A história do município de Guarujá se confunde com a história da aristocracia paulista. Em 1892 foi fundada a Companhia Balneária da Ilha de Santo Amaro, empresa constituída pelo grupo econômico ligado a firma Prado, Chaves e Cia., uma das maiores empresas de exportação de café do país. Esse grupo, liderado pelo conselheiro Antônio Prado, seu cunhado Elias Chaves e por diversos grandes produtores de café decidiu criar no que hoje é o centro do Guarujá, na Praia de Pitangueiras, um complexo turístico que obviamente iria atender a uma seletíssima demanda por lazer à beira mar. O sucesso do empreendimento deveria ser imediato, dado o porte dos seus empreendedores. O conselheiro Antonio Prado, descendente de uma das famílias mais ricas do Brasil, proprietária de fazendas de café, casas exportadoras e estradas-de-ferro, era um bem sucedido empresário e político tendo sido prefeito de São Paulo entre 1899 e 1911. Elias Pacheco Chaves, seu cunhado e sócio era uma das figuras mais influentes na aristocracia paulista foi presidente da província de São Paulo por um curto período em 1885. Assim em 1893, sob a presidência de Elias Fausto Pacheco Jordão, a Companhia Balneária inaugura o empreendimento, que era constituído de 46 casas, uma igreja, um hotel e um cassino, tudo pré-fabricado em madeira importado dos Estados Unidos.
O empreendimento agradou em cheio aos aristocráticos paulistanos, sendo que o balneário, principalmente pelo seu cassino, era freqüentado por nomes como Jafet, Matarazzo, Chaves, Siciliano, Prado e a nata da sociedade paulista. Numa época em que o banho de mar estava mais relacionado a propriedades medicinais do que a atividade de lazer, as grandes atrações do Guarujá eram o seu hotel e o cassino. O Grande Hotel, com toda a sua sofisticação teve três fases distintas: até 1897 quando foi destruído por um incêndio, até 1910 em uma construção de alvenaria e a partir de 1912, quando conheceu o seu apogeu, em um elegante edifício projetado por Ramos de Azevedo, vindo a ser até a sua demolição no começo dos anos 60, um dos hotéis mais sofisticados do país.
A inauguração da Via Anchieta em 1947 torna muito comuns as viagens entre São Paulo e o Guarujá e com isso mais gente passa a freqüentar o município, mudando o perfil de ocupação urbana na cidade. Essa ocupação permitiu novas perspectivas de desenvolvimento imobiliário que de certa maneira compensou as perdas advindas do fim do jogo. Começa a se verificar no Guarujá um processo de verticalização acelerado que viria a tornar o município, na década de 70 a terceira cidade do país em investimentos imobiliários.
Nos anos 40, o Guarujá, com suas areias brancas e seu mar de águas límpidas continua a ser o endereço de férias preferido da elite paulistana, agora composta também pela burguesia industrial que, graças à guerra que impediu as importações, se consolidava como a nova dona do dinheiro na cidade que mais crescia no mundo: São Paulo.
O Brasil desta época tornava-se cada vez mais americano, copiando os usos e costumes de nossos aliados do norte: ouvia-se blues, Hollywood fazia a cabeça de milhares de pessoas e o american way of life tornava-se o ideal dos brasileiros de classe média.
Antenado nesses novos ventos que sopravam acima da linha do Equador, o Dr. Antonio Roberto Alves Braga, médico e advogado procura o amigo arquiteto Oswaldo Corrêa Gonçalves para que o auxiliasse na escolha de um terreno no Guarujá, onde pretendia construir um edifício de apartamentos que atendesse a demanda que começava a se manifestar pela aquisição de uma residência de férias à beira-mar.
Dessa forma os dois se colocaram a procurar um terreno que pudesse receber o que seria um dos primeiros edifícios de apartamentos a ser construído no Guarujá. A escolha então recaiu sobre o terreno onde se situava o Hotel Orlandi, um pequeno hotel construído num promontório de pedras entre as praias de Astúrias e Pitangueiras, praia essa que já possuía o edifício Pitangueiras, construído no início dos anos 40 e o Monduba, de Rino Levi.
Nessa época, Oswaldo possuía escritório na Rua Marconi, no mesmo prédio de um arquiteto formado no Mackenzie e com alguns anos a mais de experiência profissional: Jayme Campello Fonseca Rodrigues. Oswaldo então convida seu colega para participar do projeto que seria aprovado pela Prefeitura de Guarujá em 26 de outubro de 1945 e que por suas características se configuraria como um dos primeiros exemplares de arquitetura moderna a ser construído no litoral de São Paulo.
No Edifício Sobre as Ondas estão contidos todos os conceitos do modernismo, com o projeto incorporando os elementos que tornaram a arquitetura brasileira referência internacional. Juntamente com o racionalismo preconizado por Le Corbusier – piloti, planta livre, terraço jardim - vemos também a incorporação do repertório brasileiro em elementos que a partir de sua utilização por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, passaram a compor o ideário dos arquitetos modernos brasileiros.
No projeto do Sobre as Ondas, aparece de forma marcante um dos elementos mais fortes de nossa arquitetura moderna – a curva, que estabelece o contraponto com o racionalismo da fachada que modula os seus elementos construtivos. Em curva também é a própria configuração do edifício, que parece abraçar o mar, e ao mesmo tempo dominar a paisagem. Esta subversão da paisagem à técnica se faz muito presente no discurso modernista.
A partir de um programa indefinido, por parte do incorporador, os arquitetos Jayme e Oswaldo, puderam conduzir o processo de projeto no sentido de atender aos preceitos que se apresentavam então. Propuseram a adoção de três tipologias diferentes de apartamentos, formando um conjunto com 44 unidades de um dormitório, 22 com dois dormitórios e 22 com três dormitórios, além de restaurante, playground, salão de jogos distribuídos em térreo, mezanino, 11 pavimentos tipo e cobertura com 2 apartamentos e salão de jogos para uso coletivo.
A planta do pavimento tipo segue uma rígida modulação, que é quebrada apenas nas áreas úmidas que envolvem as caixas de circulação vertical. A organização em três blocos permite um uso muito otimizado dos espaços, resultando em áreas de circulação horizontal mínimas. O elevador de serviço tem suas paradas feitas em meios níveis, racionalizando a sua utilização.Também em planta podemos observar a aplicação dos conceitos modernistas: a modulação e a utilização de cozinhas-corredor são bem características.
Apesar do rigor da planta funcionalista, com os apartamentos de um, dois e três dormitórios formando um corpo único, temos a presença de uma grande laje curva que compõe o mezanino e serve como terraço coberto no térreo de onde se descortina o mar. “Essa grande laje é uma influência clara de Oscar Niemeyer e da escola carioca” declara Oswaldo em depoimento ao autor.
No mezanino localiza-se a parte superior do restaurante, que faz o contraponto com a rigidez do pavimento tipo. Ali foi prevista uma grande “ameba”, que integrava os dois níveis do restaurante. Outro elemento interessante do projeto – infelizmente retirado por alegados motivos de segurança – é o conjunto de rampa e escada que fazia a ligação entre o térreo e o mezanino pelo exterior do edifício. Solto do corpo do prédio, este permitia o acesso entre os dois pavimentos externamente, providência muito apropriada para o uso de veraneio que se daria ao edifício.
O térreo é composto por jardins, que juntamente com um painel de azulejos, deveriam ser projetados por Roberto Burle Marx, porém essa intenção dos arquitetos não prosperou. Porém no restaurante foi executado um painel da artista plástica Lise Forrel. Essa prática se repetiria em outros projetos de Oswaldo, como a residência Michel Abu Jamra, que exibe um painel de Clóvis Graciano. O pé direito duplo do térreo confere uma sensação maior de contato com o mar, pois esse terraço está literalmente “sobre as ondas”.
Na cobertura, são colocados dois apartamentos, mais um salão comum a todos os condôminos, que durante o processo de construção foi transformado em mais um apartamento. Observa-se aí a incorporação da casa de máquinas ao pavimento, que juntamente com a caixa d’água projetada longitudinalmente, retiram os volumes característicos do alto do prédio, criando na fachada um resultado mais harmonioso.
Aí vemos que apesar dos conceitos funcionalistas, que pregavam a submissão da forma à função, o projeto teve preocupação com aspectos formais, que seria uma ordenação muito presente na arquitetura brasileira.
O cuidado com os detalhes de projeto vão desde o desenho de maçanetas e respiros nos elevadores com motivos marinhos, na escolha do revestimento dos pilotis, até ao grafismo no nome do edifício localizado na sua entrada. Os materiais usados no revestimento são pastilhas cerâmicas em tons de azul e nos pilares do térreo e muros, pedra.
A obra foi quase que totalmente acompanhada somente pelo arquiteto Oswaldo Corrêa Gonçalves, já que o arquiteto Jayme Fonseca Rodrigues faleceu precocemente em 1947. A partir daí Oswaldo passa a assumir inteiramente a condução do projeto, até a sua inauguração em 17 de julho de 1951.
O edifício se tornaria um sucesso também do ponto de vista comercial. Com um lançamento feito em grande estilo, as vendas, ajudadas pelas maquetes de José Zanine Caldas foram feitas em pouco tempo. Segundo Oswaldo em uma semana todos os apartamentos foram reservados.
A construção, a cargo da Construtora Richter & Lotufo, segue fielmente o projeto aprovado pela Prefeitura de Guarujá em 1945, com exceção da cobertura, que teve as suas áreas comuns transformadas em unidades autônomas. Posteriormente foi feito o fechamento de uma das lajes do mezanino no restaurante.
Oswaldo Corrêa Gonçalves se tornaria um dos arquitetos mais importantes de São Paulo, com diversos projetos espalhados pelo estado sempre dentro dos princípios modernistas que nortearam o Sobre as Ondas.
É importante ressaltar que o Sobre as Ondas não é uma manifestação isolada dos princípios modernistas, mas sim fruto de preocupações projetuais que freqüentavam as pranchetas de uma parcela significativa dos arquitetos paulistas, que antes de meramente seguir os conceitos corbusianos, procuravam respostas para as questões mais prementes do fazer arquitetura no Brasil.
Localizado entre as praias das Astúrias e Pitangueiras, estabelecendo a separação entre elas, o Sobre as Ondas, exposto na Trienal de Milão e premiado no IV Congresso Panamericano de Arquitetura de Lima passou a ser um marco referencial na paisagem, intenção essa alcançada pelos arquitetos, pois foi a partir de sua interferência que foi escolhido o terreno.
Passados 50 anos de sua inauguração, o Sobre as Ondas continua dominando a paisagem – apesar dela ter mudado radicalmente nesses anos. Pioneiro de uma série de projetos feitos pela nata da arquitetura paulista na cidade do Guarujá, para a abastada elite paulistana, o edifício continua a marcar a orla pela sua elegância e implantação privilegiada. A despeito dos críticos, os conceitos de modernidade exercitados neste projeto frutificaram e ainda hoje se apresentam como forma de expressão representativa em nossa arquitetura.
referências bibliográficas
DAMASCENO, Monica de Barros; MOTA, Paulo. Pérola ao Sol – apontamentos para uma história de Guarujá. Edição PMG-DEC.
Guia Histórico do Guarujá, n. 1 e 2.
OLIVEIRA, Elaine Rodrigues de. A Contribuição de Oswaldo Corrêa Gonçalves para a arquitetura moderna brasileira. São Carlos, tese de mestrado, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, EESC-USP.
REIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo e outras cidades – produção social e degradação dos espaços urbanos. São Paulo, Hucitec, 1994.
Entrevistas feitas com o arquiteto Oswaldo Corrêa Gonçalves em 14 e 21/05/2001 e 09/09/2002. Prefeitura Municipal de Guarujá.
sobre o autor
Maurício Azenha Dias é arquiteto formado pela FAUS (Faculdade de Arquitetura de Santos - UNISANTOS) e mestrando na Universidade Presbiteriana Mackenzie. É professor de projeto arquitetônico na FAUS e na Faculdade de Arquitetura da Universidade Santa Cecília (UNISANTA).