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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O Paraíso, ou reino da plenitude e da felicidade, é um lugar oculto, é um mistério que transporta os humanos a um estado de plenitude, de exuberância do ser. Nesta dimensão espiritual reside o centro da criação artística

english
The paradise, the realm of fulfillment and happiness, is a secret, a mystery that carries humans into a state of fullness, exuberance of being. This spiritual dimension is the center of artistic creation

español
El paraíso el reino de la realización y felicidad, es un lugar secreto, un misterio que lleva a los seres humanos a un estado de plenitud, de exuberancia del ser. Esta dimensión espiritual es el centro de la creación artística


how to quote

SUBIRATS, Eduardo. Viagem ao final do paraíso. Arquitetura e crise civilizacional. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 026.04, Vitruvius, jul. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.026/768/pt>.

1. A destruição ecológica – a eliminação das memórias culturais

Quero começar com uma pergunta elementar sobre o significado do desenho; a pergunta é sobre o significado estético, existencial e cultural de desenhar um projeto e de projetar uma construção.

As palavras desenhar, projetar e construir são conceitos arquitetônicos clássicos. Contudo, definem também ações humanas genéricas. Etimologicamente, a palavra desenho está relacionada nas línguas latinas com o desígnio. Desenhar significa traçar um signo e isso quer dizer, simultaneamente, realizar uma vontade, cumprir um desígnio. O ato de projetar e desenhar se relaciona com uma vontade originária de atribuir um significado e, por conseguinte, uma finalidade ou um destino às coisas, e através delas, uma razão à própria vida humana. Desse ponto de vista, desenhar e construir são metáforas existenciais e cósmicas. Platão definiu o universo como uma construção arquitetônica projetada a partir de um desenho geométrico e uma vontade demiúrgica. A geometria definia uma ordem racional do cosmos. O demiurgo representava a força sagrada de sua criação.

A identidade entre o desenho arquitetônico do espaço e a construção original do cosmos é essencial para as cidades históricas da América, de Monte Albán a Machu Pichu. Vitruvio definiu a construção da casa, do templo e da cidade como uma obra de arte total. Elas deveriam ser o resultado da integração de uma teoria da ordem musical das esferas celestes, que definia suas proporções e sua beleza. A construção se definia também como resultado das leis materiais e das forças físicas da natureza, assim como da história da cultura. A casa tradicional japonesa e seu centro simbólico, o jardim, formam, para citar outro exemplo, um diagrama cósmico, uma mandala. A construção da maloca amazônica revela os rituais religiosos de uma relação produtiva com a natureza e com o cosmos, a restauração de um tempo histórico cíclico e a materialização de uma ordem espiritual. Em todos estes casos o conceito de desenho abraça uma indissolúvel unidade entre a natureza, o reino espiritual da beleza, os saberes e a criatividade humanos.

Contudo, projetar e construir em nosso começo de século colocam outro tipo de dilema. Não nos contentamos em perguntar sobre o significado cósmico e poético do ato criador. Nos perguntamos também sobre a degradação, muitas vezes irreversível, dos ambientes naturais, sociais e históricos nos quais criamos efetivamente um projeto ao mesmo tempo existencial, social e cultural.

Em primeiro lugar, as próprias premissas materiais de nossa sobrevivência – ou seja, o ar, a água, o calor solar e a terra – têm sido degradadas industrialmente, destruídas de maneira violenta e global. Nesta condição negativa reside a grande fissura que hoje nos separa dos conceitos civilizatórios elementares da arquitetura moderna, a Ville radieuse de Le Corbusier ou o plano piloto de Brasília de Lúcio Costa, para mencionar dois exemplos paradigmáticos. Nessa condição negativa reside também o abismo que nos separa das filosofias do progresso que têm presidido o conceito de modernidade até o início do século 20. A representação linear e acumulativa do tempo histórico inerente ao ideal clássico de progresso reverteu seus signos em favor de um tempo regressivo.

A segunda condição do desenho, tanto de nossos projetos existenciais cotidianos como de nossas cidades, é cultural. Emprego aqui a palavra cultura como a série de valores e conhecimentos herdados através das memórias coletivas, por meio dos quais se articulam o conjunto das experiências e atividades humanas num espaço natural e historicamente definido. Mas, semelhante conceito de cultura, encontrados em Herder ou Vico, chocou-se com um processo constante de destruição das memórias culturais em nome da civilização. Para as estratégias de conversão e colonização cristãs, qualquer memória anterior à doutrina era objeto de perseguição violenta. Bacon condenou os saberes herdados do mundo grego ou hindu com uma categoria que ao mesmo tempo invocava a sanção científica e o castigo inquisitorial: os chamou de ídolos. Descartes eliminou programaticamente a memória como fonte válida do conhecimento. De Leibniz a Kant e a Wittgenstein as linguagens científicas se definiram, em primeiro lugar, por sua pureza conceitual, ou seja, pela eliminação de quaisquer vestígios literários, filosóficos ou religiosos que permitissem reconstruir nossas memórias culturais. O discurso mítico da razão ocidental não tem história.

Esta eliminação epistemológica das memórias alcançou, ao longo do século 20, uma expressão definitiva em duas estratégias complementares: de um lado, a destruição violenta das culturas históricas através das guerras totais; de outro, a subseqüente colonização ou globalização industrial, mercantil e eletrônica dessas culturas. As bombas incendiárias sobre as casas de madeira e papel da Tóquio antiga, a destruição massiva de Guernica e dos Guetos judeus europeus, ou o genocídio da população indígena na chamada guerra contra o narcotráfico da Colômbia representam modelos diferenciados de um mesmo processo de eliminação sistemática das culturas históricas. Junto a isso, tem lugar seu deslocamento sob um programa comercial, eletrônico e administrativo de culturas e memórias corporativamente desenhadas. Disneylândia e Las Vegas são dois paradigmas de memória e cultura produzidas e distribuídas acadêmica, comercial e tecnicamente como espetáculo global. Representam a superação da natureza e da história por réplicas arquitetônicas ou eletrônicas intelectualmente empobrecidas e esteticamente degradadas. São também modelos de uma relação inter-humana comercialmente reduzida sob o jugo do consumo e da reprodução. Os Media Parks e os Electronic Events resumem um conceito de cultura como construção técnica, administrativamente manipulada, de ambientes e sistemas simbólicos totais mediante linguagens híbridas, simulacros performáticos e eletrônicos, ou espetáculos arquitetônico-político-comerciais.

2. Niilismo e o final do pós-moderno

Permitam-me um parêntese. Desde o começo da década de 90 se tem celebrado uma série de encontros artísticos na cidade de São Paulo sob o título de Arte/cidade. O interesse central destes eventos não residia tanto em suas obras individualmente consideradas. Seu interesse residia muito mais nas múltiplas formas de reflexão e comunicação artísticas sobre a cidade que precisamente possibilitava sua exposição fora das fronteiras institucionais da galeria de arte ou do museu. Esta imediatez entre a obra artística e a realidade urbana permitiu expressar uma série de dilemas da megalópole do Terceiro Mundo, desde a violência ambiental e social, até a degradação estética sob o signo atual de uma generalizada angústia.

Estas visadas negativas sobre a cidade e sobre a civilização constituem um motivo permanente ao longo do século 20, desde as visões apocalípticas da Berlim dos anos da Primeira Guerra Mundial, devidos a Grosz, até a experiência da destruição nuclear de Hiroshima no filme Black Rain de Imamura. Mas, o interesse desta última versão do Arte/cidade não residia apenas em sua reflexão sobre a transformação da capital industrial do Terceiro Mundo em uma imensa ferida de miséria, corrupção e violência. Sua última versão tornou evidente o fracasso de seu projeto de incidir eficazmente e afirmativamente na rede urbana e nos seus discursos. Brissac, o organizador destes eventos, pretendia redefinir uma série de espaços urbanos, queria chamar a atenção sobre suas disfuncionalidades e conflitos, tentou criar ou sugerir dispositivos de uso social comum. Na prática, estas intenções resultaram num grande grito de angústia, um grande “Não”. A reflexão artística sobre a crise das megalópoles pós-modernas desembocou, mais uma vez, no espetáculo artístico de seu próprio vazio.

Este cenário negativo da cidade como espetáculo apocalíptico partilha um mesmo espaço e tempo com as reiteradas variações pós-modernas da cidade como simulacro arquitetônico ou eletrônico. Cidades como fortalezas humanas digitalmente definidas. É sugestivo deste ponto de vista a coexistência e o conflito, neste mesmo ano de 2002, entre uma Bienal dedicada a uma cidade fictícia e suas trivialidades virtuais, e um Arte/cidade entregue à estetização da cidade contingente e suas catástrofes reais.

O vazio que atravessa estas perspectivas é negativo. É o mesmo vazio que a consciência contemporânea experimenta ante o espetáculo de sua própria aniquilação, que a indústria cultural e os meios corporativos de comunicação eletrônica nos brindam cotidianamente através de quadros de violência militar, ecológica e estética, e das ficções complementares de violência sexual, moral e estética vistas no cinema. É o mesmo vazio que o pensamento pós-modernista identificou com o olho transparente de Magritte e o olhar digital. É o vazio exaltado pela estética sublime dos arranha-céus que coroam os centros financeiros das megalópoles tardo-industriais com seus ascéticos espaços digitais e suas frias fachadas de vidro espelhado. É uma ausência de categorias capazes de definir um futuro humano. É o niilismo do nosso tempo.

Este vazio histórico e existencial tem sido, sem dúvida, um elemento dominante ao longo da história cultural da civilização ocidental. Nietzsche o descobriu como expressão metafísica dominante do Ocidente. A teoria crítica moderna, de Tönnies, no século 19, a de Mumford, no 20, não deixou de insistir sobre este esvaziamento interior da civilização industrial e moderna. A psicanálise o identificou como uma pulsão de morte propensa a desintegrá-la desde seu próprio interior. Os expressionismos artísticos, desde o grito de desespero de Munch no início do século 20 até a visão de uma humanidade degradada de Miyazaki no começo do século 21, tem colocado este niilismo e esta angústia histórica no centro de nossa consciência. O existencialismo elevou este principio do nada ao patamar de culto e fundamento de nossas vidas. A ladainha interminável das pós-modernidades, pós-histórias, pós-políticas ou pós-humanismos pode ser interpretada como um ritual banalizado deste mesmo princípio decadente. As guerras globais são sua conseqüência terminal.

3. Recuperação do tempo histórico

Vivemos uma situação histórica final. Este limite, esta crise compreende um processo generalizado de violência e destruição. Dada a capacidade letal das tecnologias financeiras, biológicas e nucleares de destruição, este processo pode acabar com a vida de milhões de seres humanos e com culturas que têm existido ao longo dos milênios. Contudo, a crise significa igualmente uma necessidade de mudança, de vontade de um renovado sentido histórico.

Definir este novo sentido histórico é uma tarefa complexa que depende fundamentalmente de nossas constelações culturais, nossos meios tecnológicos e econômicos, assim como da existência de uma vontade coletiva esclarecida. Sem dúvida, podemos formular teoricamente uma proposta elementar desta mudança a partir das três condições negativas que assinalamos: a destruição da biosfera, a destruição de símbolos e memórias históricos, e o vazio como limite negativo de nosso presente histórico.

A primeira questão afeta o habitat natural de nossas vidas no sentido mais amplo da palavra. Afeta a um conceito holístico de Gea, a igual distância das metafísicas antigas do Taoísmo e do Hinduísmo, ou dos saberes orais das altas culturas amazônicas ou andinas, e da física e da biologia modernas. Sabemos que a setorização e fragmentação das tecnociências e seus usos pragmáticos sob uma racionalidade estritamente financeira ou militar conduzem diretamente a uma catástrofe humana global. E sabemos que só uma radical revisão epistemológica dos critérios de verdade a partir dos contextos globais ecológicos e econômicos nos quais operam a tecnociência pós-moderna permitiria um controle humano sobre estes processos autodestrutivos da civilização global. A urgência desta revisão mostra-se hoje óbvia diante das questões como a emissão de gases industriais nos países do Primeiro Mundo, complementar à destruição das florestas nos países do Terceiro Mundo. É igualmente notória frente ao premente problema do controle biológico da produção agrícola e a destruição ecológica massiva por parte da indústria química transnacional. Não são menos eminentes as questões relativas ao desenho do habitat humano.

Esta aproximação holística permite redefinir o desenho como a criação de um novo equilíbrio tecnológico e formal entre as atividades humanas de construir e habitar, e seus marcos culturais e ecológicos, da cidade e da selva. Neste sentido é preciso uma ruptura radical com o reducionismo epistêmico dos racionalismos e formalismos modernos e pós-modernos, ruptura baseada nas expressões espirituais de uma nova poética. É preciso uma mudança radical no âmbito de uma cultura arquitetônica que nas últimas décadas tem girado unilateralmente em torno do mall e da highway, do arranha-céu como símbolo de um poder ao mesmo tempo antiecológico e antiurbano, e do espetáculo manipulado da informação corporativa. A nova visão artística e arquitetônica do futuro tem que dirigir sua atenção, ao contrário, para o jardim, para as reservas naturais, para as zonas de restauração de ciclos ecológicos e culturais deteriorados por um desenvolvimento econômico reducionista e irresponsável. E deve convertê-los idealmente em lugares alternativos de reeducação social.

Nossa segunda questão diz respeito especificamente à recuperação das memórias culturais. Mas me parece necessário sublinhar que esta recuperação não significa uma restauração ou taxionomia, sejam filológicas ou arquitetônicas. Tampouco significa a reprodução e armazenamento digital das memórias. Ao contrário, deve se basear numa série de estratégias complexas preocupadas em defender os meios sociais e as condições naturais que constituem o suporte ontológico destas memórias. O que se tem chamado de civilização tropical, por exemplo, é inseparável dos equilíbrios ecológicos desta franja planetária. Sua destruição pela indústria petrolífera ou mineradora abre um processo letal para as memórias que articulam suas culturas, independentemente de que estas mesmas instâncias invistam quantidades discretas de dinheiro para digitalizar as vozes de suas memórias em um processo de construção, que ao mesmo tempo as estigmatiza como terminais.

A recuperação das culturas históricas somente é possível sobre a base de duas estratégias complementares. De um lado, é preciso resistir à invasão semiótica permanente da indústria cultural, desde o turismo às redes de televisão. De outro, é necessário regenerar consciências comunitárias, estabelecer vínculos humanos solidários e restaurar as formas não depredatórias de relação produtiva com a natureza, característica de todas estas culturas históricas. Isto supõe um amplo processo de reeducação no qual a inovação das linguagens artísticas e o desenvolvimento de tecnologias ecologicamente responsáveis desempenham um papel principal.

Ambas perspectivas – o restabelecimento de um equilíbrio cultural com a natureza e a recriação das memórias culturais – contam com uma ampla tradição intelectual e artística. Na realidade, são propostas que partem de uma tradição muito mais consistente que a lógica hoje dominante de destruição histórica e ambiental subsidiária do racionalismo pós-cartesiano das vanguardas do século 20 e do anti-humanismo neoliberal que patrocina as expressões da cultura digital pós-moderna.

A natureza, sob a metáfora do jardim e da realidade da paisagem foi durante séculos o centro simbólico do palácio árabe e da casa japonesa, com uma função explicitamente educadora. Foi também a utopia da cidade democrática concebida por Gropius na Bauhaus dos anos de Weimar e Dessau. A integração da paisagem no centro da cidade moderna é um dos motivos revolucionários da concepção urbanística e arquitetônica de Brasília, graças a Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Burle Marx. Estes e outros modelos semelhantes constituem um precioso ponto de partida para a redefinição do desenho arquitetônico e sua projeção cultural contemporânea.

Falar de tradições e pontos de partida significa, sem dúvida, adotar um princípio anterior de continuidade. Os projetos urbanístico, arquitetônico e paisagístico de Brasília exemplificam de forma preciosa esse princípio. Esta cidade representa em muitos sentidos a culminância do conceito de modernidade concebido pelas vanguardas na Europa e América Latina. Nela estão expressos o funcionalismo urbanístico-arquitetônico, suas linguagens abstratas, a construção de um socialismo democrático a partir do desenho e um projeto civilizatório que compreendia ao mesmo tempo um princípio radical de soberania nacional e uma solidariedade internacional. O eixo monumental de Brasília é uma reformulação dos espaços urbanos dos centros teocráticos da América pré-colonial. A catedral de Niemeyer representa uma reflexão sobre o barroco brasileiro numa paisagem moderna. Os palácios governamentais concluem o modernismo arquitetônico europeu com uma liberdade e uma delicadeza raras vezes igualada nas metrópoles do Primeiro Mundo. O Palácio do Itamarati é a jóia que coroa esse maravilhoso sonho civilizatório. Representa uma integração perfeita da sensualidade formal do barroco e a organização racional do espaço moderno. O Itamarati é também um arquétipo de integração dos espaços interiores e exteriores, e dos elementos água, luz e concreto com a vegetação tropical, que culmina sua construção.

Mas, Brasília é ambígua. Foi um grandioso projeto ao mesmo tempo estético e político de integração nacional. Sua concepção urbanística é democrática e socialista. A plasticidade de suas formas expressa a liberdade e a sensualidade que distinguem as formas de vida da civilização tropical. Mas, Brasília também é o penúltimo ato de um processo indefinido de colonização do sertão brasileiro. Resume e conclui as façanhas militares dos míticos Bandeirantes. Lucio Costa dizia que seu sonho de cidade era romântico e igualitário. Contudo, seu projeto urbano foi concebido como culminação da ditadura militar dos anos trinta e quarenta, e terminou sob a ditadura militar dos anos sessenta e setenta. E não fica por aqui.

O período democrático de Brasília coincide com a desconstrução neoliberal de seu projeto de soberania nacional e de integração social. As novas dependências políticas e financeiras reverteram em um limpo processo geral de regressão urbana e social. O espírito comunitário que reapresentavam as Superquadras tem sido subvertido pela privatização espacial dos condomínios de classe média e pela degradação social das cidades satélites das classes baixas.

Os projetos de Oscar Niemeyer para Brasília realizados nos anos oitenta e noventa são realmente paradoxais. A vibrante luminosidade dos palácios da época da fundação da capital brasileira, e a ligeireza, o dinamismo e a sensualidade de seus espaços cederam espaço para a retórica pós-moderna de massas opacas, volumes herméticos e superfícies espelhadas. Niemeyer suplantou a delicadeza de suas colunas, leves como dançarinas, por toscos pilares de engenharia militar. E eliminou o sutil diálogo entre espaços interiores e exteriores por grosseiros volumes massivos. Os edifícios do Banco de Brasil e do Tribunal de Contas renunciam programaticamente à possibilidade da construção de um espaço original. São verdadeiras fortificações de concreto e vidro diante da paisagem natural e da cidade. Sua Procuradoria Geral encerra estas metáforas do muro sem janelas e da barreira de contenção com o simbolismo de impenetráveis torres circulares.

Assumir um projeto arquitetônico e civilizatório como o de Brasília significa antes de tudo repensar o principio de soberania que representou na sua origem. Pressupõe redefinir seu projeto social igualitário, e reassumir um desenvolvimento social que seja ecologicamente responsável. Significa também recolocar uma modernidade que foi e continua sendo ligada epistemológica, jurídica e politicamente a um processo indefinido de colonização.

Com respeito às estratégias de eliminação lingüística das memórias culturais que atravessa tanto a estética das vanguardas do século 20 como o desenho pós-moderno, pode se dizer algo semelhante. Os grandes fatos da própria cultura ocidental, desde o humanismo crítico de Valla e do inca Garcilaso, às modernas teorias da memória cultural devidas a Vico e Herder, centravam seu conceito de cultura, de criação artística e de desenvolvimento humano nas memórias lingüísticas e seus relatos mitológicos e poéticos. Tampouco devemos esquecer que os pontos altos da arte moderna, de Rivera a Klee, estão prenhes de um exemplar esforço de corrigir o curso histórico da civilização industrial a partir das culturas milenares da África e da América que o colonialismo ocidental havia destruído ou estava a um passo de fazê-lo. A integração das tecnologias modernas às memórias milenares da floresta constituiu o centro programático do Movimento Antropofágico.

Fica aberto um último dilema: a pergunta sobre o niilismo histórico de nosso presente. Esta consciência do nada tem ganho expressão ao longo do pensamento moderno, desde os turbilhões de Poe e Turner, à náusea existencial de Sartre. O nada, o vazio e o culto à violência constituem um tema central da indústria cultural ligada às grandes corporações globais da comunicação. Como contrapartida, hoje este vazio é preenchido pelos integrismos religiosos e nacionalistas, as duas faces complementares da militarização do processo pós-colonial de globalização mediática e financeira.

Definir o valor espiritual do desenho significa afirmar o caráter único e originário da existência humana e da natureza; afirmar o seu ser e a sua plenitude. A busca dessa plenitude é o significado da viagem espiritual ao Paraíso. A palavra árabe Jann ou Jenna, que significa paraíso, procede da raíz Janna, que na sua forma verbal mais simples designa velar e esconder, e na sua forma passiva assinala um estado de possessão espiritual. Concordando com esta definição etimológica, o Paraíso, o reino da plenitude e da felicidade é um lugar oculto, é um mistério que transporta os humanos a um estado de plenitude, de exuberância do ser. Nesta dimensão espiritual reside o centro da criação artística.

notas

1
Conferência pronunciada nos seguintes lugares: Fundação Cultural Banco do Brasil, Brasília; Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte; Universidade Federal do Espírito Santo; e Faculdade de Alagoas, Maceió. Período de 5 a 17 de Junho de 2002.]

sobre o autor

Eduardo Subirats é autor de uma série de obras sobre teoria da modernidade, estética das vanguardas, assim como sobre a crise da filosofia contemporânea e a colonização da América. Escreve assiduamente na imprensa latino-americana e espanhola artigos de crítica cultural e social

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