Relações binárias e influências entre textos são meros retratos na parede do comparativismo literário. Há décadas que a questão metodológica que imprimia uma relação de puro confronto entre obras, autores ou temas foi se esvaziando. Termos como fonte, origem, influência, autonomia, dependência, metrópole e periferia perderam o seu peso, para flagrar na atual virada de século uma rota que se dá pela acumulação das formas de criação artística e literária: uma espécie de aglutinação informacional que, ao invés de comparar pelo sinal de subtração, utiliza o valor de somatório para a sua operação estética.
Com efeito, o caminho a ser trilhado pela Literatura Comparada, hoje, precisa levar em consideração a idéia wagneriana de arte total, embutida na arte contemporânea. Em sua prática de arte total, Richard Wagner afirmava a capacidade que cada meio de expressão artística tem em atravessar suas fronteiras formais, transpassando histérica e herculeamente os seus limites, à procura do pleno da arte, da plenitude do excesso (2).
Este excesso, que acumula sem discriminar uma diversidade de vozes, parte do pressuposto de que a expressividade dos objetos artísticos, se dá justamente na apreensão globalizante de sua construção. Não sendo ermo detalhe, nem harmonia perene, a obra é efeito de um todo internamente em confronto e em diálogo com diversos sistemas discursivos. A estética do excesso nasce, assim, dentro de sistemas culturais abertos que ignoram um centro fixo como valor da conformação e irradiação das simetrias. Tais sistemas descentrados organizam-se assimetricamente e ativam forças que ultrapassam seus limites.
Portanto, os estudos comparativistas descobrem a estética do excesso e sua imprescindível atuação na análise dos produtos discursivos e disciplinares. Tais produtos seguem sua rota de expansão, baseando-se em um movimento equivalente à teoria física da Grande Explosão primordial. No “Big-Bang”, a origem do universo é concebida a partir de uma explosão primeira, ocorrida entre 15 e 20 bilhões de anos atrás. Esse “instante zero” do “Big-Bang” pode ser definido como uma situação de extrema compressão e temperatura extremamente alta, onde as leis da física habitual não são válidas. O resultado desse processo foi, então, a progressiva estruturação da matéria, das partículas elementares aos átomos mais simples, até a formação das galáxias, dos planetas e da vida.
A descoberta do “Big-Bang” ocasionou os avanços recentes da investigação científica, trazendo novos elementos de reflexão sobre os conceitos de ordem e desordem, lógica e acaso na natureza. Nasce o caos ou, mais precisamente, o comportamento caótico, fruto da descoberta de que a maioria dos sistemas dinâmicos não segue um comportamento regular e previsível, mas um comportamento altamente complexo, com características aleatórias.
A arte comunga também com o caos. Observando-se a dicotomia/complementação que Nietzsche analisa em A origem da tragédia (3), Apolo e Dionísio seriam, respectivamente, a “ordem” e “desordem”. Da mesma maneira, o compositor experimental paulista Livio Tragtemberg comenta em relação à música:
“Ao longo do tempo, a música ocidental [...] caminhou de forma a estabelecer padrões e parâmetros cada vez mais estáveis e uniformes para o fenômeno musical, no sentido de elaborar um sistema globalizante. Esse movimento atuou na uniformização da escala de frequências [...] sistema temperado [...], num sistema de durações baseado em números proporcionais [...] e ainda num elenco de formações instrumentais [...] e de formas musicais." (4)
Assim, se o caminho da música ocidental aponta para o lado apolíneo, “no sentido da uniformização e do estabelecimento de um repertório controlado a priori da criação propriamente dita”, hoje se pode inverter a seta para o lado dionisíaco. Tragtemberg, na criação musical operada pelo caos, sugere que, “a partir dos equipamentos eletrônicos, é possível interferir na natureza acústica básica do som, a ponto de simular nela procedimentos não-lineares e aleatórios que perturbem desde a formação da própria freqüência até o timbre”. O que comumente se chamaria de ruído é um fenômeno sonoro cujos formantes combinam-se de maneira irregular, “incorporando equações complexas que não são redutíveis a um ou mais padrões predominantes (5).
Totem exemplar desse universo em expansão, onde aguçados graus de imprevisibilidade varrem sua lógica interna, sua comunicabilidade, a obra Galáxias, de Haroldo de Campos, foi produzida ao longo dos anos de 1963 a 1975, convivendo tanto com composições elíptico-concretistas quanto com obras de alta carga redundante do poeta-crítico-tradutor.
Às cinqüenta páginas impressas das Galáxias correspondem os cinqüenta cantos/fragmentos. O primeiro e o último canto são denominados por Haroldo de “formantes”, numa clara alusão à terminologia musical, retirada do maestro e compositor contemporâneo Pierre Boulez.
"e começo aqui e meço aqui este começo e remeço e arremesso e aqui me meço: quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da [...] por isso meço por isso começo a escrever mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar coma escritura por isso recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é [canto 1]
* * *
fecho encerro reverbero aqui me tino aqui me zero não canto não conto não
quero anoiteço desprimavero me libro enfim neste libro neste vôo[último canto]" (6)
Leitura linear ou em fragmentos, o texto foi concebido por seu autor para ficar no limite entre a prosa e a poesia, entre a harmonia e a melodia, entre o plano do conteúdo e o plano da expressão, construindo em rompantes uma estética do excesso. E cada canto/fragmento, mesmo lido separadamente, irá espelhar o seu conjunto, sua totalidade: “galáxias”. É Haroldo quem relata: “cada um possui a sua diferença específica. Há uma vértebra geral que é o livro como viagem e a viagem como livro” (7).
A vocação barroquizante de Campos – nem tanto em relação à linguagem, porém, mais em relação à proliferação das imagens e dos torneios de significantes inclusos – aproxima as Galáxias à teoria do “Big Bang”. Numa radical multidisciplinaridade comparativista, a obra ultrapassa a si mesma, rompendo as fronteiras de sua mídia primeira e expande-se. Expande-se para outras mídias tecnologicamente mais sofisticadas e de apelo massificante.
Dezesseis fragmentos da obra foram lidos pelo autor no compact-disc Isto não é um livro de viagem (8). Se o oitavo fragmento serve de motivação ao título [“isto não é um livro de viagem pois a viagem não é um livro de viagem / pois um livro é viagem...”], o ruído pela utilização do novo meio permite a ironia que se instalou na capa do CD: “isto não é um livro; é a própria viagem”.
Por outro lado, a relação dos concretistas [Décio, Haroldo, Augusto] com a música popular e a música erudita brasileiras estreita-se e, também, surpreende as Galáxias – que tem alguns de seus fragmentos [ou parte de] musicados ora por Edvaldo Santana e Péricles Cavalcanti, ora por Lívio Tragtemberg e por Caetano Veloso no décimo quinto canto: “Circuladô de Fulô”:
"circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá e viva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá..." (9)
Do som viaja-se às imagens. Novamente, é esse menestrel da eletrônica quem lê passagens da epopéia digital no filme “Os Sermões”, de Júlio Bressane. Haroldo reduplica-se no Pe. Antônio Vieira, sob a lente neobarroquizante do cineasta e parceiro. São eles que, no vídeo “Veredas do Grande Sermão”, de Cássio Morandei e Gil Hungria, discutem a transposição dos Sermões, de Vieira, para o cinema.
Em termos de radicalidade estética, as Galáxias se prestaram para a produção de três vídeos instigantes pelo processo formal apresentado.
O primeiro deles é o mais simples. Realizado como uma videocolagem, como uma videorreportagem sobre o lançamento do CD Isto não é um livro de viagem, o vídeo “Ouver galáxias”, de Moradei e Hungria, reúne as idéias estéticas e de comportamento caótico de Haroldo e do músico Tragtemberg em contraponto com imagens da festa.
Passando da esfera documental para a esfera dramático-experimental, têm-se Bressane e Haroldo de Campos surgindo como “videomakers” e, juntos, produzindo os vídeos “Galáxia Albina” [1990] e “Infernalário: Logodédalo, Galáxia Dark” [1992]. “Galáxia Albina” – com Bete Coelho, Giulia Gam e Tânia Nomura – é o primeiro de uma trilogia sobre as Galáxias, transposição de uma viagem solitária de palavras e de papel para imagens sonorizadas em VHS.
Já a parte II desta trilogia galáctica, “Infernalário: Logodédalo, Galáxia Dark” – com Bete Coelho e Mariana de Moraes –, apoia-se numa estética “dark” que retira da obra de Campos sua “matéria-escura” para combiná-la às imagens rarefeitas do cineasta e às marcações marionetizadas das atrizes: lusco-fusco mítico, cênico e interpretativo. Nessa galáxia negra, é perceptível o mundo lido pelo taoísmo chinês: a multiplicidade é concebida como manifestação da Unidade, que, por sua vez, é gerada pelo Vazio – um vazio impenetrável ao raciocínio, mas paradoxalmente pleno de virtualidades.
O universo primordial era pura energia. A partir daí, desenharam-se cenários mais e mais complexos das dramáticas transformações do cosmo em sua estruturação material. A criação das Galáxias segue, por analogia, o “modelo inflacionário” do “Big Bang” e a estética do excesso que representa a arte finissecular do final do século vinte e do início deste. Da palavra primordial a gerar escritura, aos cantos/galáxias que se expandem e proliferam, esta obra de Haroldo não reluta em transpassar linguagens, mídias, fronteiras: universo em expansão.
notas
[Pinturas do alemão Ferdinand Leeke (1859-1925), encomendadas em 1889 por Siegfried Wagner, para ilustrar cenas das Óperas de seu pai, o compositor Richard Wagner]
1
Este texto foi publicado, com pequenas modificações em: CUNHA, Eneida L. e SOUZA, Eneida M. de. Literatura Comparada; ensaios. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA/EDUFBA, 1996.
2
CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 64.
3
NIETZSCHE, Friederich. Origem da tragédia. Lisboa, Guimarães &Cia., 1972.
4
TRAGTEMBERG, Livio et alii. A ciência e a arte do acaso. Ciência Hoje. São Paulo. V. 14, nº 80, mar/abr 1992, p. 60.
5
CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo, ExLibris, l992.
6
CAMPOS, Haroldo de. A poesia de Haroldo chega ao CD. O Globo, Rio de Janeiro, 28 de jun. de 1992, 2.cad, p.7.
7
CAMPOS, Haroldo de. Isto não é um livro de viagem. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1992 [compact-disc]
8
No site www.haroldodecampos/tela-cd/cd.htm são listadas outras gravações que partem da obra de H. de Campos.
9
CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. Ed. cit.
sobre o autor
Antonio-Manoel Nunes é doutorando de Literatura Comparada na UFRJ