Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Três momentos da arquitetura do século XX são discutidos sobre o pano de fundo de três filmes: Meu Tio; Blade Runner; e The Truman Show

english
Three moments of twentieth century architecture are discussed with three movies as background: My Uncle, Blade Runner, and The Truman Show


how to quote

CASTELLO, Lineu. Meu tio era um Blade Runner: ascensão e queda da arquitetura moderna no cinema. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 024.03, Vitruvius, maio 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.024/781>.

Baseado em uma história real

O cinema tem tradicionalmente oferecido um alentado campo para a representação. O moderno, em particular, ocupa lugar de destaque nesse campo e, para representá-lo, é freqüente o cinema agenciar a arquitetura, oferecendo-lhe um papel estelar, alçando-a de seu papel mais corrente de mera coadjuvante cênica. Mais do que trazer representações sobre uma realidade imaginada, a arquitetura no cinema tem sido extremamente eficaz em comunicar mensagens. No século 20, quando os embates entre moderno e pós-moderno empolgaram o mundo das ciências, o mundo das imagens soube acompanhar, antecipar e criticar a marcha dos acontecimentos. A ordem oferecida pela arquitetura moderna na organização dos ambientes humanos foi zelosamente representada pelo cinema, que se ocupou em comunicar o advento do moderno. Mas o questionamento das verdades absolutas contidas na busca da ordem fez com que o cinema rapidamente também se ocupasse de comunicar os excessos dos tempos modernos. Já no fim do século, com a desestruturação do modernismo como um caminho para se tentar chegar à ordem, o cinema passou a comunicar que fugir para uma meta-realidade talvez fosse a direção menos difícil. Cada um desses três momentos é discutido sobre o pano de fundo de três filmes: Meu Tio; Blade Runner; e The Truman Show.

Representação e comunicação da arquitetura moderna no cinema

Existe muito o que ler sobre cinema. Existe muito – muitíssimo – o que ler sobre arquitetura. Existe muito pouco o que ler sobre arquitetura no cinema. Inaceitavelmente pouco. É uma área praticamente inexplorada pelos pesquisadores, principalmente pelos que deveriam ser os principais interessados, os da área de arquitetura e urbanismo. É mais do que tempo de se dedicar uma atenção cuidadosa sobre o tema, principalmente com alguns dos rumos que vem tomando a ação projetual hoje em dia. Amo profundamente a arquitetura e amo desavergonhadamente o cinema. E é isso que me faz tentar apontar algumas das relações entre dois temas dos quais gosto muito. Principalmente para alertar que os estudos sobre essas relações merecem ser estimulados.

De antemão, adianto que concordarei placidamente quando, ao término da leitura deste texto, o leitor reclamar que deixei um monte de filmes importantes fora. Isso vai ser absolutamente verdadeiro. E podem esquecer: aquele filme que cada um esperava que eu fosse falar sobre arquitetura no cinema, provavelmente não vai ser nem sequer mencionado, porque a representação da arquitetura no cinema é muitíssimo mais numerosa do que se poderia fazer caber numa palestra (1). Decididamente não cabe. Além disso, as relações são muito intrincadas. Seria possível criar inúmeras categorias de abordagens, cada uma mais repleta do que a outra em termos de exemplificações (2). Sendo assim, o melhor mesmo será conformar-se e ficar apenas nos exemplares cinematográficos selecionados: Meu Tio; Blade Runner, O Caçador de Andróides; e O Show de Truman, O Show da Vida, cânones legitimamente representativos da matéria em cima da qual vou tentar trabalhar. Até porque para isto, foi necessário separar-me de filmes extremamente importantes e significativos, relegando-os corajosamente a um desolador abandono. Contudo, esses três filmes parecem fortes o suficiente para ilustrar uma trajetória que a arquitetura moderna vem atravessando no cinema. Mais ainda, podem ser considerados emblemáticos dessa trajetória. Da trajetória que a representação da arquitetura moderna percorre no cinema (E pelo fato de o cinema ser uma manifestação que tem apenas um século de vida na humanidade – basicamente o século 20 – parece justo que seja a arquitetura moderna o personagem principal a encabeçar estelarmente o elenco desse jovem meio de comunicação).

Sem sombra de dúvida, a maior fonte de formação de representações da arquitetura no cinema é inquestionavelmente Hollywood. Mesmo assim, vou buscar em pelo menos um dos três exemplares (Meu Tio), a presença marcante da arquitetura como comunicadora de mensagens no cinema europeu. Mas o certo é que o forte da comunicação da arquitetura se dá no cinema comercial, no cinema de massa. E aí, Hollywood é nitidamente insuperável.

De uma certa forma, cada um dos três filmes pode, metaforicamente, representar três momentos dos caminhos que a própria Humanidade vem trilhando em sua caminhada em busca de uma Modernidade, em especial, durante o século passado, o século do cinema. Nessa busca, abre-se uma perspectiva oferecida pela arquitetura e urbanismo modernos para tentar-se organizar a vida, de ser tentada por seu intermédio, uma grande ordenação do espaço onde realizar as funções vitais. Afinal, arquitetura e urbanismo organizam o espaço: são, portanto, um dos instrumentos dos quais se vale a Humanidade para buscar a ordem. Cada uma dessas dimensões (que, obviamente, se superpõem e não são temporalmente lineares) pode ser representada através dos três filmes a que chamei de exemplares, auxiliando, cada um dos filmes, a representar e a comunicar questões que vêm preocupando a Humanidade em suas tentativas de organizar sua vida no espaço.

Cinema é modernidade

O cinema vem namorando a modernidade há muito tempo. Aliás, o cinema, ele próprio, é uma representação do moderno. A maravilhosa modernidade da máquina de cinema já teria sido a grande atração inicial do cinema, mais ainda do que o filme propriamente dito. O cinema demonstrava o que havia de mais moderno nas tecnologias de representação: a recém adquirida habilidade do ser humano de registrar não só as imagens mas, também, as imagens em movimento. Não é à toa que os primeiros filmes se preocupavam mais em trazer estímulos visuais que comunicassem o que era a tal de moderna maravilha mecânica, do que propriamente em apresentar uma história. Mas a mensagem da modernidade já estava entranhada no cinema.

Passados os sustos iniciais infligidos nos espectadores pela moderna técnica, a comunicação de tramas e enredos passou a seguir a competir por espectadores. Com isto, o cinema abriu uma comunicação sobre o mundo – sobre a vida cotidiana da humanidade – em dimensões até então impensadas, atingindo indistintamente a toda a sociedade, inclusive, as classes operárias, abrindo seus olhos para a existência de oportunidades nunca imaginadas. Cinema, principalmente nos Estados Unidos, era entretenimento predominantemente popular, a mais democrática das manifestações artísticas e, como tal, extremamente vigorosa em disseminar a inovação nas práticas comportamentais da sociedade. Das pequenas tendas onde inicialmente se ajuntavam espectadores para conhecer os prodígios da nova máquina, passou-se a construir casas de espetáculos cinematográficos. Surgiram os nickelodeons, lugares onde por um ‘nickel’, se podia ver um conjunto de filmes, acompanhados por canções ao som de um piano ou de uma pianola (3).

O certo é que desde a fase inicial dos sustos e estímulos visuais o moderno já era comunicado pelo cinema, o cinema representava muito do mundo moderno. Então não demorou quase nada para que a modernidade da arquitetura também passasse a integrar as imagens cinematográficas. E nisto, o Empire State Building foi absolutamente exemplar. Tendo recém suplantado em altura seus rivais próximos em Manhattan, Hollywood rapidamente consagrou-o como modelar para representar a paisagem urbana moderna. Aliás, diga-se de passagem, Hollywood foi a grande responsável ao longo do século 20 por projetar os traços do que seria “uma vida moderna”, plena de romance e de aventura, para o resto da nação e para o mundo. E para sediar romance e aventura, o Empire State nunca se fez de rogado, emocionando e comovendo o mundo, ao mesmo tempo em que comunicava como era tudo excitante quando se vivia num ambiente imerso numa modernidade nova-iorquina (4).

O cinema durante muito e muito tempo não cansou de comunicar ao mundo o que seria um ambiente moderno. Edifícios altos, por exemplo, foram a fórmula mais imediatista encontrada pelo cinema para comunicar a novidade. Modernidade é verticalização: veja só o que está se passando em New York, o primitivo King Kong no embate com o moderníssimo Empire State. Veja como o Empire State é grande o suficiente para conter toda a imensa ternura de An Affair To Remember, aquele comovente affair entre Deborah Kerr e Cary Grant (mais tarde rememorado em Sleepless in Seattle, com os personagens despertos em Seattle mas igualmente acordados em New York – e no Empire State, lá onde a ordem entre os três personagens é finalmente alcançada). Na realidade toda uma geração ficou marcadamente influenciada pela mensagem de ‘moderno’ transmitida pelo cinema. E isso em todo o mundo, Brasil inclusive. É verdade que, além do Empire State, um dos veículos mais eficazes empregados por Hollywood para transmitir essa mensagem foi o das cozinhas. Para muita gente (este autor, inclusive) a palavra moderno sempre teve forte conotação com cozinha americana. Como eram modernas as cozinhas americanas! Como tinham equipamentos mecanizados espantosos, como a vida era fácil para quem morava numa casa que contava com uma cozinha daquelas!...

Assim caminha a arquitetura moderna

Meu Tio (Mon Oncle) (1958) é um dos cinco (5) grandes filmes que Jacques Tati realizou, nos quais, o personagem principal é o Senhor Hulot, um extravagante francês (o alter-ego de Tati), morador de um bairro residencial tradicional.

E o que interessa à arquitetura moderna, o cinema de Jacques Tati, em especial, nos filmes Mon Oncle e Playtime?

O diretor, nesses filmes, faz uma apresentação sobre algumas das características mais marcantes do modernismo na arquitetura às platéias cinematográficas – especialmente as européias. Alguns teóricos da arquitetura enxergam duas manifestações antagônicas nessa apresentação: uma, de crítica irônica e contundente aos postulados modernos; outra, de apreciação das potencialidades trazidas pela arquitetura moderna para desfrutar a experiência da vida urbana. Na verdade, o próprio diretor acaba por se inclinar mais para o lado de uma apreciação crítica, porém positiva, da arquitetura moderna, mais do que por uma mordaz condenação de seus postulados mais intransigentes. Como regra, mesmo diante de uma inegável diferenciação entre as interpretações que fazem de seus filmes teóricos e críticos de arquitetura, restam sempre os comentários extremamente bem humorados e criativos com que Tati parece acolher a chegada da modernidade nos traçados arquitetônicos.

O contraste entre o moderno e o tradicional é explorado de forma radical em Meu Tio. Monsieur Hulot vive num desordenado subúrbio parisiense, Saint Maur, num confuso flat de um conjunto habitacional cheio de reformas e adições, onde a intrincada circulação é organizada espontaneamente, com alguns segmentos de escadas unindo os novos acréscimos às partes velhas de maneira aparentemente desordenada, o que parece provocar uma desordem visual e espacial generalizada, mas que é bem legível por ele em seu cotidiano. Saint Maur resiste às transformações da modernidade, tem tudo o que é típico numa comunidade tradicional, tem um mercadinho na praça, pessoas ociosas jogando conversa fora, gurizada brincando na rua, carroças, barzinhos ruidosos. O flat de Hulot está inserido num aglomerado que parece ter nascido sem qualquer projeto ou orientação de nenhum arquiteto, e que foi crescendo sem as imposições de qualquer ordenação externa (6). Num contraste radical, Tati nos introduz a uma villa arquetípica do que seria uma casa moderna, onde moram a irmã e o cunhado de Hulot. Bem ao contrário do flat, a villa do casal Arpel situa-se num bairro de classe média alta, é cercada por um jardim geométrico onde, de um laguinho, esguicha água da escultura de um peixe, tem telhado plano, tem uma cozinha que está altamente equipada com toda e qualquer bugiganga industrializada que pudesse existir à época (à altura de uma cozinha americana), é rigorosamente higiênica, racionalmente organizada, planejada, silenciosa, funcional, enfim, traz uma fiel representação do que deveria ser a tão sonhada ordem moderna. Nela, we will encounter nothing of the secretive intensity of the tortuous topological maze of the phenomenological house of Monsieur Hulot” (7). Para comunicar essa modernidade toda, Tati realizou as filmagens externas em Créteil, um subúrbio-novo desenhado nos arredores de Paris. Sintomaticamente, sempre que Hulot vai visitar a irmã, atravessa as ruínas de um muro que representa a ruptura da cidade tradicional com a cidade moderna, ou seja, onde se rompe a barreira que separa o ambiente primitivo onde ele vive, da modernidade na qual a França está finalmente ingressando (estamos nos anos 1950s) e da qual, a villa é sua legítima representação. A arquitetura está representando o moderno no cinema, está comunicando uma mensagem de que chegou finalmente o tempo moderno, onde a sociedade pode ter tudo organizado. E não o faz com a irônica ferocidade com que Chaplin o havia abordado em seu famoso, porém cruel, Tempos Modernos (1936), onde a imagens da ameaçadora mecanização dos novos ambientes de trabalho, se contrapõe uma representação idílica da casinha com cortinas xadrez onde desfruta a paz de uma vidinha tradicional nos braços de Paulette Goddard (8).

Já em Playtime, Tati se concentra mais nos espaços das grandes corporações, em vez da casa modernista. No filme, a comunicação do choque do novo se faz sentir não só através das visuais, mas também por meio de recursos menos óbvios na percepção dos ambientes, como os que são comunicados através da utilização de sons urbanos. Como o anterior, este é também um filme que traz muitos elementos de sátira ao modernismo, embora sua realização já seja mais tardia (o filme data de 1967). Aqui a ênfase das representações da modernidade é lançada grandemente na direção do urbanismo, aproveitando para introduzir uma boa dose de preocupação com a alienação que a cidade moderna poderia eventualmente gerar em seus moradores. Freqüentemente interpretado como um forte ataque à arquitetura moderna, Playtime entretanto, no entender de alguns estudiosos, pende mais para o lado positivo da crítica, pois tenta construir argumentos que confirmem os aspectos poéticos da vida moderna latentes no urbanismo modernista. Tati tornou a cidade moderna ‘a verdadeira estrela do filme’, sendo, para isto, necessário construir todo um set de filmagem criado especialmente com essa finalidade. A pseudocidade, que se tornou rapidamente conhecida como ‘Tativille’, busca mostrar uma Paris radicalmente modernizada, composta por uma arquitetura de vidros planos, concreto e aço, visivelmente emulada pelos edifícios de La Défense e calcada por aquela que é o paradigma mais emblemático da modernidade urbana, a paisagem de New York. Tativille é decididamente moderna e nela não restaram sequer traços da França primitiva (que ainda eram encontrados em Mon Oncle). A ordem urbanística agora parece ter sido plenamente alcançada, e o próprio Tati parece não se opor explicitamente a ela, pois chega a comentar que “Se eu fosse contra a arquitetura moderna teria mostrado os edifícios mais feios (...) [mas construí Tativille] de modo a nenhum arquiteto botar defeito. Escolhi apenas os melhores exemplos que encontrei. Esses edifícios são maravilhosos” (9). Na realidade, Playtime nos traz um Hulot movendo-se dentro do mundo moderno, sua vida não é mais separada desse mundo, ele já pode ser um representante da cidade moderna, uma representação do novo indivíduo metropolitano que pode desfrutar dos prazeres e oportunidades da vida moderna, que pode “fazer jorrar de dentro de si toda a sua beleza e inegável autenticidade”, como diz Lefebvre.

O dragão da maldade dos tempos modernos

No entanto, após uma série de pequenas mensagens que já vinham sendo enunciadas desde as décadas iniciais do século, finalmente uma grande intriga se interpôs de forma insidiosa ao radioso idílio que florescia entre o cinema e a arquitetura. Alguns pecadilhos inerentes à cidade moderna foram sendo revelados e o relacionamento da dupla passou a ficar seriamente comprometido.

Tudo começou com a metrópole de Fritz Lang. Hoje não se hesita em apontar que o vilão foi mesmo o filme Metropolis (1927). Nele, Lang mostrou que a vida urbana moderna poderia ser terrivelmente opressora, esmagando os seres humanos sob as altas edificações que os reduziam a proporções insignificantes. O moderno urbano, detonador de tantos portentos, podia ser ardilosamente cruel. E as imagens dessa sombria ameaça da modernidade na arquitetura, registradas em Metropolis, foram de uma eficácia tão definitiva em comunicar sua mensagem, que até hoje se tornaram o emblema da maldade do modernismo. Quem não conhece a representação dessa ameaça moderna através das imagens da perturbadora metrópole de Fritz Lang? E da existência mecânica que vive seu estereotipado habitante, o andróide?

Metropolis reinou absoluto como a representação do pesadelo que estava por vir com a modernidade urbana por muitos e muitos anos. Até que Ridley Scott se decidiu a filmar a historieta Do Androids Dream of Electric Sheep, escrita por um autor pós-modernista (irremediavelmente) paranóico, Philip K. Dick, mais tarde saudado por ninguém menos que Fredric Jameson como “o Shakespeare da ficção científica”, como nos recorda Heer (10). São claramente identificáveis as conotações entre a ‘máquina de morar’, como representação da ordem buscada pela arquitetura moderna, e o cotidiano do ser humano que a habita quase mecanicamente. O próprio autor explica que, ao escrever a obra, seu interesse era “(...) the problem of differentiating the authentic human being from the reflexive machine, which I call an android. (...) a metaphor for people who are physiologically human but behaving in a nonhuman way” (11). A essa preocupação somou-se a metódica atenção que o diretor Ridley Scott presta à ambientação em seus filmes, para desembocar-se nas minúcias visuais que acabaram tornando Blade Runner um definitivo símbolo cinematográfico representativo do ameaçador futuro da vida urbana. Scott reconhece claramente que atribui um papel fundamental à representação cenográfica na comunicação de uma idéia: “Sometimes the design is the statement”. Com treinamento profissional em desenho, pintura e artes gráficas, o diretor controlou pessoalmente os elementos visuais do filme, concentrando sua preocupação sobre a representação da arquitetura da cidade na cinematografia. Muitas imagens foram desenhadas por ele próprio, para tentar alcançar um certo look – um ‘clima’ – que comunicasse a aparência de uma cidade num futuro de quarenta anos.

Mas Ridley Scott queria apenas isso. Uma imagem representativa de uma cidade evoluindo normalmente, dentro do paradigma modernista. Não queria acrescentar nenhuma parafernália de naves ou foguetes espaciais ou coisas parecidas. Isto é, queria obter uma imagem que simplesmente conseguisse transmitir o resultado de uma especulação inteligente sobre como teria evoluído um certo ambiente – uma cidade moderna. Sua pesquisa imediatamente se voltou para New York, claro, quando passou a especular o que impressionaria mais a um homem contemporâneo se estivesse presente em Times Square há quarenta anos atrás. Qual seria a percepção dominante numa paisagem assim definida? Quais seriam os elementos mais claramente percebidos nessa situação? Os estímulos visuais percebidos com maior intensidade?

Scott descartou imediatamente a idéia de trazer impressões comunicadas através de peças de vestuário chocantes ou mesmo de carros (as modas vão e vêm). Mas atentou para o fato de que certos ícones iriam seguramente sobressair-se, e sua escolha recaiu naqueles que simbolizavam anúncios e sinais em néon. E atacou por aí. Outra fonte muito importante para a cinematografia de Scott foi a pintura, especialmente o quadro Nighthawks, de Edward Hopper. Além dos cuidados detalhistas de Scott, as representações que haviam sido comunicadas aos espectadores através das imagens de Metropolis foram absolutamente fundamentais para as definições da paisagem urbana, “Because there’s an awful lot of Metropolis in Blade Runner” conforme atesta David Dreyer, o supervisor de efeitos especiais do filme (12).

Para a cidade de Blade Runner, representativa do que seria uma megalópole num intervalo futuro de quarenta anos (e representativa dos rumos trilhados pela arquitetura moderna), Scott precisou pensar maior que New York: pensou numa conurbação unindo New York e outra metrópole. Mas a modernidade de New York já não seria suficiente para os planos de Ridley Scott. Foi a pós-modernidade de Los Angeles – ou sua avançada marcha em direção a ela – que acabou sendo a escolhida. Melhor ainda: uma união contínua de Los Angeles com San Francisco, batizada precipitadamente de ‘San Angeles’, que seria o mais indicado para abrigar, na interface das duas metrópoles – bem à imagem de uma ‘edge city’ do fim do século 20 (13) – o ambiente desejado para Blade Runner. Na verdade, foram poucas as externas tomadas em Los Angeles (basicamente, apenas as cenas dos interiores da delegacia de polícia foram filmadas no prédio da Union Station, um ícone urbano para Scott) (14). A maior parte do filme foi rodada nos estúdios Burbank (hoje Warner Brothers), no cenário conhecido como a “Old New York Street”, devidamente ‘retrofitado’ (adaptado para o futuro de acordo com a evolução do passado) pela equipe de cinematografia de Scott. Recorde-se que os efeitos especiais de computadores ainda não eram tão dominadores em Hollywood nessa época (1981). Curiosamente, aquele cenário, construído em 1929 e, agora, apelidado de ‘Ridleyville’, havia testemunhado as filmagens de clássicos do film noir como The Maltese Falcon e The Big Sleep, onde detetives como James Cagney e Humphrey Bogart também conduziam investigações, semelhantes às que agora Harrison Ford, o blade runner mantenedor da ordem, deve fazer em sua caçada aos replicantes rebeldes.

Mas não foi somente em Blade Runner ou Metropolis que a malignidade associada à arquitetura e ao urbanismo foi representada no cinema. Desde Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio de Sica, até Star Wars (1977), de George Lucas, essa representação tem sido bastante freqüente. Alphaville, de Jean-Luc Godard, é usualmente chamada para testemunhar o quanto de vazio tem a cidade modernista, “é um urbanismo de silêncio, lógica, discrição”, na interpretação de Borden. A Gotham City de Batman, de Tim Burton, é uma cruel referência a Metropolis, a ‘San Angeles’, e a New York (Blade Runner, aliás, era para ter se chamado “Gotham City”, mas o autor de Batman, Bob Kane, não concordou). Enfim, até hoje as mensagens visuais transmitidas por Metropolis e Blade Runner continuam a acentuar o contraste diametralmente oposto entre o bem e o mal representado pela arquitetura no cinema, a dialética entre os mocinhos e os bandidos, entre o tradicional vernacular e o tecnófilo moderno. Além do quê, os edifícios altos – a verticalização – como representação da arquitetura moderna, já não podem ser propriamente considerados símbolos confiavelmente estabilizados, como parece nos comunicar o edifício Ginger [Rogers] & Fred [Astaire], de Frank Gehry.

De volta ao passado com o novo urbanismo

A marcha pela busca de uma ordem na arquitetura e urbanismo felizmente não se esgota por aí. Não vai ser uma funesta alegoria trazida pela escurecida ‘San Angeles’ que fará os arquitetos paralisarem suas pesquisas na direção de uma modernidade sempre tão ansiosamente tentadora. É verdade que Los Angeles já pode ser rotulada, como o faz Charles Jencks, como a grande heterópolis mundial, cujas características, em muitos pontos, se aproximam perigosamente da ‘San Angeles’ de Blade Runner. Mas as tentativas em busca de novos rumos não param. O new urbanism, por exemplo, surpreendentemente vai tentar encontrar respostas aos problemas de hoje nas utopias espaciais do passado, desde as verdejantes unidades de vizinhança desenhadas por Raymond Unwin até as buliçosas calçadas sonhadas por Jane Jacobs. A nova corrente busca extirpar a sensação de placelessness percebida como decorrente do urbanismo modernista, re-utilizando tipologias vernaculares clássicas em suas construções e, assim, fornecendo condições para restabelecer uma identidade física desaparecida. Com isto, um mergulho quase irrefletido nas utopias do passado é prontamente arriscado pelos urbanistas do presente: a grosso modo, a corrente busca no urbanismo da primeira metade do século 20 sua inspiração para a cidade do início do século 21. Ou seja, tenta repetir muitos anos depois os mesmos moldes daquilo que os moradores mais antigos consagraram como sendo de qualidade no ambiente urbano.

Cinema e Arquitetura, nessa nova condição, passam a arriscar um incipiente reatar de sua velha amizade. Mas, por enquanto, ainda sem referenciais bem definidos. Sinal disto é o emprego da cidade real de Seaside como o cenário da cidade irreal do filme The Truman Show (1998), de Peter Weir (15). No filme, o personagem principal, Truman Burbank (Jim Carrey), é “adotado” por uma grande rede de TV e é colocado num paraíso residencial denominado Seahaven que “(...) sem que Truman saiba, é na verdade um cenário gigante onde todos os residentes, inclusive sua mulher e seu melhor amigo, são atores que recitam suas falas(...)sob o escrutínio de milhares de câmaras ocultas de televisão, num espetáculo constante” (16). Ora, Seahaven é nada mais nada menos que Seaside. E Seaside existe de verdade e é um dos pilares do new urbanism de Andres Duany e Elizabeth Plater-Zyberk.

Em termos de arquitetura, o que Duany e Plater-Zyberk estão fazendo é reconstruir, na realidade, alguns dos velhos ideais arquitetônicos norte-americanos, bem semelhantes àqueles que eram representados nas pinturas de Norman Rockwell encomendadas por The Saturday Evening Post, e que se coadunam à perfeição com o ideário do new urbanism. Ou, mais precisamente, com os sonhos fantasiosos que a Disney Imagineering Division desenhou quando criou o congraçamento de ícones que deu forma às main streets dos ambientes Disney.

Com efeito, foi Disney quem ditou o embasamento dessa prática que se tornou tão característica do urbanismo pós-modernista, e que torna real e concreto o que não é real, conciliando “(...)el liberalismo posmoderno de Venturi, y el izquierdismo antimoderno de Krier (...)y que reconcilia el populismo feísta de Venturi com el historicismo vernáculo de Krier” (17). E, ao que tudo indica, a Disney Corporation pretende seguir adiante com uma participação ativa na área de urbanismo, pois inaugurou recentemente (1996) a cidade-nova de Celebration, na Florida.

O que o cinema está tentando comunicar com isso?

O cinema, parece que com enorme habilidade, está representando um dos paradoxos mais criticados dessa nova corrente urbanística: o caráter enganador fornecido por uma percepção criada como evasão da realidade atual. Uma percepção intencionalmente estimulada através de recursos de projeto, como costumo abordar em meus trabalhos (18). O jogo de palavras com o nome do personagem já é indicativo de que se está à frente de uma ambigüidade: true-man, que seria ‘um homem autêntico’, tem por sobrenome de família Burbank, o nome daquela mesma área onde está o estúdio onde foi filmado Blade Runner em Los Angeles. Em The Truman Show o cenário é uma representação da realidade e a realidade é uma representação de uma irrealidade cenográfica. Isto porque, em última análise, a tentativa embutida nos projetos do new urbanism de fugir para o passado, defasada do jeito que é, termina por se tornar apenas uma variação a ruminar em torno de um mesmo tema: a promoção de um desenho que favorece a fuga da realidade cotidiana assim como ela se apresenta, reproduzindo nostalgicamente o que era percebido como o bom antigamente. Em outras palavras, realizar uma obra urbanística cujos desígnios não correspondem à realidade da sociedade atual, desviando-a para o descaminho de um meta-urbanismo. Isto eqüivale a dizer que o new urbanism é, ele próprio, uma ilusão: traz à área de arquitetura-urbanismo contribuições que parecem se mover para novos rumos, mas que na realidade não saem do mesmo lugar. Aquele velho lugar já tantas vezes consagrado na teoria urbana. E onde o show da vida, mesmo com todos os adereços arquitetônicos introduzidos artificialmente no cotidiano de seu cenário, continua a ser representado com as emoções intensamente reais, como as que são comunicadas em filmes como American Beauty (1999), de Sam Mendes, ou The Ice Storm (1997), de Ang Lee, estes sim, representativos de novos conceitos de vida adotados por uma Humanidade, quem sabe, agora pós-moderna.

Na real, Meu Tio era um Blade Runner

O que, finalmente, pode surpreender um pouco é que cinema e arquitetura giram tanto e dão tantas voltas em sua busca pela ordem no espaço, que, no fundo, a mudança poderia ser ainda mais expressiva. Na real, parece que meu tio era mesmo um blade runner, que buscava fielmente continuar a manter a ordem, nem que para isto, hoje, se veja compelido a fugir para uma realidade que não é mais real.

Mesmo assim, a constante autocrítica que a Arquitetura se vê incitada a praticar ao se deparar com as representações que dela faz o cinema, não pode parar e todos os esforços de pesquisa devem se voltar a realimentá-la na direção de uma constante evolução, mais do que para a revolução que quis ser o modernismo na arquitetura e urbanismo.

notas

1
O presente texto resulta de uma palestra realizada no curso “Representação e Comunicação na Arquitetura”, ocorrido em junho-julho de 2001 na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

2
Seria possível estudar desde a casa de subúrbio americana no cinema até a arquitetura dos sets de Cecil B. De Mille para Sansão e Dalila, e assim por diante. Este seria um dos caminhos. Mas também se poderia optar por outros, como o de enfocar a abordagem através de características apresentadas pelas obras propriamente ditas (tanto de filmes como de edificações). Assim poder-se-ia, por exemplo, acompanhar a convergência de enfoques existente entre Cineastas e Arquitetos em suas realizações concretas. Acompanhar a aproximação entre as obras de Josef Von Sternberg, diretor austríaco emigrado para os Estados Unidos; e Richard Neutra, arquiteto austríaco também emigrado para a América do Norte; seriam bom exemplo disso.

3
E aí já se poderia escolher mais outra vertente para estudar a arquitetura no cinema, isto é, estudar a arquitetura dos cinemas, pois essa prática logo daria margem ao cinema como veículo de comunicação de massa, exigindo grandes espaços e salas para exibição.

4
O portal do edifício na Internet apresenta, orgulhosamente, a imensa a lista de filmes nos quais já apareceu o Empire State. Veja em: http://www.esbnyc.com/html/body_movies.html

5
Os outros quatro são: Jour de Fête; Les Vacances de M. Hulot; Playtime; e Traffic.

6
Na verdade, a casa teve que ser especialmente projetada para o filme, como observa HEATHCOTE (2000:22), o que indica que Tati deve ter tido alguma dificuldade para concretizar a imagem idealizada que fazia sobre o que seria uma casa tradicional.

7
“Não vamos encontrar nada daquela sub-reptícia intensidade mostrada pelo tortuoso labirinto topológico da casa fenomenológica de M. Hulot”. Assim descreve Iñaki ABALOS (2000:75), com admirável riqueza, todos os fatos percebidos na morfologia da casa de Hulot, de natureza intrinsecamente fenomenológica.

8
Como o texto de MARQUES & LOUREIRO (2000) simpaticamente comunica.

9
Jacques Tati, apud BORDEN (2000:27-8). É interessante apontar que Borden usou como fontes para suas informações, teses acadêmicas da área de arquitetura e urbanismo.

10
HEER 2001:1.

11
“O problema de diferenciar o ser humano autêntico da máquina repetidora, a que eu chamo de andróide (...) uma metáfora para as pessoas que são fisiologicamente humanas, mas que se comportam de uma maneira inumana”. Cf. SAMMON 1996:16.

12
SAMMON, op. cit.:111.

13
Ver GARREAU, Joel. Edge City. Life on the new frontier. New York: Anchor Books, Doubleday, 1992.

14
SAMMON op. cit.:118.

15
Em paralelo, anoto que esta representação se enquadra admiravelmente no que venho incluindo sob a categorização de “meta”-urbanismo em meu corrente trabalho de pesquisa junto ao CNPq.

16
GABLER 1999:86.

17
FERNÁNDEZ-GALIANO 1999:109.

18
Ver, p.ex., CASTELLO 2001.

referências bibliográficas

ÁBALOS, Iñaki. The good life. A guided visit to the houses of modernity. Barcelona: Gustavo Gili, 2001.

BORDEN, Iain. Material Sounds. Londres: Architectural Design, vol. 70, nº 1, jan. 2000, p. 26-31.

CASTELLO, Lineu. Dona Fifina é Pós-Moderna (e nem sabia). Arquitextos, São Paulo, SP, Texto Especial nº 89, 2001 www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp089.asp.

FERNÁNDEZ-GALIANO, Luis (Dir.). La década digital, Una crónica de los noventa. Madrid: Arquitectura Viva, nº 69, novembro-dezembro 1999, p. 108-109.

GABLER, Neal. Vida, O filme. Como o entretenimento conquistou a realidade. Tradução: Beth Vieira. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

HASKELL, Barbara. The american century. Art & culture 1900-1950. New York: Whitney Museum of American Art, 1999.

HEATHCOTE, Edwin. Modernism as enemy. Architectural Design, vol. 70, nº1, jan. 2000, p. 20-25.

HEER, Jeet. Ficção paranóica. Jornal do Brasil, 29/5/2001, Caderno B, p. 1-2.

JENCKS, Charles. Architecture 2000 and beyond. Chichester, UK: Wiley-Academy, 2000.

LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life. Londres: Verso, 1991.

MARQUES, Sônia; LOUREIRO, Cláudia. Central do Brasil ou Viva Charles Jencks?: Um Estudo Comparativo dos Conceitos do Movimento Moderno no Cinema e na Teoria da Arquitetura Moderna. In Anais do Seminário Internacional Psicologia e Projeto do Ambiente Construído. Rio de Janeiro: FAU-PROARQ / EICOS-Inst.Psicologia, UFRJ, 2000. CD-ROM.

SAMMON, Paul M. Future Noir. The making of Blade Runner. New York: HarperPrism, 1996.

WOLLEN, Peter. Signs and meaning in the cinema. Londres: British Film Institute/Secker & Warburg, 3ª ed., 1972.

sobre o autor

Lineu Castello é arquiteto, urbanista, pesquisador CNPq, diretor da U&A – Urbanismo & Ambiente e professor titular da UFRGS

comments

024.03
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

024

024.00

Desenho urbano perde David Gosling (editorial)

Vicente del Rio

024.01

Lá vem o pato patropí...

Wellington Cançado

024.02

Pensar y habitar

José Alfonso Ramírez Ponce

024.04

Engenharia e arquitetura: valorização profissional

Adilson Luiz Gonçalves

024.05

El edificio FOCSA

Juan de las Cuevas Toraya

024.06

El tratamiento del patrimonio, nuevo campo profesional

Graciela María Viñuales

024.07

Villa Savoye: arquitetura e manifesto

Carlos Alberto Maciel

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided