às novas condições de uso e conforto.
Para o Claustro foram sugeridas diretrizes de intervenção à partir do diagnóstico feito. Para a Casa dos Padres, foi feita uma reordenação visando um melhor fluxo de uso dos espaços e o projeto de restauração propriamente dito, o detalhamento será executado no momento do desmonte, pois alguns pontos deverão ser esclarecidos após a prospecção da estrutura. O cômodo, conhecido como Capela do Irmão Lourenço, não será considerado, apesar de pertencer ao conjunto Casa dos Padres – Claustro, por se tratar de um museu, deverá receber projeto específico, com restauração dos bens móveis e aplicação de técnicas de museologia.
Considerações finais
O Santuário do Caraça é uma obra de grande valor, e sua restauração visa primeiramente a busca de sua "Unidade Potencial" (5) sem falsificações ou perda dos múltiplos extratos acrescidos ao longo dos anos. As obras de manutenção, de acordo com os parâmetros internacionais, serão a garantia de sua longevidade.
Por se tratar de uma intervenção de caráter conservativo, as obras de adaptação foram limitadas ao mínimo, levando-se em consideração o conjunto já consolidado de forma a não descaracterizá-lo. As formas externas foram respeitadas, evitando inclusão e/ou supressão de elementos, mudanças das características tipológicas e da ordenação estrutural dos espaços internos.
Como bem único e insubstituível o Santuário do Caraça, tal como foi concebido, foi ao máximo respeitado. Todas as intervenções buscaram sanar os problemas detectados e retornar às soluções arquitetônicas originais.
notas
1
Varatojanos eram missionários ligados ao Convento de Santo Antônio de Varatojo, na região de Leiria e Fátima, em Portugal.
2
Em SAINT-HILAIRE, Auguste. 1975, p. 99. Esse termo é simultaneamente português e guarani. Caraça em português significa má cara, cara antipática. Em guarani cara e açá ou caa araçapaba, ou mesmo caráçá, simplesmente, quer dizer desfiladeiro.
3
Congregação fundada por São Vicente de Paulo, seus membros são conhecidos como Vicentinos ou Lazaristas, porque a primeira casa da Congregação, em Paris, se chamava "Casa de São Lázaro".
4
Anexo B, Carta do Restauro. Cartas Patrimoniais. Brasília: IPHAN, 1995. p. 203-204.
5
Para o conceito de Unidade Potencial, ver: BRANDI, Cesare, Teoria del Restauro. Turim, Einaudi, 1977.
[Trabalho realizado através de um convênio firmado entre a UFMG e o IEPHA. O projeto trata da restauração do Bloco A: Casa dos Padres e da definição de diretrizes de intervenção para o Bloco E: Claustro, a fim de salvaguardar um valor incalculável da história e da cultura de Minas Gerais]
sobre o autor
Patricia Campos de Abreu é arquiteta formada pela EA/UFMG, com mestrado em História, Arte, Arquitetura e Cidade pela ETSAB/UPC de Barcelona e especialização em Revitalização Urbana e Arquitetônica pela EA/UFMG, com escritório próprio desde 1995.