Curitiba, pelas mãos de Jaime Lerner, conhece, já faz tempo, a força transformadora da arquitetura. Ela é capaz de ajudar a organizar, regenerar, induzir, modificar o meio urbano. Já Bilbao apostou em sua capacidade de forjar uma nova imagem para uma cidade que, embora industrial, se pretendia capital cultural para entrar revigorada no novo milênio. E deu certo, Bilbao ficou conhecida internacionalmente por causa da arquitetura do museu. Os dois casos que aqui tomamos como exemplos, mas que não são únicos, traduzem uma mudança de paradigma de intervenção nas cidades. Os grandes planos urbanísticos, a visão macro da cidade, os famosos planos diretores basicamente normativos foram substituídos pelos planos estratégicos que pensam a cidade como um todo, entretanto dependem de uma visão de menor escala, muito efetiva na transformação local. Essa mudança de atitude corresponde, talvez, a uma mudança de concepção. A cidade moderna resultante de uma visão global encontrava no objeto único seu companheiro mais apropriado enquanto que aqueles que querem levar em conta o contexto e o lugar precisam, necessariamente, do desenho arquitetônico e urbano.
De fato a arquitetura tem poderes em mais de um sentido, embora se deva ressalvar que como a andorinha, não faz verão nem cidade sozinha. Tanto pode colaborar na alteração de um lugar, na organização do tecido urbano, quanto contribuir para dota-lo de significado. É fato concreto e signo ao mesmo tempo. Curioso é que se discuta a arquitetura como se realmente houvesse uma contraposição. Ou bem ela dá ouvidos e gera ou se insere em um contexto, ou bem ela se apresenta como objeto único e se afirma como ícone independente. Ou predomina a forma, ou o conteúdo. Contradições paradoxais que só podem existir em discussões teóricas. A arquitetura construída realiza seus dois potenciais, não separa forma de conteúdo, ao mesmo tempo é e significa. Por isso pode servir à cidade nos dois sentidos. Mais, as duas vias de concepção da arquitetura não são necessariamente excludentes, há situações em que faz sentido o objeto único, em outras o contexto deve predominar. Em outros momentos, ainda, todas essas características devem e podem ser postas em equilíbrio.
Richardson, Texas, tem um problema. É uma das tais edge cities americanas. Próxima de Dallas cresceu e adquiriu sentido a partir de um corredor de empresas Telecom ao longo de uma highway. Parece a encarnação do estereótipo que fazemos das cidades americanas. Um tecido pouco denso pontuado por um distrito comercial aqui conectado a outro distrito de serviços lá que se une a um clube de golfe mais ao longe que por fim se liga a um núcleo residencial, também ele disperso. Mas Richardson tem uma população diferenciada. É multicultural e multirracial, bem educada e com um poder aquisitivo superior ao de Dallas. São pessoas que estão em busca de uma vida cultural, do contato e das trocas feitas no corpo a corpo e não mediadas pelo automóvel ou via cyber space. Sofre, portanto, da falta de um centro urbano. Necessitava espaço público onde as pessoas pudessem simplesmente andar do restaurante ao teatro e depois a um café para arrematar a noite. Precisava desse espaço urbano que favorece as trocas não programadas, sua população carecia de um lugar para ir.
Richardson, Texas, tem outro problema. Já não queria mais ser um subúrbio, subproduto do corredor Telecom. Queria ter vida própria e a imagem de si não mais apoiada em empresas high-tech, mas na vida cultural da cidade. Não podia se contentar, por exemplo, em ter uma orquestra sinfônica que utilizava como sede o teatro de uma escola secundária. Ao mesmo tempo não queria a imagem nostálgica, pseudo-histórica comum nos Estados Unidos – uma imagem histórica de um lugar que na verdade nunca existiu, especialmente em se tratando de Richardson. Deveria afirmar-se como convém à modernidade da alta tecnologia, afinal ela é a sede da Texas Instruments, lá foi inventado o micro-processador, base da revolução informática.
Eurico Francisco desenhou o gérmen da solução. Arquiteto brasileiro vice-presidente associado do escritório americano RTKL, Eurico aproveitou-se da dualidade da arquitetura, a um só tempo significado e significante, e de seu poder indutor ao projetar o Eisemann Center – um teatro para as diversas manifestações musicais e teatrais, seja a orquestra sinfônica, seja a música de câmara, a dança ou peças dramáticas. O prédio foi colocado próximo a uma estação do DART (metrô de superfície), e forma um conjunto com um hotel e o complexo de escritórios da Nortel, uma das empresas de telecomunicação presentes no corredor Telecom, para dar lugar a uma praça que assim se transforma no centro focal do empreendimento chamado Galatyn Park, que futuramente receberá prédios de apartamentos, serviços e lojas. A praça não surgiu ao acaso, é fruto da implantação cuidadosa do prédio que, sensível ao contexto, completa seu desenho colocando limites e definindo percursos. Aliás, a implantação aqui deve ser entendida em sua versão tridimensional. Não se trata apenas de um terreno que foi alterado, mas do uso organizador da porosidade da pele do teatro que ora reforça, ora sustem a continuidade de espaços, e das relações de desenho que se criam entre espaços interiores e exteriores - praça e teatro se desenham mutuamente.
Assim, as fachadas do prédio não têm tratamento homogêneo. Ao contrário, três de suas fachadas estão expostas e cada uma responde a diferentes situações tanto em sua relação espacial quanto funcional. Um canto do prédio projeta-se em ângulo oblíquo rompendo a ortogonalidade do desenho e estabelecendo uma relação mais estreita com a praça. Esse é o trecho mais poroso da pele que traz o exterior para dentro do prédio ao mesmo tempo em que abre vistas para o horizonte ao longe. Os pilares redondos finos e longilíneos alcançam o plano da cobertura, deixando os caixilhos seguirem ininterruptos o seu caminho de alto a baixo contornando a esquina. Do lado oposto da praça sua pele se apresenta densa formando os acessos de serviços e pessoal. A opacidade é rompida apenas na altura do mezanino onde estão colocados os escritórios.
Dentro o átrio de grande altura, branco inundado de luz natural que se distribui homogênea, promove a ligação entre os espaços de espetáculo que de qualquer forma podem funcionar independentemente. O encaminhamento de planta é surpreendentemente simples quando poderia perder-se na complexidade das funções. A escadaria tradicional dos teatros ganhou uma versão moderna que se estende de comprido ao longo da fachada e interliga todos os andares, desde os balcões até o térreo, promovendo acessos diretos, evitando percursos labirínticos.
O grande teatro de 1.550 lugares tem a forma de leque e possui o palco dimensionado para todas as situações. Adapta-se tanto a uma ópera quanto a um musical ou uma peça dramática ou à dança. O palco contém uma orchestra shell que altera seu volume para música sinfônica ou de câmara. As paredes são revestidas em madeira esculpida de acordo com as exigências da acústica conformando um espaço elegante e contido. A sala de espetáculos de 350 lugares é flexível o bastante para acomodar diversas produções. Tem as passarelas expostas e nuvens acústicas flutuantes criando um espaço mais informal. Por fim uma pequena sala para 240 lugares oferece espaço para apresentações menores. A configuração em leque forma uma cunha entre as salas onde se alojam escritórios, sanitários e camarins. Essa simples disposição de planta evita a mistura de sons quando ambas estão em funcionamento.
O desenho moderno, sóbrio, mas que não deixa de ser arrojado, especialmente se considerarmos o gosto americano pelas citações históricas ou pop, responde às expectativas de se criar um edifício representativo de uma vida cultural senão efervescente, pelo menos efetiva. Ao descrever o prédio o crítico americano David Dillon diz que considerados individualmente os refinamentos da arquitetura do prédio podem parecer gratuitos, “mas vistos coletivamente eles estabelecem a diferença entre um edifício estático e um dinâmico. Eles nos forçam a olhar as coisas uma segunda vez, a inquirir e explorar, o que é exatamente aquilo que a boa arquitetura deve fazer” (1). Por isso o projeto recebeu o principal prêmio do AIA Texas Honor Award de 2003 e com isso está mais apto a implementar a visibilidade da cidade de Richardson que ao invés de subúrbio de serviços pode se mostrar como foco cultural.
Por fim devemos precisar melhor o que até agora chamamos de centro urbano, à falta de melhor palavra. Não estamos falando no centro tradicional, coração das cidades européias. Também não falamos na praça italiana clássica. É preciso ter em mente que os subúrbios texanos são feitos de núcleos monofuncionais afastados, entre os quais as pessoas se deslocam unicamente de carro, não há sequer a oportunidade para se andar a pé. Diante de um espaço tão anônimo e anódino, a reunião de um teatro com uma praça, um lugar onde as pessoas têm a chance de andar a pé, esse pequeno coração, ponto de encontro que seja pode ser chamado de ‘centro urbano’. E pode assim ser denominado porque urbanamente potencializa a infraestrutura, transforma aquilo que seria uma mera estação de DART, um local de passagem por definição, em um nó central. O teatro assume o papel que igrejas faziam nas praças tradicionais, acrescenta-lhe alma e sentido, especialmente hoje que os lugares públicos vêm se deslocando para dentro dos prédios. E finalmente quando se fala em Richardson já se pode evocar sua orquestra sinfônica ao invés de um aglomerado de corporações.
Ficha técnica
Obra: Eisemann Center
Local: Richardson, Texas
Área total: 10.800,00 m2
Proprietário: Prefeitura de Richardson
Empresa de arquitetura: RTKL Associates
Contato do projeto: Lance K. Josal, AIA
Arquiteto: Eurico R. Francisco, Associate AIA
Coordenador de projetos: Rebecca Cartier, AIA
Arquiteto colaborador: Michael Platt
Construtora: Hunt Constrution Group
Estrutura: Datum Engeneering
Acústica: Pelton Marsh Kinsella
Hidráulica: HML Design
Consultoria de iluminação: Bliss Fasman
Consultoria de legislação: Code Consultants Ltd.
nota
1
David Dillon, Ready for anything, in ArtsSunday, The Dallas Morning News, 22 de Setembro de 2002.
sobre o autor
Lêda Brandão de Oliveira é arquiteta titular do escritório Oficina de Arquitetura.