Entre a realidade e a abstração
Como todo gênio – gostava de dizer que era o maior arquiteto que já existira – Frank Lloyd Wright estabeleceu padrões extravagantes de pensar, viver e agir em seu tempo (2), abstraindo-se da realidade na medida exata para transformar esta própria realidade, como mostraram os anos de sua prática profissional e como sustenta qualquer análise de sua obra. Como escreve Benevolo, Wright “decidiu trabalhar nos EUA, mas viver em Usonia, e acolher somente aquela porção de realidade externa que serve, a cada vez, para traduzir em termos concretos uma parte de seu mundo ideal” (3). Exatamente – Wright fora tanto um excêntrico quanto um idealista; há na arquitetura de Wright tanto crenças pessoais extravagantes quanto um forte impulso ideológico, religioso, um potencial amálgama entre consciência da realidade e crença que ela tem de ser diferente: “Nos meus pensamentos, a filosofia do edifício precede qualquer outra consideração", dizia (4).
Isto transfigurado à arte eclesiástica potencialmente cria valores inefáveis, seu trato com o sagrado instituindo uma simplicidade lógica para intensificação da experiência religiosa como poucas vezes sentida na história da arquitetura. Se a arte é criação, é como se nada preexistisse: “façamos desaparecer da arte qualquer forma simbólica de literatura” (5) querendo dizer, exclua-se a evasão e a transcendência, instaure-se o diálogo do homem apenas consigo mesmo; em outras palavras, desperte-se uma religiosidade intensa, mas que não procure transferir aos céus as próprias responsabilidades. Isso, que parece soar como heresia, estava na essência da ideologia Unitária com a qual Wright teve proximidade, mostrando-se ao longo do tempo superior aos preconceitos legados pela tradição cristã mais reacionária para atingir tons de profecia – efetivamente, o homem tem trilhado cada vez mais o caminho do auto-conhecimento – e o templo para Wright era o justo local de reencontro do homem consigo mesmo e com a realidade que o cerca; eis aí uma das grandes inovações por ele ofertadas para a história da arquitetura: a arquitetura pensada não como construtora de objetos, mas como ação de um sujeito.
O que há de sagrado no homem...
Uma redenção íntima ao sagrado foi o que Wright potencializou nas obras eclesiásticas que concebeu durante toda sua carreira. Isto já está colocado, em algum grau, no esboço que fez em 1887 para uma Capela Unitária para Sioux, Iowa, onde a grande nave única, divisível apenas por painéis, ensaia a flexibilidade espacial e a independização volumétrica das funções a partir de um centro, características tão suas devidamente estabelecidas logo adiante nas casas da pradaria; é evidente, no entanto, que as referências ao Shingle Style que impõe na capela circular de cobertura cônica, e os parentescos com os revivals medievais no esquema assimétrico substanciado pelo peso da pedra e pela verticalidade do telhado, ainda o impedem de alcançar o nível daquelas construções fluidas, harmoniosamente horizontais, construídas nos campos da região dos grande lagos.
No entanto, o aporte antropológico de tratar com o sagrado logo se mostrará mais pertinente naquela que é sua primeira obra eclesiástica construída, o Templo Unitário de Oak Park, Illinois, 1906, provavelmente, o “primeiro templo moderno do mundo” (6). Além da novidade do concreto legando unidade à massa sólida – antecipando em década e meia Perret em Raincy –, a composição cúbica entre sala de culto e casa paroquial unidas por um volume-corredor exercita o original senso espacial wrightiano. A planta quadrada do templo remete a tipos tradicionais de igrejas protestantes com galerias, mas adapta as conquistas configurativas das casas de pradaria às circunstâncias de um edifício religioso. O quadrado conota integridade, retidão moral que se faz pela valorização da espacialidade interna enquanto fator fundamental da arquitetura, como salienta o próprio Wright numa palestra em 1931 (7).
“Um senso inteiramente novo de arquitetura, uma elevada concepção de arquitetura; arquitetura seguindo não apenas sua função, mas concebida como espaço interior. O espaço em si pode agora ser visto como a realidade do edifício. O sentido do ‘dentro’, ou do espaço interior, dos espaços por eles mesmos, vi então como uma grande coisa para ser expressa enquanto arquitetura.”
Neste sentido, a partir do acesso ascende-se ao espaço do templo por uma escadaria, percurso que emula transcendência ao apresentar o espaço sagrado desde baixo com a luz celestial desde cima, vinda da clarabóia de cobertura; sensação que, no entanto, é logo tolhida pela limitação da malha geométrica do teto plano – ou seja, exalta-se a transcendência divina, mas logo se conscientiza de que ela encontra-se primeiro no homem. Chegando-se ao espaço de nave quadrada com galerias de três lados, toma-se contato com um esquema simples, sem inovações funcionais em termos de culto e livre de simbolismos gratuitos, para não desviar o fiel de suas responsabilidades terrenas. O próprio aparato litúrgico limita-se ao púlpito colocado lateralmente ao acesso, foco central de uma liturgia que se centra na pregação; a decoração reduz-se à faixas verticais e horizontais mais escuras que se destacam nas superfícies claras – plasticidade orgânica apegada à estrutura, como propalava o mestre Sullivan – madeira escura no mobiliário e a umas poucas luminárias pendentes de globo opaco, japonesices wrightianas. Para conforto dos fiéis, o templo conta com engenhoso sistema de calefação a ar quente, distribuída por tubulação embutida – em 1906!
Na composição externa, o cubo mais alto relativo ao templo não se propõe enquanto objeto isolado; sua contrapartida é o retângulo mais baixo da casa paroquial, analogamente tratado; a união deste potente jogo de massas faz-se pelo vestíbulo/corredor, em escala exata de conciliação. A integridade formal das partes é tencionadamente quebrada pelas subtrações induzidas aos cubos platônicos, especialmente em suas arestas, o que no caso do templo corresponde às quatro caixas de escada que ligam a nave às galerias, dissolvendo assim a transcendência da caixa pela difusão de seus limites, como era sua pretensão. Para tanto, Wright também calculou os espaços das galerias superiores, controlou as entradas de luz pelas janelas altas e pela clarabóia plana e estipulou linhas de tratamento perpendiculares entre si nas superfícies para manipular a idéia do espaço cúbico, estabelecendo uma inédita relação entre interior e exterior onde o primeiro tem prioridade. As elevações do templo são as mesmas de todos os lados que se olhe, como um símbolo de unidade (8).
No entanto, apesar de todas as sutilezas que dão conta de intensificarem uma experiência transcendente que se baseia no homem e não em figuras celestiais, interior e exterior são surpreendentemente simples. Frente aos historicismos ainda reinantes em termos de arquitetura eclesiástica por esta época não só no ambiente norte-americano, mas mundial, Wright é um verdadeiro revolucionário: se a filosofia dos unitários exclui a evasão na transcendência, por que apelar a símbolos e linguagem tradicional, servindo-se de revivalismos inconseqüentes? Por que construir um templo para Deus no sentido sentimental do termo e não para o homem, “apropriado aos seus usos enquanto um lugar de encontro, em que medite sobre si mesmo por seu amor à Deus?” (9). Por que não construir uma obra-prima de sensibilidade aos valores íntimos humanos a partir de um plano simples, de volumes simples, tratados simplesmente pela maestria na manipulação de uma geometria que evade as formas concretas para conciliar homem e natureza?
Passadas mais de quatro décadas do templo de Oak Park, período suficiente que para entre as aventuras e tragédias que viveu, entre os tantos programas que se dedicara em prolífica atividade e o amadurecimento natural do mestre modificassem suas idéias relativas ao sagrado, Wright voltaria a ratificar o aporte inicial de 1906 na concepção de outro templo para os unitários, a Igreja Unitária para Madison, Wisconsin, de 1949. Em mais esta obra, Wright, o unitário, parecia querer impregnar sua visão de uma nova vida servindo-se de um “…sagrado universal, que vai do sacramento do lar familiar ao sacramento do trabalho e da casa da assembléia religiosa” (10), querendo consumar um ambiente total que abrangesse e afetasse toda a sociedade a partir do próprio homem.
É claro, no entanto, que as chaves figurativas de sua arquitetura já haviam modificado-se desde as casas da pradaria, embora permanecesse em essência a espacialidade e o domínio plástico-compositivo dos muros baixos, das janelas estendidas, da horizontalidade e, por vezes, dos grandes telhados enquanto planos ativos nos volumes, tudo com extremo cuidado no detalhe e perfeição construtiva. Assim, o diálogo do homem com o que ele tem de transcendente potencializa-se numa sala de culto que apela à geometria de dois triângulos em oposição, mas que igualmente ao templo de Oak Park lega uma espacialidade muito simples: “Se o quadrado significa integridade, se a esfera significa universalidade, o triângulo significa aspiração” (11). O templo aspira a uma sacralidade sã em sua geometria. À direita colocam-se um acesso e o bloco dos serviços religiosos, à esquerda uma série de salas pertencentes à escola dominical e, ao lado desta, diagonalmente ao eixo longitudinal formado pelos demais espaços, a residência para o ministro encerra um espaço de recreação intermediário. Volumetricamente, o conjunto é uma composição onde domina a linha horizontal do telhado baixo até significativamente elevar-se em duas águas muito inclinadas, que convergem para cima para encontrarem-se em cunha na altura da plataforma de pregação. Com esta opção de cobertura, Wright define pela volumetria não só a função, mas a hierarquia dos espaços, legando ao templo uma imagem arquitetonicamente poderosa ao mesmo tempo que simbolicamente pertinente: “Esta é uma construção em atitude de oração” (12), salientaria Wright. Mais que isso, internamente a beleza espacial proporcionada pelo teto liso inclinado em oposição ao plano vertical rusticado das paredes de pedra formam um ambiente propício para o homem recolher-se e efetivamente encontrar-se em oração, para o que a luz que entra exuberante pela grande janela ao fundo do púlpito – através da qual se pode vislumbrar a paisagem – imensamente colabora. O caráter dinâmico do telhado lega extraordinária unidade à obra sutilmente integrada com a paisagem, fato em acordo com aqueles ideais orgânicos de Wright, que privilegiam homem e natureza na trindade moderna que se completa com a máquina.
Novamente, portanto, Wright enfatiza o homem através de uma sacralidade independente de entes superiores, a não ser o pai maior e, talvez, a natureza por ele criada, descartando misticismos tradicionalmente cristãos não só devido à filosofia unitária, mas talvez também por pessoalmente acreditar que “o destino humano já está bastante denso de mistérios para que se tenha que recorrer à persuasão oculta das atmosferas místicas, das cavidades incomensuráveis, das luzes antigas” (13).
O que de simbólico há no excêntrico...
Com efeito, não há dúvidas que a arquitetura wrightiana substancialmente mudava ao longo de cada um de seus anos de atividade, algo muito próprio para um gênio inquieto, de múltiplos interesses e talento abismal. Nos anos 50, década derradeira de sua vida – faleceria em abril de 1959, aos 90 anos bem vividos – sua arquitetura reconhece-se pela tônica expressionista e ares de ficção científica que assumia, como atestam não só as próprias formas vigorosas e estranhas, quanto os discos voadores e automóveis malucos que gostava de inserir em suas perspectivas desde pelo menos aquelas feitas para o projeto Broadacre City, do início dos anos 30 (14). De qualquer maneira, legou ainda nestes últimos anos alguns cometimentos da maior relevância para a discussão da função e da imagem do templo cristão no século XX. Excluído o brilhantismo da Sinagoga Beth Sholom, templo judeu construído em 1959 em Elkins Park, na Pensilvânia, sua última realização – da qual se deve dizer apenas, para não alongar demais o argumento para um templo não cristão, que se constitui num verdadeiro Sinai Transparente, uma Montanha de Luz tal qual aquelas pensadas pelos expressionistas alemães nas primeiras década do século XX – o legado final de Wright também incluiu pelo menos outros quatro templos importantes: à Igreja Cristã da Ciência, pensada para Bolinas, na Califórnia, mas que permaneceu em projeto, e à Igreja Grega Ortodoxa da Anunciação para Wauwatosa, Wisconsin, ambas de 1956, agregam-se a Capela Matrimonial projetada em 1957 para o Hotel Claremont, em Berkeley, Califórnia, e a Capela da Trindade para Norman, Oklahoma, seu último projeto, inacabado, de 1959.
Na concepção da Igreja da Ciência reconhece-se certo parentesco com o segundo modelo projetual do alemão Rudolf Schwarz (15); curiosamente, a planta quadrada inserida dentro de um círculo perfeito, com a congregação organizada radialmente ao altar, é um esquema de “…estranha sobriedade formal (…)” (16) se comparado com os projetos de Wright desta época. A excentricidade final ele retoma na Igrega Grega Ortodoxa, um templo onde para além de seu exotismo formal o arquiteto parece ter se sentido constrangido a partir de algumas permanências simbólicas cristãs para sua concepção. Como estivesse despreparado para enfrentar convenientemente ao programa por não ser católico, foi sua última esposa, desde menina pertencente à crença ortodoxa, que lhe acorreu das chaves funcionais e simbólicas tradicionais. Assim, a forte imagem terrena da cruz e a celestialidade da cúpula superpostas mimeticamente à ordem sob a qual vive o homem – na terra, sob o céu – foram os subterfúgios simbólicos para estabelecer os critérios formais. Braços perpendiculares eqüidistantes formam o esquema em cruz grega com galerias internas, estando a grande cúpula acima de tudo isso – um plano simples, portanto, para acomodar com rigor a separação rígida entre fiéis e tabernáculo requerida na hierarquia ortodoxa, e uma volumetria poderosa. Mas como em tudo sempre há a imunidade wrightiana aos padrões do mundo, sua “interpretação romântica de um culto bizantino” 17) cria um extravagante “UFO” (18) que remete à grandiosidade de Hagia Sophia sem citá-la literalmente. Tal coisa teria sido um grande trunfo, se Wright não pecasse por um interior confuso enfocando um altar recheado de imagens, ouro e luminárias que está mais para Las Vegas do que para Istambul, ou tivesse achado a justa medida no tratamento exterior um tanto kitsch, “a meio caminho entre o oriental e o sideral” (19).
A mesma intensidade decorativa é utilizada como leitmotiv na Capela Matrimonial do Hotel Claremont, enquanto aquele vigor michelangelesco que vinha imprimindo nos melhores exemplos dos útimos anos aparece soberano na Capela da Trindade, um templo de plano triangular piramidalmente elevado frente ao território que demarca; o que ressalta dos esboços deixados por Wright é o contraste da base sólida, onde as passarelas que o envolvem como braços prendem o templo ao solo, com a leveza proporcionada pelas grandes aberturas losangulares no centro da volumetria piramidal, que assume ares de um foguete prestes a ser lançado no espaço: um perfil agudo, enfatizado pelo fino pináculo, superando qualquer imagem expressionista; visão quase absurda porque muito a frente de seu tempo.
A filosofia do edifício
Com efeito, se por esta visão panorâmica percebemos a diversidade entre os templos construídos por Wright é porque até dentro de um mesmo período de sua trajetória mutante identificamos interesses formais distintos. A tensão criada entre uma consciência de que a realidade deve ser modificada a partir dela mesma e os quase incontroláveis ‘delírios’ de uma das mentes mais geniais do século XX explora cânones figurativos derivados ora de uma liberação desenfreada dos intintos, ora dos aspectos exteriores da realidade, criando obras que, como a vida, são instâncias íntimas ao mesmo tempo que sociais, cometimentos plástico-dinâmicos por vezes irregulares como qualquer ‘organismo’.
No entanto, um olhar atento comprova que isto não significa que não tenha havido um forte ideal sagrado por trás de suas extravagâncias, mas que a aparente incoerência evidenciada é apenas aquela “filosofia do edifício que precede qualquer outra consideração” requerendo auras específicas em cada ocasião.
notas
1
Inscrição vista no acesso ao Templo Unitário de Oak Park, Illinois, 1906. O presente texto é excerto da minha dissertação de mestrado provisoriamente intitulada “O Templo Cristão na Modernidade: permanências simbólicas e conquistas figurativas”.
2
São de todos conhecidas suas curiosas manias, seus ataques coléricos, suas aventuras amorosas, seus desatres materiais, suas perdas humanas e a insistência em andar sempre em carros conversíveis.
3
BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 610.
4
Wright apud ZEVI, Bruno. Frank Lloyd Wright. Barcelona: Gustavo Gili, 1998, p. 72.
5
Idem.
6
Cf. Edwin Heathcote in: HEATHCOTE, E. & SPENS, I. Church Builders. London: Academy Editions, 1997, p. 52.
7
Dada no Art Institute of Chicago, cit. em HEATHCOTE, E. & SPENS, I. Op. cit., p. 52. A tradução do inglês é de minha responsabilidade.
8
RAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 66.
9
Wright apud HEATHCOTE, E. & SPENS, I. Op. cit., p. 52.
10
FRAMPTON, op. cit., p. 66.
11
Wright apud ZEVI, op. cit., p. 220.
12
Idem.
13
ZEVI, op. cit., p. 223.
14
Neste sentido, escreve FRAMPTON (op. cit., p. 229): “A partir de então, além de suas casas usonianas extraordinariamente práticas, Wright continuou desenvolvendo um tipo curioso de arquitetura de ficção científica que, a julgar pelo estilo exótico de suas últimas criações, parecia destinado a servir de moradia para alguma espécie extraterrestre".
15
Conforme aponta GIL, Paloma. El Templo del Siglo XX. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1999, p. 88. Sobre os Modelos Projetuais de Rudolf Schwarz consultar seu livro intitulado ‘Vom Bau der Kirche’, de 1938. Há edição em inglês, com o nome de ‘The Church Incarnate’.
16
Idem.
17
Bruce Brooks Pffeiffer apud GIL, op. cit., p. 90.
18
Cf. HEATHCOTE, E. & SPENS, I. Op. cit., p. 54.
19
GIL, op. cit., p. 90.
sobre o autor
Fábio Müller é arquiteto e urbanista, mestrando no PROPAR/UFRGS e professor das áreas de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo na Universidade Federal de Santa Maria e Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões/Campus Santiago