É de chapa de ferroDe chapa porque pretendo, partindo da superfície,
Mostrar o nascimento da terceira dimensão.
De ferro porque é necessário
É natural de Minas, está ao alcance da mão
Todo mundo sabe trabalhar em ferro
A superfície é domada – é partida e vai sendo dobrada –
É quando, e por fatalidade, o espaço se integra criando o não previsto. (1)
Amílcar de Castro é hoje o mais importante arquiteto de Minas Gerais. Tal posição vem sendo confirmada desde algum tempo, mas agora já não há mais espaço para dúvida. Em um feito inédito conseguiu emplacar não só um, mas dois projetos no mais concorrido concurso de arquitetura dos últimos anos no Brasil – Centro de Arte do Grupo Corpo – sendo que com um deles sagrou-se vencedor. Dentre a abstração da escultura e o rigor do desenho, o pato.
Em sua ambição desenfreada por se tornar reconhecido como grande arquiteto, Amílcar tirou da cartola dois de seus coelhos preferidos: o corte certeiro do aço – que já foi corte e dobra do plano mas cada vez mais é cisão do volume – e o risco cortante e contínuo sem abandonar o papel, que aprendeu com seu mestre Guignard.
Podemos dizer que a primeira opção foi a mais bem sucedida, como demonstram os fatos. Tal opção havia sido utilizada em outros projetos anteriores, como na Gameleira (Expominas) por exemplo, quando Amílcar deixa de lado as tensões e a maleabilidade do metal, para em um lance surpreendente propor o corte e a dobra do concreto. Entretanto não podemos nos esquecer que foi com a segunda opção que o arquiteto conseguiu a síntese perfeita.
O movimento contínuo da mão mudando de direção o traço no papel se realiza no espaço da representação como dobra da superfície, que se desdobra no lugar como representação do gesto. Desenho como escultura, escultura como arquitetura, arquitetura como desenho.
Em recente apresentação pública de vários projetos concorrentes do referido concurso, Amílcar não compareceu mas enviou seus subordinados para que procedessem à explanação acerca de seus dois projetos. Vamos nos limitar a uma dissecação dos seus procedimentos na concepção de seu projeto que hoje reconhecemos como vencedor do certame. Para tal, quatro conceitos extraídos da exposição são fundamentais: expressão, abstração, forma e escala.
Nas palavras do apresentador: “pensamos em utilizar o aço não só como estrutura, esqueleto, mas tentando extrair do material toda a sua capacidade expressiva”. Diante das imagens apresentadas deduzimos então que além de ser estrutura, o metal é também a superfície que recobre todo o exterior do prédio. Se a estrutura é de uma maneira geral relegada a um papel secundário na arquitetura, a superfície externa é talvez o que ela tem de mais valioso e mais “contemporâneo”, e no caso do projeto em questão, o que tem de mais expressivo (segundo o palestrante). Podemos nos perguntar porque se está considerando como expressivo utilizar o aço como revestimento de todo o edifício. A expressão pode estar presente no novo, no singular, no diferente, no todo. Devemos lembrar que o material em questão possui a característica de se oxidar com a exposição ao tempo e à umidade e talvez esta seja mais uma pista de sua “expressividade”. Também a metáfora patropí do aço como expressão de uma mineiridade, se é que isso existe, serve de pista.
Juntos, o esforço arquitetônico da expressão na redução dos elementos a uma única, uniforme e homogênea superfície e a contingência do tempo agindo sobre esta, controladamente. A “expressividade” é em última análise esforço e controle despendidos sobre o objeto, seja ele um bloco metálico maciço de pequenas dimensões ou uma falsa massa edificada na paisagem, com a diferença fundamental que no pequeno bloco os vestígios e as marcas da força utilizada para cindir as partes não são passíveis de ocultamento, e o controle que se exerce sobre a matéria é tátil, factível, e não da dimensão da representação.
Qual é então o papel da abstração no procedimento utilizado pelo arquiteto? Como se sabe, Amílcar antes de se tornar arquiteto era antes de tudo um escultor. Trabalhando com o aço, suas obras sempre estiveram dentre aquilo que conhecemos como arte abstrata, no caso escultura abstrata.
A abstração foi e ainda tem sido um conceito caro à arte e à arquitetura desde as vanguardas do século XX. Para Wilhelm Worringer o “afã de abstração” do homem moderno é uma maneira de “retirar o objeto do mundo exterior, do seu nexo natural” e fazê-lo “necessário e imutável, aproximá-lo de seu valor absoluto” (2).
Esse valor absoluto é alcançado na autonomia da abstração geométrica e no rigor exato da imutabilidade das formas. Como no paradoxo entre o labirinto e a pirâmide descrito por Bernard Tschumi: “você pode participar e partilhar do labirinto, mas a sua experiência sempre é de uma parte do labirinto”, já na pirâmide a percepção passa pelo abarcamento visual do todo, “a arquitetura reduzida à sua forma ontológica” (3).
Se nem toda a arte moderna foi abstrata, foi talvez a escultura o campo da criação em que mais se permitiu a figuração. Voltemos então à questão inicial acrescentando a ela desde já a seguinte dúvida: teria o arquiteto “coragem” de utilizar-se de tal procedimento escultórico para geração de um outro objeto que não uma escultura, mas um edifício, se esta matriz escultórica tivesse em sua raiz uma investigação essencialmente figurativa?
Imaginemos rapidamente o impacto de um Brecheret de 10.000 m², com algumas dezenas de metros de altura e com janelas com dobradiças “camarão” disfarçadas em sua superfície de bronze. Diante da desolação e da perplexidade da vizinhança, essa esfinge magnífica se imporia solitária. Sua geometria complexa e “orgânica”, deixaria os arquitetos mais ousados atônitos. Do ponto de vista do interior, as “conseqüências” seriam ainda mais benéficas, expandindo as possibilidades muito além de um ajuntamento burocrático de compartimentos. Se Bilbao pode ter um edifício “quase-peixe”, porque não podemos ter uma figura humana “quase-edifício”?
Robert Venturi afirma em seu livro Aprendendo com Las Vegas: “quando os sistemas de espaço, estrutura e programa são distorcidos por uma forma simbólica global, chamamos essa classe de edifício que se converte em escultura de pato” (4) (O pato em questão é um drive-in, “The Long Island Duckling”, com a forma da ave em Long Island). O autor continua: “quando os sistemas de espaço e estrutura estão diretamente a serviço do programa, e o ornamento se aplica sobre estes com independência, chamamos a este tipo de galpão decorado” (5).
O pato é um edifício especial pois ele é um símbolo, o galpão decorado é um edifício convencional a que se aplicam símbolos. Estamos diante de uma operação que ao mesmo tempo é “pato” e “galpão decorado”.
O galpão é a arquitetura em seu estado mais neutro, sem qualquer possibilidade de especificidade. A escultura é a forma em seu estado mais puro. Todas as operações do escultor na transformação da matéria-prima em objeto estético, são por definição formais, dizem respeito à manipulação, à deformação e à conformação de um novo estado da matéria no espaço. Pode-se então entender como formal aquilo que Silke Kapp define como “não um incremento superficial de um objeto constituído, mas como a disposição de elementos num todo e a relação entre esses elementos e a totalidade que procuram configurar” (6).
Enquanto escultor, Amílcar manipula o aço como matéria com propriedades físicas e químicas e, através de operações de corte e dobra desse material, modifica artificialmente suas configurações primeiras, ou seja, como forma. Ao tomar um bloco maciço do metal, de dimensões que o tornam manuseável, e a partir daí começar a cortá-lo em partes menores seguindo um rigor geométrico, as tensões entre as partes e as contradições do processo são reveladas, assim como é revelado o interior da peça. Como arquiteto, Amílcar faz desse processo apenas simulação, o transforma em sua própria representação, sua execução passa por outros caminhos que não os que ele emprega na confecção da escultura, ou seja, como imagem.
Gordon Matta-Clark realizou vários experimentos no objeto arquitetônico na década de 70. Ele realmente cindiu, cortou e perfurou radicalmente edifícios inteiros. Como Amílcar corta um pequeno bloco, Gordon cortou casas ao meio (Spliting, 1974), fez surgir no interior de um edifício em Paris o que chamou de “interseção cônica” (1975) ou um espaço negativo na forma de um cone trespassando vários níveis do edifício. Seus procedimentos são os de um artista, não de um arquiteto. Mesmo trabalhando e agindo no espaço, suas operações se orientam no “campo expandido” pelo dados (estrutura, forma...) e as condições pré-existentes do sítio. Como o Amílcar escultor que manipula o aço (não o produz), Gordon ataca a arquitetura como material e como situação. Amílcar como arquiteto tenta em um só lance produzir o seu material e golpeá-lo. O que para Matta-Clark pode ser um exercício de site especific, um procedimento “tático” em um campo que o artista desconhece (ou ignora) sua totalidade, para o Amílcar arquiteto se torna “estratégico”, e portanto reducionista e abstrato uma vez que material e golpe são planejados e executados juntos, como uma só coisa. Assim, o corte ou fissura no edifício só têm sentido se forem além de sua idealização, sua representação, se forem realmente um fato, um evento, tal qual na escultura de Amílcar.
Como o pato de Venturi, o prédio de Amílcar “está fora de escala” (7). Flertando com a autonomia estética rigorosa do minimalismo, o edifício se revela em um rompante monumental como resultado de um procedimento caracteristicamente pop: a mudança abrupta da escala, transfigurando o que era objeto em imagem. Tal procedimento gerou o pato, gerou também as lanchonetes em forma de hot-dog, e gerou também o prédio na forma de uma escultura de Amílcar de Castro. Aqui, escultura e hot-dog se equivalem, são por definição mercadorias prontas para serem consumidas, e assim como há uma marca, uma grife para o citado sanduíche, há a marca Amílcar de Castro para a escultura. Estamos então diante de um terrível paradoxo – terrível não pelo paradoxo, mas pelo seu desconhecimento ou sua negação por parte do autor – se por um lado busca-se uma autonomia e um valor absoluto para o objeto arquitetônico sem as interferências “desagradáveis” da cidade, dos usuários, da publicidade, por outro lado utiliza-se de um expediente radical e potente de transformação de um objeto de desejo em símbolo monumental, acessível desde já a todos. Aliás, não são os logotipos os nossos monumentos preferidos?
Mais efetivo que qualquer out-door, do que qualquer slogan, que nada mais são do que mediadores entre produto (desejo) e consumidor, o edifício aqui dispensa atravessadores, ele é o próprio desejo em dimensões tão inimagináveis quanto a possibilidade de sua realização para a maioria das pessoas. Que paguem o pato!
notas
1
Texto de Amílcar de Castro intitulado “A matriz escultural”, extraído do documento apresentado na fase final do concurso para o Centro de Arte do Grupo Corpo, 2002.
2
Wilhelm Worringer, Abstracción y naturaleza, 1953, p. 31.
3
Bernard Tschumi, Architecture and disjunction, 1996, p. 49.
4
Robert Venturi, Aprendendo com Las Vegas, 1978, p. 114.
5
Robert Venturi, op. cit., p. 115.
6
Silke Kapp, Cadernos de arquitetura e urbanismo da PUC-MINAS, fev.2001, p. 47.
7
Robert Venturi, op. cit., p. 133.
sobre o autor
Wellington Cançado é arquiteto pela PUC-Minas, mestrando em arquitetura na UFMG e professor do Unileste-MG