O caótico cotidiano da região metropolitana de São Paulo, onde 17 milhões de pessoas convivem com a criminalidade, poluição e congestionamento, tem provocado, já há alguns anos, a migração de parte de seus habitantes para áreas periféricas em busca de uma melhor qualidade de vida. Em quase sua totalidade esses novos bairros são condomínios fechados cujos moradores têm em comum a ascensão econômica recente que lhes permite pagar pelo direito de habitar ilhas protegidas por sistemas rígidos de segurança, onde os desajustes da sociedade são dissimulados em meio a uma paisagem bucólica.
São condomínios onde as famílias vão construir seu paraíso particular, invariavelmente uma casa onde imperam os elementos arquitetônicos que denotam o status social alcançado – telhados com muitas águas, varandas com redes e vasos floridos, janelas de variados estilos, tijolos e madeira posando de material rústico, etc. No condomínio Morada dos Pássaros, em Aldeia da Serra, bairro dividido entre os municípios de Santana de Parnaíba e Barueri, a paisagem construída é exatamente assim. Nesse lócus cheio de árvores homogêneas típicas de reflorestamento, a casa Mariante, um caixote de concreto e vidro, partido projetual tão ao gosto dos arquitetos modernos de São Paulo, é uma aparição estranha e incômoda.
O tema reincidente das projeções em planta da casa é o quadrado. O terreno, com 20 m de frente por 40 m de fundo, é como dois quadrados contíguos. As duas lajes nervuradas sobrepostas têm 16,20 m de cada lado e é subdividida em 18 séries de 18 alvéolos em linha, medindo 90 X 90 cm cada um. As quatro vigorosas colunas, de secção quadrada de 45 cm de lado, estão eqüidistantes uma da outra 9,90 m na ortogonal. Na cobertura, o espelho d’água que impermeabiliza a laje é em parte recoberto por pisos quadrados de concreto.
A repetição geométrica, com risco de se tornar obsessiva, é sutilmente contrariada por uma série de decisões projetuais dissonantes, que regulam os usos e as visuais. O retângulo do solarium formado pelos pisos quadrados é menor do que o seu negativo, o espelho d’água, no qual emerge a escada como uma fenda. As duas escadas sobrepostas, que se alojam no vão equivalente a dois alvéolos de largura por dez de comprimento, ocupam uma posição levemente deslocada do centro da casa. Essa assimetria acaba reverberando nos espaços internos, permitindo o surgimento de áreas distintas para acomodar os usos necessários – quartos, banheiros, salas e cozinha.
Nas elevações, espelhadas nos quadrantes opostos, mais subversões são visíveis. Na fachada principal, onde prevalece a grande vidraça corrida igual à face antípoda, surge um talude gramado truncado pela entrada no canto esquerdo, desequilíbrio compensado na parte superior, onde a caixa d’água é sustentada pela coluna frontal direita. Na face voltada para o quintal, duas pontes em cotas e posições diferentes conectam em nível a casa com o terreno em aclive. As faces laterais, correspondentes aos quartos e à grande sala, são mais homogêneas, mas o efeito de suspensão da primeira é contestado pelo peso conferido à segunda pelos volumes da lareira e das instalações de serviço no piso térreo. Assim, enquanto a abstração geométrica regula a concepção estrutural, as calibradas distorções da dupla simetria dão a medida dos hábitos e da vivência.
Tão diferenciada como a casa são seus moradores, um jovem casal que se orgulha da morada sóbria que construíram. Enfrentaram com destemor os erros construtivos, que implicou na dispensa do primeiro time de pedreiros e mudanças projetuais que dissimulam a laje inferior fora do prumo. Sorriem satisfeitos e tranqüilos, afinal ousaram agregar ao sonho escapista que os une um compromisso cultural que, involuntariamente, converte-se em denúncia candente da incultura reinante. Permanecem alienados da curiosidade e de uma certa raiva contida que provocam. No quintal, a filha de sete anos brinca com uma amiga que veio de longe. Enquanto isso, os lotes lindeiros e frontal se desvalorizam com a presença daquela casa esquisita, cujas formas, texturas e transparências extravagantes estão em permanente conflito com as edificações da vizinhança (1).
ficha técnica
obra
Casa em Aldeia da Serra, São Paulo SP Brasil
projeto
2001
obra
2002
proprietários
José Henrique Mariante e Beatriz de Arruda Mariante (casal). Isa (filha, 7 anos)
área construída
300 m2 (250 m2 no pavimento superior + 50 m2 de serviços no pavimento inferior)
arquitetura
MMBB Arquitetos / Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton BragaColaboradoresAnna Helena Vilella, Eduardo Ferroni, Maria Júlia Herklotz e André Drummond
estrutura
Ibsen Pulleo Uvo
construção
Paulo Balugoli e Nelson Cabeli
fotos
Nelson Kon
notas
NE
Artigo originalmente publicado com o título "Betão e vidro. Casa em São Paulo" na revista Linha, encarte do Jornal Expresso, Lisboa, 29 de novembro de 2003, p. 60-65.
1
Ver sobre o mesmo assunto: NOBRE, Ana Luiza Nobre. MMBB, Arquitetura.Crítica, n. 010, fev. 2003 <http://www.vitruvius.com.br/ac/ac010/ac010.asp>. Além do excelente artigo, poderão ser vistas diversas outras fotos e as plantas do projeto.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de arquitetura da PUC-Campinas e da Belas Artes, ex-editor da Óculum, atual editor de www.vitruvius.com.br, co-autor de "Rino Levi – arquitetura e cidade" e organizador de "Metrópole", catálogo do Fórum de Debates da 5ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.