A Cidade Dual é um conceito desenvolvido por Manuel Castells (1) e tratado também por Saskia Sassen (2), que se refere à manifestação contemporânea de uma estrutura urbana, social e economicamente polarizada. No Sul pós-colonial, este fenômeno acentua-se como conseqüência da reprodução de modelos de desenvolvimento alheios à realidade econômica, tecnológica e social da maioria dos países. Trata-se de sociedades duais, já que nelas convivem a cultura do consumo e do hedonismo com a cultura da sobrevivência ou das necessidades básicas; o primeiro e o terceiro mundo de um mesmo Estado. O resultado deste fenômeno, em termos urbanísticos, é a megacidade de crescimento disperso e fragmentado que criou arquipélagos monofuncionais e guetos residenciais. Em outras palavras, é uma cidade que gera divisões espaciais, temporais e sociais entre seus habitantes.
Na América Latina, o crescimento das cidades nas duas últimas décadas debateu-se entre o Urbanismo Espontâneo de habitats autoconstruídos nas zonas marginais, interstícios e áreas abandonadas das cidades planejadas; e uma Arquitetura de Mercado, dedicada à busca de nichos de mercado. O resultado deste processo são as cidades duais onde se expressam simultaneamente a exclusão e o desamparo de uns ante os privilégios de outros. Estas cidades são ainda o lugar desde onde são coagidas as liberdades urbanas de todos.
A Arquitetura de Mercado é o resultado do que Michael Foucault entende como “técnicas de controle dos impulsos e canalização dos desejos em direção ao ciclo produção-consumo” (3). A tabulação e organização desse desejo é feita por corretores de imóveis que se servem de aparelhos midiáticos para moldar as imagens e desejos da cultura de massas no que diz respeito à arquitetura. Nesse sentido, a habitação é o produto por excelência, porém, este fenômeno afeta também o espaço urbano sujeito a novos rituais comerciais e lúdicos.
O Urbanismo Espontâneo é o processo de apropriação do território pelas maiorias urbanas marginalizadas do Estado de direito, da cultura cívica e, portanto, alheios à cidade legal ou formal. Por sua magnitude, este fenômeno passou a ser a norma, em vez da exceção, no crescimento das cidades do chamado “Terceiro Mundo”.
Ante tais fenômenos, a cidade traça limites labirínticos, evoluindo rumo a sociedades do apartheid. A segregação de espaços dentro da cidade estabelece Circuitos de Deslocamento para cada indivíduo que dependem de suas atividades ou de sua classe social de origem. Constrói-se assim um mapa cognitivo através do qual orientamos nossas vidas dentro destas cidades. A infra-estrutura transforma-se em um instrumento de controle que se estende, marginalizando aqueles setores da população considerados desnecessários ou socialmente perturbadores. Entretanto, os destinos dos privilegiados e excluídos estão intimamente relacionados por serem interdependentes.
A explosão demográfica da América Latina foi provocada por fatores subjetivos, relacionados com a economia, a cultura e o poder, que são a raiz do problema. O futuro do “Terceiro Mundo” depende de sua capacidade para formular seus próprios processos de subjetivação no contexto de uma decomposição progressiva da malha social. A alternativa depende, necessariamente, da sustentabilidade numa era na qual o crescimento econômico, como explica Herman E. Daly (4), gerou custos ambientais que superam os benefícios obtidos através do aumento da produção. No Sul, deve-se interpretar a sustentabilidade como uma síntese entre a tradição perdida e a modernidade inconclusa. No Sul, o desenvolvimento não pode ser concebido como um progresso material alcançável para todos, senão como um processo de transformação social. Isto implica uma mudança nos valores éticos. Tay Kheng Soon (5) aduz que isto só será possível quando for atingido um ponto de saturação material generalizado. Não obstante, na América Latina, o nível de ansiedade provocada pela violência social das cidades deu lugar a formas de extorsão (como os seqüestros express) que, provavelmente, incentivarão e propiciarão essa mudança de valores. A espiral de violência só pode ser detida dentro de um meio social e ambiental mais justo. A consciência da vulnerabilidade refletida nas grades, arame farpado e seguranças que protegem as casas dos ricos e não tão ricos, é um sintoma da insustentabilidade da situação atual.
As diferenças que coexistem na Cidade Dual só podem ser mitigadas através do contato e do relacionamento entre os diversos grupos sociais que a habitam. O desafio é, portanto, criar espaços que valorizem as sinergias e a vitalidade possibilitadas pela heterogeneidade. A sinergia produzida pela mistura de atividades é o que permite aos indivíduos desenvolver um senso de comunidade.
A Tática consiste, como nos lembra Frederic Jameson, “em pôr em prática uma maneira de pensar capaz de reconhecer as características notoriamente denegridoras do capitalismo e, simultaneamente, a sua excepcional capacidade emancipadora” (6). Operar a partir das tendências anticoesivas atuais implica usar táticas mais próprias do judô, o qual aproveita a força e o impulso do adversário para vencê-lo. Não se trata de rejeição nem de aceitação obediente, mas sim de elasticidade (folding). É necessário transigir nos pontos razoáveis e insistir naqueles que são realmente essenciais, após uma análise minuciosa dos fatos; tratar os condicionantes como oportunidades, procurar as fendas existentes para que, através da criatividade (inteligência aplicada ao produto), consigamos inovar.
A Estratégia consiste em propiciar a articulação entre as cidades “formal” (legal) e “informal” (ilegal) através de uma topologia diferente que introduza tramas que permitam a permeabilidade entre as partes, reforçando as centralidades latentes e criando novos atrativos capazes de conjugar o público com o privado. O objetivo é criar uma organização acumulativa, multifuncional, através da superposição vertical de usos complementares que substituam a segregação horizontal; propiciar uma densidade moderada que garanta a viabilidade dos locais comerciais e a disponibilidade de transporte público massivo; criar as condições apropriadas para uma vida mais segura, emocionante e cômoda; e incentivar o uso intensivo da infra-estrutura existente, num processo visante a reduzir a entropia e as conseqüências ecológicas.
Em algum ponto entre os territórios assediados do urbanismo e as imensas artérias e territórios não cívicos das conurbações, acham-se espaços adequados para um urbanismo diferente, um urbanismo das possibilidades. Sobre um “espaço lixo” (Junkspace), transbordante de resíduos políticos, funcionais e físicos da cidade, encontramos o conjunto mais estimulante de possibilidades disfarçadas de impossibilidades (7). É um urbanismo capaz de articular em forma amável a objetividade da cidade formalmente planejada com a subjetividade das necessidades e aspirações da sociedade civil; um urbanismo das possibilidades capaz de superar a contradição entre o desejado e o possível.
notas
1
CASTELL, Manuel: La ciudad inaformacional. Madrid, Alianza Editorial, 1995.
2
SASSEN, Saskia: Cities in a world economy. London, Pine Forge Press, 2000.
3
FOUCAULT, Michel. Vigilar y castigar. Madrid, Siglo veintiuno, 1998.
4
DALY, Herman E. Beyond Growth. Massachusetts, Beacon Press, 1996.
5
SOON, Tay Kheng. Architects and and architecture for a new world. En UIA Berlin. Congress 2002, Berlin, Brikhäuser, 2002.
6
JAMESON, Frederic. Apud ÁBALOS; Iñaki; HERREROS, Juan. Áreas de inpunidad. Barcelona, Actar, 1997, p.199.
7
KOOLHAAS, Rem. Junkspace. Harvard Design School Guide to Shopping. Köln, Taschen, 2001.
sobre o autor
Marlo Trejos Hampf é nascido em San José, Costa Rica, em 1971. Arquiteto formado na Universidade Central de Costa Rica. Mestre pela Universidade Politécnica da Catalunha em Barcelona. Trabalhou para diversos escritórios de arquitetura em Costa Rica e Barcelona. Atualmente trabalho em escritório próprio em San José, Costa Rica