As recentes polêmicas a respeito da contratação pelo poder público de projetos arquitetônicos com dispensa de licitação, através do recurso à “notória especialização”, deveriam ser suficientes para alertar aos arquitetos que estamos sem uma política efetiva nesse sentido. O questionamento à contratação de nomes consagrados da arquitetura brasileira através desse recurso torna-se ridículo ao direcionar o foco à existência ou não da capacidade que justifique a dispensa em lei (1), e à maior ou menor futilidade dos motivos que a movem.
Ganharíamos mais se refletíssemos sobre os objetivos e formas de inserção dos arquitetos na ação do poder público para a construção das nossas cidades.
Nas duas últimas décadas, a defesa dos concursos de projeto tornou-se quase o único tema nesse sentido. O resultado é questionável. O fabuloso esforço da categoria, com milhares de profissionais mobilizados para participarem de concursos abertos, gerou uma lista de propostas não construídas, distorcidas, esquecidas, com algumas poucas oportunidades bem aproveitadas. A freqüente incompatibilidade entre a posição majoritária do júri e a dos promotores da obra é muitas vezes subestimada, sendo contornada pelo artifício do “concurso de idéias”, onde o descompromisso com a realização do projeto vencedor é institucionalizado já no edital.
No fundo, o concurso traz em si os vícios de uma concepção bela-artista da arquitetura, onde o arquiteto entra com uma proposição estética sobre um programa preestabelecido e sem o compromisso rigoroso com orçamentos disponíveis. Grande parte dos desafios nos quais os arquitetos poderiam contribuir para o poder público superar, necessita uma participação desde o seu equacionamento, entendendo a situação urbana, definindo o programa e gerando o projeto em conjunto com profissionais das mais diversas especialidades. Algo que exige proximidade, informação, estrutura e constância de atuação, e não apenas um belo insight de virada de véspera de entrega.
A atual legislação de licitações apresenta uma certa gama de opções para a administração pública poder ser criteriosa na seleção dos profissionais que irão contribuir com a sua ação. Poderíamos começar por esse ponto, com o IAB apresentando às diversas instâncias do poder público algumas propostas concretas, reservando os concursos para momentos especiais, onde o tema justifique o esforço da categoria. Certos tópicos são obrigatórios:
Para aprimorar as concorrências de projeto, seria útil discutirmos formas de transformação da “nota técnica”, fase importante de uma licitação, em um instrumento para desestimular os aventureiros do menor preço e permitir a escolha do melhor projeto ou equipe de profissional.
O IAB poderia solicitar e divulgar os critérios que levam prefeituras, governos estaduais e federal a conferir “notória especialização”, e para quais casos esse recurso extremo está sendo utilizado, criando a base para uma jurisprudência que evitaria o constrangimento de alguns e a picaretagem de outros. Pelo mesmo motivo, é obrigatória a extensão dessa discussão para a contratação, na mesma modalidade, de universidades e fundações.
Não menos importante seria uma política de reconstrução de corpos técnicos de carreira nos órgãos públicos, devastados nesta década neoliberal, mas fundamentais para garantir alguma continuidade de ação urbana.
No entanto, uma outra frente de discussão seria importante: contratar arquitetos para quê? Em meio à confusão generalizada que predomina na arquitetura contemporânea no Brasil, a imagem da contribuição possível dos arquitetos com o poder público abrange uma gama que vai do city marketing à infra-estrutura urbana. Dificilmente as discussões internas da arquitetura são acompanhadas ou compreendidas pela sociedade em geral e pelos administradores públicos em especial. Esse distanciamento é fatal para a construção de demandas de contratação de arquitetos, em geral aquém das potencialidades que a área poderia oferecer.
Algumas outras áreas têm iniciativas interessantes. Um bom exemplo é dado pela Associação Nacional de Transporte Público – ANTP, organismo não governamental que há anos vem construindo um corpo consistente de propostas hoje em prática em muitas cidades brasileiras. Além de uma frente de discussão interna sobre as experiências realizadas, a ANTP organiza encontros periódicos de secretários municipais de transporte e trânsito, onde essas propostas são apresentadas ao poder público, construindo uma expectativa clara no que a área de transporte pode contribuir. As formas de contratação de consultores (inclusive muitos arquitetos que atuam nessa área) são apenas um detalhe, pois os seus motivos e objetivos são muito claros.
Talvez assim os arquitetos pudessem intervir na instituição de um mercado de atuação profissional mais consistente e responsável. Em um momento no qual o Estatuto da Cidade entra em vigor, essa discussão é mais do que oportuna.
notas
1
Levou uma semana de constrangimentos até que a Prefeitura de Ribeirão Preto conseguisse derrubar a liminar que suspendia a contratação de Oscar Niemeyer através da “notória especialização”.
sobre o autor
Renato Anelli é arquiteto, professor livre-docente do curso de arquitetura e urbanismo da EESC-USP