No ano de 2001 Joseph Beuys completaria oitenta anos de idade.
Vinte anos antes, Beuys alertava para o fato de o mundo ter sido desflorestado com uma violência sem precedentes.
Sete mil carvalhos para dar início a um reflorestamento planetário.
Um momento simbólico.
Um ponto de mutação cósmico, social, político.
Beuys acreditava que em cinquenta anos, a partir daquela data, a população mundial estaria mais consciente da importância do ambiente.
Quando lhe perguntaram a razão para o uso do carvalho e não de outra árvore qualquer, insinuando alguma ligação com um Germanismo, Beuys respondeu defendendo que, ao contrário do que se acreditou durante algum tempo, o carvalho era uma árvore predominante presente em países Anglo-Saxões e não nos Germânicos.
Beuys dizia com indisfarçada admiração do fato de o carvalho ter sido não somente a árvore que caracterizou profundamente a cultura das mais diferentes sociedades do norte e do sul da Europa durante mais de dois mil anos, como também por ter sido a árvore símbolo para a cultura Druídica Celta.
Mas, para Beuys um símbolo era articulado numa dinâmica rede de outros símbolos. Não havia, para ele, ao contrário do que algumas pessoas poderiam supor, algo que fosse único, exclusivo, privilegiado. Tudo para Beuys era cunhado sob o signo da diversidade.
Vinte anos se passaram.
No início do terceiro milênio existem, em todo o mundo, cerca de seiscentos milhões de automóveis em circulação e cerca de setecentos milhões de aparelhos telefônicos em permanente utilização. Nesse contexto, mais da metade da população mundial vive em absoluta miséria.
Apesar de tudo, em geral, as pessoas parecem ter ficado um pouco mais alerta a tudo o que diga respeito ao ambiente – pelo menos no que diz respeito ao plano físico do ambiente.
O lixo reciclado que há trinta ou quarenta anos era considerado uma proposta utópica de Beuys é hoje uma realidade em praticamente todos os países do chamado Primeiro Mundo.
O que eu gostaria de focalizar aqui, neste momento, é algo um pouco diferente.
Primeiramente, o fato de que Beuys era um artista. De que estamos lidando, neste momento, com uma reflexão sobre a arte – sobre a história da arte, da arte contemporânea. Que estamos falando de estética, e também de poder, de ética, e de religião.
Tudo simultaneamente.
Mas, não estamos falando de algo material, de algo que possamos tocar fisicamente.
Esse curioso e fascinante espelho – a estética, o poder, a ética e a religião tomados num único fôlego; e a imaterialidade, a desmaterialização da cultura material – é algo que me parece essencial na obra-pensamento de Joseph Beuys.
Com grande velocidade, podemos enfeixar aqueles quatro elementos numa única síntese: o sagrado.
Não indiquei aqui quatro elementos sem alguma razão. Quando Beuys pensava a Natureza, o número quatro era uma referência primeira. Quatro princípios, quatro seres vivos, quatro vegetais, quatro pontos cardeais, quatro portas da percepção.
Também no Egito Antigo, quatro eram os elementos que diferenciavam o mundo dos mortos do mundo dos vivos, o oeste e o leste, a noite e a manhã – tudo cruzando os dois lados do Nilo.
Essa visão cósmica e ecológica de Beuys articulava o alecrim, o louro, a oliveira e o carvalho, quatro portas, quatro mundos – o amor, a comunicação, a criatividade e os valores humanos.
Quem visitar Bolognano e a praça dedicada a Beuys, elaborada por Lucrezia De Domizio, rapidamente identificará essas quatro portas. Mas, para fazê-lo é preciso conhecer, é fundamental saber.
Essa é uma das mensagens de Beuys: estar imerso no maravilhoso tecido do conhecimento.
A palavra símbolo lança as suas raízes no Grego symbolon, que significa co-incidir, cair junto. Ou seja, tratam-se de relações complexas.
O símbolo opera no domínio da razão, e não há símbolo sem uma complexa rede de conhecimento, de significados, de conteúdos.
Em termos lógicos, o número quatro não pode ser impunentemente reduzido ao número dois – como a luz e a escuridão, o sim e o não. Nem é predicação, atributo por excelência do número três.
O número quatro é permanente rotação.
Mudança.
Dinâmica e turbulenta estratégia.
Quatro símbolos que cunham uma sinergética rede de relações.
O alecrim, desde tempos imemoriais, é identificado com os signos zodiacais de capricórnio e de gêmeos. No Antigo Egito, pelo fato de as suas folhas estarem sempre verdes, era considerado símbolo da imortalidade. Luis XIV chegou a considerar o alecrim como a verdadeira fonte da juventude.
Imortalidade, idéias que passam de uma a outra geração. Algo que sobrevive aos nossos acanhados, precários e provisórios corpos. Algo que transcende o nosso conhecimento individual.
Verdadeira transgressão do tempo e do espaço através da comunicação.
Quando pensamos no louro, como podemos evitar, onírica e magicamente, uma viagem maravilhosa ao mundo de Ovídeo nas suas Metamorfoses?
O primeiro amor de Apolo foi Dafne – Ovídeo começa assim a história. Após uma dura discussão com Cupido, fazendo uso de um traiçoeiro ardil, Apolo vence-o numa disputa de arco. Dafne ainda não conhece o amor. Vencedor, Apolo mergulha pela floresta. Mas, do alto dos céus, ferido pela traição, Cupido dispara duas setas, destinadas a diferentes fins: uma põe em fuga o amor, outra o provoca. Com esta, Apolo é ferido, com a outra, Dafne. E ela corre, fugindo de Apolo, que está a todo o momento prestes a alcançá-la, que acompanha de perto, de focinho estendido; ela, na dúvida, imagina que será apanhada, livra-se das dentadas do cão e escapa da boca que a toca. Assim, o deus e a virgem, ele repleto de esperança e ela de medo. ...roça as costas da fugitiva, junto à nuca, cujos cabelos o seu próprio sopro agita. Exausta, Dafne implora ao pai, Prometeu, e um pesado torpor lhe invade os membros – seu delicado peito reveste-se de fina casca, os cabelos transformam-se em folhas; os pés, que até agora corriam tão velozes, são raízes.
Metamorfose cruel, torna-se um loureiro.
Apolo, desesperado, toma as suas folhas como símbolo eterno daquele momento profundo.
O amor e a alma possuem uma ligação vital. Em Grego, psyche significa mente, espírito, sopro, vida, alma.
Todos esses significados preenchem o nome da deusa Grega cuja beleza era incontornável. Vênus, enciumada com a beleza da jovem Psique decide destruí-la. Chama o filho, Cupido, para que cumpra a missão.
Obedecendo às ordens da mãe Cupido parte mas, subitamente, assim que vê a jovem Psique, fica perdidamente apaixonado.
Sem saber o que fazer, confuso, Cupido procura a ajuda de Apolo – justamente aquele a quem ferira com a seta do amor.
No início contrariado, Apolo acaba por ceder à embriagante paixão de Cupido e decide ajudá-lo.
Através de um oráculo, Apolo ordena que Psique seja abandonada pela família, vestida como morta, no alto de uma montanha.
Desesperada, perdida no abandono, Psique adormece profundamente. Quando acorda, encontra-se num maravilhoso vale. Nele, há um palácio com infinitas portas.
Portas da percepção.
É a vida que renasce do abandono, da rejeição.
Penetrando pelo magnífico palácio ela encontra em cada sala novas encantadoras surpresas – tudo envolto por misteriosas invisíveis vozes daqueles que dizem ser seus criados.
À noite, sem que ela possa distinguir das sombras, ao leito vem o marido, misterioso, invisível, delicado. Vê-lo significaria a desgraça para ambos.
Ela está morta, mas também viva.
Vênus e Cupido estão satisfeitos, porque nada se vê.
Depois de algum tempo, dias, meses talvez, durante uma das mais apaixonadas noites, segreda ao marido o desejo de reencontrar as irmãs. Ele, cauteloso, avisa-a do perigo. Ela implora.
Tudo lhe é concedido e Psique viaja para rever as irmãs. Pura, ingênua, conta-lhes tudo, da insondável fortuna preparada pelo destino. Ódio disfarçado pelos falsos lábios sorrisos, paralisia do mundo pelo veneno da inveja, as irmãs convencem-na a romper o acordo e, finalmente, ver quem era aquele misterioso ser.
Afinal, poderia ser um monstro!
Poderia, na sombria quietute noturna, devorá-la.
De volta ao palácio, calma noite, o misterioso ser está em sono profundo. Passo a passo, cuidadosamente, Psique ilumina-o com uma lâmpada de óleo e vê o mais belo ser que jamais poderia imaginar. Comovida, tocada pela própria traição, os seus passos confundem-se, vacila, falta-lhe o ar, as mãos tremem e da lâmpada uma pequena gota de azeite queima Cupido…
Todas essas histórias parecem costurar a permanente relação entre vida e morte, conjunções e disjunções.
Esta é a história de fênix. Fabuloso pássaro mágico vindo da Etiópia, lenda que generosamente confunde-se com Hórus.
Uma gigantesca águia de todas as cores, símbolo da morte e da ressurreição. Espécie única, reproduz-se sozinha. Busca mirra, louro, alecrim, azeitonas, com as quais faz um ninho no alto de um carvalho. O ninho queima-se e o pássaro morre, para renascer das suas próprias cinzas.
A cada um dos seus ciclos de vida, nasce uma nova era na Humanidade.
Quantas imagens terão passado pela vida de Beuys!
Quantas descobertas, quantas surpresas terão impregnado a sua alma!
Quatro.
O alecrim, o louro, a oliveira e o carvalho. O amor, a comunicação, a criatividade e os valores humanos.
Estética, poder, ética e religião.
Eterna rotação.
Mudança.
Tudo estruturado num sistema para o qual o estereótipo não é possível.
A rede de símbolos, de co-incidências ao nível dos seus elementos, é de tal forma interativa que todas as relações apresentam-se, a priori, possíveis.
É essa potencialidade que caracteriza o trabalho poético.
Algo que ficou conhecido na medievalidade como virtus.
O fundamento do sagrado é exatamente a negação do estereótipo. É a virtualidade, a potencialidade de todas as relações.
Quando Joseph Beuys projeta um reflorestamento mundial, ele o faz enquanto transformação da mente, tendo o planeta como uma complexa e dinâmica rede de idéias em permanente mutação.
Aquilo a que chamamos de civilização não é a competição tomada enquanto concorrência permanente, mas sim a capacidade de contemplação, de reflexão. Sem essa capacidade, não somos humanos.
O ambiente para o qual Beuys alertou não está restrito ao plano físico, mas é uma abordagem complexa daquilo a que vulgarmente chamamos inteligência pois, como o próprio Beuys considerou, o verdadeiro capital da humanidade é a criatividade e o conhecimento, a capacidade humana.
O ambiente somos todos nós.
Algo que nos coloca face a face a William Blake quando defendia que «se as portas da percepção estiverem limpas, as coisas parecerão ao ser humano como realmente são, infinito».
sobre o autor
Emanuel Dimas de Melo Pimenta é arquiteto, artista plástico e músico, atualmente radicado em Portugal. Desenvolve seus trabalhos na ASA Art and Technology (UK).