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KIEFER, Flávio. Plano Diretor e Identidade Cultural em Porto Alegre (editorial). Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 037.00, Vitruvius, jun. 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.037/674>.

Na maioria das cidades brasileiras há um certo conformismo associado à idéia de que o futuro trará cidades piores do que as que temos no presente e que tivemos no passado. Porto Alegre, depois de muito tempo ter sido uma exceção neste panorama, parecia que, com a aprovação do seu novo plano diretor, tinha se enquadrado nos moldes brasileiros de encarar o planejamento urbano. É que o último plano conseguiu violentar os padrões urbanísticos que vigoravam em Porto Alegre e que ajudaram a construir a sua tão propalada qualidade de vida sem que houvesse uma reação muito forte, ou pelo menos esta reação não encontrou espaço para prosperar.

Na verdade, descobre-se agora, a população não tinha conseguido entender, ou não ficou sabendo, que por trás daquela salada de índices estava prevista uma liberação dos grandes edifícios, abolidos há um bom tempo da paisagem da cidade. A confiança naqueles que asseguravam que o novo plano só vinha para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos foi quebrada. Hoje, em Porto Alegre, os bairros tradicionais estão em pé de guerra com as autoridades municipais e se organizam em movimentos sociais como há muito não se via.

Diante de tudo isso, solicitado a comparecer a um seminário na Câmara de Vereadores, apresentei os seguintes pontos com o intuito de ajudar a organizar as idéias em torno da identidade cultural de Porto Alegre, sobre aquilo que a torna peculiar, e contribuir para uma reformulação urgente deste plano diretor:

1°– Porto Alegre tem um incremento populacional muito pequeno. A população da cidade em 1980 era de 1.126.000 habitantes e em 2000 1.360.000 habitantes. Este crescimento de menos de 12.000 pessoas por ano não justifica o discurso de adensamento existente no atual plano diretor. Na verdade, vivemos uma ótima oportunidade para a cidade se preocupar com o crescimento qualitativo do espaço urbano em geral e público em particular. Porto Alegre não precisa de um plano diretor para redesenha-la para uma nova população do futuro, precisamos de um plano diretor que qualifique o presente.

2° – A única densidade populacional que existe é aquela da cidade real, medida pelo IBGE; O PDDUA fala muito em densificação, mas, nos termos em que está proposta, ela não tem como se realizar. Não há e nem haverá população suficiente para ocupar a Porto Alegre imaginada pelos nossos planos. O erro quanto a este aspecto só tem aumentado: o plano de 79 previa quatro milhões de habitantes, a reforma de 88 aumentou esse número para 6 milhões e para o último fala-se em pelo menos oito milhões de habitantes!

3° - Existe uma migração interna em Porto Alegre, as densidades variam tanto positiva quanto negativamente nos diversos bairros da cidade, de forma completamente autônoma em relação aos planos diretores:

a- as classes mais ricas, por exemplo, se deslocam há mais de 70 anos na direção leste, percorrendo o espigão central formado pela Duque de Caxias, Independência, Moinhos de Vento, Bela Vista. No seu percurso vão cedendo imóveis aos menos favorecidos ou simplesmente os abandonam vazios;

b – os prestadores de serviço mantêm a mesma lógica ao perseguir sua clientela neste passeio pela cidade. Os imóveis comerciais sobem de preço durante um período para em seguida começar uma trajetória de desvalorização, perdendo na disputa para os novos pontos comerciais. Os casos mais notórios são o Centro, Azenha e o Bom Fim;

c – também as indústrias e serviços correlatos abandonam bairros inteiros em busca de novas áreas, normalmente em busca de incentivos fiscais.

4° – Não é psicologicamente saudável, nem economicamente racional, um bairro ser construído por inteiro e em poucas décadas ser abandonado ou totalmente reconstruído. Isto é um erro político, social e econômico muito grande. É um atentado a sustentabilidade do planeta. O caso do bairro Bela Vista, para citar um exemplo, é digno de constar no livro dos recordes dos horrores. Casas luxuosas foram demolidas com menos de 20, 10 anos de uso!, em função da mudança dos planos diretores.

5° – Espaço público tem a mesma importância social e deve ser tratado como é tratada a saúde pública. Não pode haver interesses privados que se sobreponham aos interesses do público. Um plano diretor serve para regrar as relações das áreas privadas entre si e com o espaço público. A atividade econômica da construção civil não deve manifestar seus interesses no plano diretor assim como a indústria farmacêutica não pode ter ingerência sobre as políticas de saúde pública ou a indústria automobilística no plano nacional de transportes.

6° – A primeira metade do século vinte criou, por necessidade de superação de uma página negra da história da humanidade, a cultura do novo: “um novo homem para um novo mundo”, era um dos brados mais ouvidos nessa época.

No urbanismo, isto se traduziu pela formação de um conceito de substituição da cidade existente por uma nova cidade. Essa cidade ideal teria o solo coletivizado e grandes edifícios soltos em um imenso jardim público de uso comum. Essa ideologia urbanística, adaptada de forma grosseira à realidade, atravessou o século e perpassa todos os planos diretores realizados até hoje. A SMOV, por exemplo, exibia com muito orgulho, nos anos setenta, uma maquete em que mostrava uma grande plataforma e torres de edifícios substituindo o velho mercado público, o velho abrigo e o velho Chalet da Praça XV. Uma antiga estação de trens e o Mercado Livre chegaram a ser demolidos. Tudo o que era antigo era tido como velho e feio...

Esta cultura tem fortes remanescentes entre nós, por mais que não seja, hoje, politicamente correto assumi-la.

7° – A partir dos anos 80 começa uma reação muito forte a este espírito renovador do urbanismo moderno. Inicialmente centrado na preservação de prédios isolados ou do verde da cidade. Graças a ela, e alguns obstinados, que o Mercado Público, o Gasômetro, O Teatro São Pedro e tantos outros monumentos escaparam da demolição sumária. Esta corrente de pensamento defende a vitalidade da cidade histórica e dos valores a ela associados. Por um lado, essas novas idéias estão conquistando uma aparente hegemonia, mas na verdade, a inércia das verdades anteriores ainda é muito presente. Basta ver que os argumentos para a destruição da av. Carlos Gomes foram exatamente os mesmos utilizados para a abertura da primeira perimetral nos anos 70. A contradição é que, em plena ditadura, os porto-alegrenses conseguiram desviar um viaduto para salvar uma árvore e conseguiram preservar a UFRGS da demolição. Hoje, estamos atônitos com o resultado da terceira perimetral.

8° – Na prática, o embate destas duas visões ainda é muito forte e muitas vezes maldosamente simplificado como uma luta entre o progresso e a estagnação. Há, pelo mundo, inúmeros exemplos positivos de progresso associado ao resgate da cidade historicamente permanente. Recentemente, Berlim, após a queda do muro, optou, no projeto de re-urbanização das áreas destruídas pela guerra, recuperar o traçado viário e gabarito anterior à Segunda Guerra Mundial. Mesmo com essa decisão, que muitos diriam conservadora, Berlim se transformou no maior canteiro de obras do planeta, uma festa para os arquitetos e construtores, mesmo com a altura máxima de 20m, salvo as exceções muito bem estudadas.

9° – O porto-alegrense tem um gosto todo especial pela sua cidade. Aqui há quase uma obsessão pelo por do sol, a vista para o Guaíba é símbolo de diferenciação social e o verde na cidade é uma questão de vida ou morte. O porto-alegrense, de maneira geral, se atrai mais pelo padrão urbanístico europeu, valorizando a vida nas praças e calçadas, do que o padrão americano, que valoriza o subúrbio e a urbanização rarefeita. Há em Porto Alegre uma tradição de luta pela preservação da qualidade de vida, pela ecologia, pela busca de formas alternativas de enxergar o progresso.

Por tudo isso Porto Alegre se construiu de forma singular no panorama das cidades brasileiras. Descobrir e reforçar essa identidade da cidade seria a maneira correta de encaminhar seu desenvolvimento presente e futuro.

10° – O Plano Diretor em vigência, é verdade, tem um discurso ambientalista, mas o problema é que ele contém mecanismos que são contrários às suas intenções. Graças ao aumento do índice de aproveitamento e altura, ele é totalmente incentivador à substituição dos imóveis existentes por outros maiores, estimulando o remembramento de lotes, o que apaga registros importantes da nossa história. E, na verdade, nunca vai ter sucesso na sua proposta de construir uma nova cidade pois não existe demanda populacional para isso. Ele vai deixar suas marcas de destruição da paisagem espalhadas pelos mais diversos bairros, como aquele inexplicável edifício da av. Jacuí, no morro de Santa Teresa.

A questão da identidade cultural da cidade tem que ser entendida como continuidade de valores, de princípios, de conceitos. A cidade deve ser viva e se transformar mantendo o que lhe torna única: a sua identidade. Porto Alegre não tem sido cuidadosa neste aspecto e, hoje, corremos o risco de perpetuar uma identidade caótica. Nos restará o consolo de colecionar pontualmente relicários? Lembretes de um outro tempo?

Espero que não! Precisamos recuperar e reforçar aquilo que nos é peculiar. É preciso evitar as rupturas constantes no modo de projetar a cidade. Cinqüenta anos na vida de uma cidade não é nada, mas quantos primeiros e definitivos planos nós já tivemos neste pequeno período?

O último primeiro plano é o mais nefasto, porque é o mais radical e não se pauta na leitura da cidade real. Ele é homogenizador e idealista. Ele é tão radicalmente transformador que se preocupou em criar mecanismos de salvaguardas para algumas áreas e lugares de interesse cultural, mas nem aí foi feliz, porque, mais uma vez jogou a regulamentação destas áreas para depois... depois de ter sido dada a oportunidade de serem corrompidas.

notas

[* Pronuciamento feito no dia 3 de junho de 2003, em seminário sobre Identidade Cultural na Câmara de Vereadores de Porto Alegre].

sobre o autor

Flávio Kiefer é arquiteto e professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Ritter dos Reis em Porto Alegre RS.

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