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Uma das possíveis introduções à história da arquitetura latino-americana e, sem dúvida alguma, uma das mais extraordinárias, é dada por um ensaio que não é propriamente um livro de história, nem tampouco de arquitetura. É um ensaio que coloca de forma excepcional a peculiar condição social e política do intelectual nas culturas desta região geopolítica. O livro em questão se chama A cidade letrada e seu autor foi um dos mais importantes críticos literários latino-americanos do século 20: Angel Rama (1).
Letrado, no sentido literal da palavra, significa uma pessoa culta, instruída em letras. Mas seria errôneo confundir as condições em torno deste personagem, às vezes literário ou político, originado no universo cultural ibérico, com a tradição humanista que envolve o conceito moderno de homme de lettres. Na língua castelhana e hispano-americana, “letrado” significa, especificamente, advogado, graduado em direito. Significa homem das leis. No contexto latino-americano este letrado é, além disso, uma antiga instituição colonial. É uma instância que resume a identidade de escritura e poder constitutivos do sistema jurídico e teológico da colonização. Hernán Cortés legitimava sua conquista de Tenochtitlan como cristão de linhagem virtuosa e herói virtuoso, mas também como homem de letras. A administração política do Vice-Reinado era, fundamentalmente, tarefa de letrados. E o escritor e o intelectual latino-americano moderno que Rama revisou em seu ensaio de crítica literária é um herdeiro desse legado colonial: alguém que concebe a atividade literária como o poder institucional inextricavelmente ligado à prática tradicional da escritura.
Mas Rama se refere a uma “cidade letrada” e este conceito pode parecer uma alusão à cidade como parnaso literário, como comunidade de homens e mulheres dedicados à literatura. Não é assim. A cidade letrada é antes de tudo a cidade concebida de acordo com o rigor da escritura. A cidade inexoravelmente construída segundo a letra da lei. Cidades planificadas segundo normas, fins e meios escrituralmente configurados pelo poder colonial. Cidades erigidas como artefatos jurídicos, teológicos e arquitetônicos adaptados às necessidades de conversão da massa indígena despossuída e desarraigada, de sua mobilização como força de trabalho escravo e semi-escravo, e de seu controle administrativo e eclesiástico. São as cidades de traçado retangular, com ruas tiradas a cordel, rigidamente estruturadas em torno a uma praça central que organiza e representa arquitetonicamente o sistema jurídico e político da Monarquia e da Igreja. Cidades como México ou Lima coloniais.
Contudo, estas características da cidade colonial barroca revelam assim mesmo um aspecto central das cidades latino-americanas do século 20. Definem axiomaticamente a metrópole pós-colonial, onde prevalece a função mobilizadora da massa industrial e pós-industrial de mercadorias e seres humanos. Evidenciam uma racionalidade espacial subordinada a imperativos administrativos e econômicos globais e locais. Por fim, esta perspectiva histórica da cidade colonial no interior da metrópole moderna permite vislumbrar alguns aspectos precisamente profundos das chamadas utopias urbanísticas e arquitetônicas do século 20 na América Latina.
A expressão mais eloqüente destes projetos urbanos modernos na América Latina é, sem dúvida, Brasília, a capital federal politicamente concebida por Juscelino Kubistchek, e desenhada por Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Não quero dizer com isso que Brasília seja uma cidade única. As cidades novas, de dimensões monumentais ou de características mais reduzidas, se estendem ininterruptamente pela América Latina no mesmo passo da colonização de seus hinterlands e “no-man’s land”. Existe, pelo menos, outro exemplo não menos impressionante de capital política que cumpria os cânones sancionados pelo Movimento Moderno europeu sob as diferentes condições ecológicas e políticas latino-americanas: o projeto de Carlos Raúl Villanueva para a cidade de Caracas. A síntese de racionalismo formal e plasticidade barroca, e de classicismo e funcionalismo que recorre suas arquiteturas e intervenções urbanas constitui um modelo de proporções clássicas. Sem dúvida, a arquitetura de Villanueva tem um profundo vínculo com as culturas locais. Além disso, se insere em uma cidade que já possuía uma história social e arquitetônica própria. Se isso não bastasse, é uma arquitetura e um urbanismo que mostram uma relação reflexiva com a realidade social, histórica e física da cidade de Caracas (2).
Brasília, ao contrário, revela em estado puro a convergência da racionalidade industrial do modernismo europeu do começo do século 20 e as constantes da cultura colonial e pós-colonial latino-americana. Seu projeto político foi uma penúltima gestação heróica do espírito conquistador dos bandeirantes. É uma cidade da civilização industrial violentamente inserida no interior do sertão selvagem. Seu traçado, sua regulação jurídica e urbanística, segue os esquemas elementares da cidade colonial ibérica: uma ordenação geométrica da cidade em meio ao nada, com essa mistura de rigidez militar e racionalidade missionária que já subjugava os arquitetos do barroco. Organizativa e performaticamente Brasília é a cristalização dos ideais secularizados do mercantilismo e do salvacionismo coloniais, mas trasladados num primeiro momento ao moderno discurso secular e positivista do “ordem e progresso” e, a seguir, reformatados sob os conceitos estilísticos do funcionalismo internacional dos anos cinqüenta. É um espaço ideal, um desenho abstrato e complexo, projetado com respeito à racionalidade burocrática de um estado-cidade que, por sua vez, foi concebido politicamente como uma máquina de proporções ciclópicas destinada à exploração e aproveitamento indefinidos dos recursos naturais e humanos de um território nacional virtualmente sem fronteiras. Arquétipo da “cidade letrada”.
Mas independente de serem capitais coloniais fundadas sob leis justas, ou urbes modernas traçadas segundo princípios funcionais, tais cidades letradas apenas podem ser compreendidas em toda sua magnitude civilizatória se, ao mesmo tempo, contemplamos seu reverso. E o reverso das cidades coloniais é constituído pelos amplíssimos processos de destruição massiva da ordem simbólica e urbana das civilizações e das cidades antigas de América, da espoliação sistemática de suas riquezas e a conseqüente liberação de uma força massiva de trabalho escravo. E o reverso das megalópoles pós-coloniais é a massa humana simbolicamente hibridizada e socialmente desintegrada que se estende sem limite em suas periferias infraurbanas. O reverso das cidades instauradas pela escritura e pela lei são os assentamentos imensos e anônimos aonde hoje mora a maioria das populações econômica, ecológica e militarmente desterritorializadas da América Latina.
Têm existido poderosas razões para eliminar como falso problema urbanístico ou político estes subúrbios desumanizados que se estendem como uma refutação material dos sonhos civilizatórios coloniais e modernos. Do ponto de vista da racionalidade do Vice-Reino, nada existia fora ou antes da ordem jurídica da escritura. São como um reino obscuro de uma idade sem história ou cidades sem nome e sem lei. Um universo aleatório que se confundia vagamente com um estado de natureza diabólico ou com um “continente vazio”. Por isso, a condição fundacional da cidade colonial americana construída more geométrico era um espaço geográfico e culturalmente vacante, sem passado e sem memórias. Um espaço que, se não estava real e efetivamente despovoado, se despejava e se evacuava militarmente até reduzi-lo a um virtual nada. A velha Lima é um exemplo de cidade erguida sobre um local deserto. México foi uma cidade erigida sobre as cinzas de Tenochtitlan. As cidades modernas se sustentam sem exceção em um destes dois princípios fundacionais. E Brasília é também um exemplo. Seu traçado se estende sobre um horizonte infinito e vazio. Mas sua fundação foi precedida pela destruição do cerrado e a liquidação dos assentamentos indígenas que a povoavam (3).
Este princípio destrutivo é igualmente funcional e simbólico. Permite a instauração dos instrumentos técnicos e urbanos da civilização e da modernidade como quem decide desde o céu. Ao mesmo tempo, exclui e oculta suas conseqüências humanas e ecológicas devastadoras. Sua expressão urbanística e arquitetônica contemporânea são as favelas, os ranchos, os bairros, as zonas de infra-habitação subumana e a ocupação territorial suburbana gerados por sucessivas ondas de massas humanas, indígenas, africanas e mestiças até os centros de produção industrial, ao longo de um processo ininterrupto que começou com as minas de ouro e prata do Potosí e não acaba nas Maquiladoras de Tijuana (4).
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Mas a cidade colonial americana não encarnava unicamente a ordem letrada da lei. Nem a escritura era apenas o meio de um poder alienado e alienante. Era também uma escritura sagrada. Significava o Livro, a palavra de Deus. Representava a ordem simbólica e espiritual de uma esperança messiânica. Esta promessa transcendente da salvação dos povos cristalizava também na ordem urbanística da cidade e no desenho teológico e arquitetônico da igreja, que a coroava como seu centro espiritual. Uma igreja traçada construtivamente como instrumento funcional e racional de concentração e vigilância da massa indígena convertida e colonizada. Mas que, ao mesmo tempo, era uma igreja barroca. Era uma igreja concebida como um espaço imaginário e maravilhoso. Una arquitetura levantada como o espetáculo sublime da transfiguração milagrosa e mística da existência humana, da supressão e superação das contingências da cidade terrena em um reino virtual dos redimidos. Um espaço sensualmente dinamizado, saciado de ornamentos, habitado por voluptuosos anjos e virgens, intoxicado por vozes e músicas sacras, prenhe de incensos e cores. Uma arquitetura que coroava a ordem funcional da cidade colonial como representação da Cidade de Deus.
O misticismo, o sensualismo e a espetacularidade barroca infundiram às capitais e às culturas coloniais de América um caráter específico e inconfundível. Na era pós-colonial essa estética barroca e neo-barroca se desenvolveu amplamente – tanto na poesia tanto como na arquitetura, sob múltiplas variações e nomes – no pleno sentido de uma identidade nacional. A mesma transcendência messiânica, um sensualismo de características afins, e uma idêntica fascinação pelo performático, distinguem muitos dos exemplos mais expressivos do modernismo literário, plástico e arquitetônico. Na cidade moderna e secular, a representação da transcendência e da glória adotou os cânones clássicos e ilustrados das artes e das letras. A cidade colonial como representação da ordem divina se transformou em espetáculo moderno da civilização.
Também neste aspecto Brasília é um esplêndido paradigma. Seu “Plano Piloto” não apenas compreendia sua avenida monumental pontuada pelo interminável desfile uniforme e monótono de ministérios prismáticos, construídos ao moldes de Le Corbusier. Nem terminava nos ícones arcaicos do poder e da morte, em sua pirâmide e sua cúpula, sua antena-obelisco ou seu mausoléu, inspirados nos modelos clássicos das capitais imperiais da Europa e dos Estados Unidos. Brasília é mais do que isso. É uma expressão do funcionalismo nascido dos ateliês expressionistas alemães e da Bauhaus, e do cartesianismo lecorbuseriano, adaptados à amplitude geográfica e aos imperativos administrativos da expansão colonial do industrialismo moderno. Mas ainda é algo mais. É a combinação deste funcionalismo colonial com os ritmos sensuais e místicos da Bossa nova, das expressões religiosas e artísticas africanas da Bahia e do Rio de Janeiro, da pureza formal que distinguem os espaços arquitetônicos e o design das culturas amazônicas pré-coloniais, e da plasticidade do samba. Lucio Costa insistia, nos últimos anos de sua vida, que Brasília era uma “cidade romântica”. É uma fantasia carnavalesca, uma quimera de vidro e concreto, uma cidade de sonhos. Aonde um dia a política se encontrou com a poesia, sob o clamor popular de uma festa nacional democrática.
Quero aqui destacar uma visão hermenêutica que trata de captar a obra artística e arquitetônica a partir de sua integração funcional em um processo civilizatório, seja ele colonial o pós-colonial, seja ele moderno ou pós-moderno. Mas uma visão que, ao mesmo tempo, é uma estética. Ou seja, um olhar que apreende a obra artística levando em conta sua intencionalidade formal e expressiva, e a sua transcendência espiritual. E que, portanto, aspira compreender esta transcendência em um virtual reino da beleza, que o barroco formulava na representação arquitetônica, poética e musical de uma cidade divina na transcendência, e o espírito secular moderno propôs como uma citta ideale e como espaços de transformação do social.
Nas gregas e nos grifos das fachadas barrocas mexicanas, por exemplo, pressentimos uma escritura própria, inserida nas tradições mudéjares do barroco espanhol, mas que abriram ao virtuoso artesão e arquiteto náhuatl ou maia a possibilidade de expressar sua própria concepção de espaço e inclusive, em certa ocasiões, de manifestar elementos pictográficos que formavam parte de seu destruído acervo artístico. O valor espiritual e transcendente deste ornamento barroco é inseparável dos detalhes da forma, inclusive ou precisamente em seus aspectos expressivos mais individuais. E isso nos permite experimentar na reiteração de elementos geométricos, ou no efeito vibrante e multicolorido que as ornamentadas fachadas de Tasco ou Zacatecas exercem sobre nossa retina, algo mais que os momentos lingüísticos e as chaves técnicas que nos permitem classificar formalmente estas obras.
Diante de uma arquitetura moderna como o Museu Rufino Tamayo projetado por Teodoro González de León e Abraham Zabludowsky, na cidade de México, reconhecemos as linguagens ao mesmo tempo abstratas e intensamente dinamizadas que têm distinguido, entre outras, as grandes arquiteturas do expressionismo alemão, de Mendelsohn a Taut e Scharoun. Mas a monumentalidade proporcionada de suas escalinatas, seus planos inclinados, que limitam o espaço exterior e ao mesmo tempo nos transportam fluidamente às rampas e espaços internos, suas fugas geométricas e seus volumes massivos, tudo isso nos transporta imediatamente às limpas superfícies geométricas, às rampas e às escalinatas das arquiteturas cerimoniais astecas ou zapotecas. O prazer estético que acompanha nosso movimento físico através dos espaços interiores deste museu se faz mais intenso na mesma medida em que nos permite circular, também, no meio de espaços, símbolos e memórias de idades e culturas diferentes.
A arquitetura religiosa de Minas Gerais, no Brasil, é uma recriação dos modelos do barroco da Roma contra-reformista. O surpreendente, sem dúvida, é sua presença em uma paisagem exuberante de suaves colinas, em cujos cumes, suas plantas e fachadas cristalinas se engastam como perfeitos diamantes, criando contrapontos recortados sobre os horizontes agrestes das altas montanhas da região. Os interiores destas igrejas, que em muitas ocasiões transmitem o sentimento comunitário e acolhedor mais próprio dos cultos evangélicos, guardam uma nova surpresa. Grande parte de sua ornamentação, de sua pintura e de sua escultura é a obra de artistas populares, em sua maioria anônimos, que deixaram nos volumes geométricos e nas formas profundamente expressivas de suas talhas a marca das tradições artísticas africanas, chegadas ao Brasil com o tráfico de escravos. As texturas ásperas das velhas madeiras, dos caiamentos e dos mosaicos, o vibrante brilho do ouro e os fortes contrastes de cores conferem a estes interiores uma secreta atmosfera mística, aparentada com os cultos religiosos africanos que se apropriaram, na medida de suas limitadas possibilidades, da liturgia católica do barroco.
Esta apropriação espiritual e a conseqüente transformação do espaço, e da escultura e pintura que abriga, explica também a adaptação honesta destas igrejas barrocas à cultura popular de cidades como Salvador e Ouro Preto. O mesmo processo de recriação, síntese e transformação lingüísticas distingue as grandes obras da arquitetura moderna na América Latina. Barragán é um dos grandes nomes que não podemos deixar de mencionar neste contexto. Seus característicos espaços ortogonais, seu virtuoso agenciamento de volumes cheios e vazios, o uso construtivo da cor em grandes superfícies retangularmente talhadas, e o encerramento das referências vegetais sob uma severa ordem ascética das elevações e das plantas só podem ser interpretados como variações mexicanas do programa estético do neoplasticismo europeu. Mas as grandes superfícies murais, destituídas de ornamentos, são uma constante da arquitetura monacal católica. O próprio Barragán comenta sua fascinação pelos intermináveis muros dos conventos nas cidades medievais espanholas. Por outro lado, a organização ortogonal do espaço, a construção geométrica obedecendo a códigos numéricos estritos e os volumes vazios são também uma característica comum dos monastérios pré-coloniais. Barragán traçou uma difícil negociação entre os diferentes significados simbólicos que o ângulo reto, as proporções numéricas e as plantas geométricas têm tido respectivamente no misticismo zapoteco, na disciplina monacal cristã e no ascetismo cartesiano de Mondrian e de Oud. A experiência de silêncio, concentração e rigor interno, que em certas ocasiões, como sucede em sua própria casa, chega até o extremo do opressivo, não pode se separar destas memórias culturais.
A apropriação original dos estilos internacionais e a transfiguração libérrima de suas linguagens racionalistas em formas e espaços de exaltado dinamismo e sensualidade, se tornam evidentes, para citar outro exemplo famoso, em um dos elementos construtivos mais chamativos da arquitetura brasileira moderna: suas escadas. Ninguém que haja visitado o Palácio do Itamarati, a jóia arquitetônica que coroa Brasília concebida por Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx, pode esquecer as proporções generosas e elegantes, o poderoso movimento ascendente e a leveza de sua escada central. Muito antes de se tocar com os pés seu primeiro andar, já nos sentimos visualmente transportado até o alto. De novo, nos encontramos aqui com um motivo barroco, que se referencia a uma série conhecida e mil vezes celebrada de escalinatas nos palácios romanos do Seiscentos e do Setecentos. Mas as escalinatas são também um motivo moderno, que aparece igualmente no Parque Güell de Antoni Gaudí, no projeto do Festspielhaus de Hans Poelzig, no Glashaus de Bruno Taut, e sempre com um significado iconográfico enfático. Do ponto de vista estético, a escada é um elemento dinamizador e transformador do espaço. Sua função simbólica consiste em suspender a gravidade das massas e transfigurar a matéria construtiva em movimento ascendente e em energia. Desde os textos bíblicos, a escada tem sido um dos mais importantes símbolos místicos.
O monumental hall do Itamarati está definido simbolicamente pela presença da terra e da água, que unem, sem solução de continuidade, os espaços exterior e interior do palácio. As escalinatas são a mediação entre estes elementos e o salão nobre do piso superior. Só que este espaço central e superior do palácio é um pátio aberto e um jardim suspenso. É uma citação legendária dos jardins babilônicos. Em seu desenho, Burle Marx travava, além disso, um sutil diálogo entre a sensualidade dos jardins árabes e a ordem hermética do paisagismo japonês. Mas, na realidade, este jardim suspenso é uma celebração da exuberância amazônica. No Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de Affonso Eduardo Reidy, as escadas desempenham também um papel emocionante. Elas rompem, com seu movimento espiral ascendente, a rigidez estética do Modulor, ao qual a jovem arquitetura brasileira rendeu culto (o que menciono de passagem), mais pela liberdade de movimentos que permitia do que pela intransigência industrial que pretendia impor. E Reidy concebeu estas escadas, divididas em um lance sedutoramente curvilíneo, e outro lance de rigorosos ritmos ortogonais, como um verdadeiro caminho de iniciação até o reino da beleza, ao qual o museu está destinado. Outra escada, ainda que desta vez construída na forma de imensas rampas ascendentes da arquitetura monumental pré-colonial da América, ganha um papel central na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, concebida por João Vilanova Artigas. Uma rampa da qual sempre tenho ouvido dizer, pelas bocas dos arquitetos dessa cidade, que havia sido concebida para que por ela subissem os deuses. E para citar uma última cena, recordarei uma ocasião na qual Lina Bo Bardi me mostrou, com uma mescla de pudor e afetação, um bilhete firmado com o punho e a letra de Niemeyer, na qual este a felicitava com palavras muito amorosas por sua maravilhosa escada no Solar do Unhão, o embarcadouro colonial de tráfico de escravos de Salvador que ela havia transformado em museu de cultura popular e lugar da memória.
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Lina Bo Bardi gostava de manifestar a imensa alegria que significou sua chegada a Brasil. Falava com entusiasmo de suas paisagens exuberantes e da fascinação que lhe despertaram de imediato as expressões da cultura popular. E confessava de bom grado como se viu seduzida pela liberdade expressiva dos jovens arquitetos que conheceu tão logo começou sua nova vida: Niemeyer, Burle Marx, Reidy, Levi, Vilanova Artigas... Essa liberdade a ligou definitivamente ao Brasil. Lina me dizia que saiu da Itália pós-fascista com apenas duas bagagens. Uma era a arquitetura das vanguardas européias anteriores à Segunda Guerra Mundial, sob cujo espírito se havia formado. Seu segundo legado era negativo. Era uma decepção. Apesar ou por causa de sua experiência diante do fascismo, Lina Bo acreditava na urgência de realocar aquela vontade de ruptura e renovação que havia animado aos artistas e intelectuais europeus da geração de Gropius e do expressionismo alemão, e dos primeiros anos do futurismo italiano. Mas na Europa do pós-guerra a jovem arquiteta não sentia aquela liberdade sem a qual não se pode conceber um projeto verdadeiramente renovador da sociedade, nem articular uma nova arquitetura nela. “Essa liberdade me foi dada pelo Brasil”, dizia. E sublinhava isso com plena consciência dos imensos obstáculos que havia encontrado ao longo de sua carreira, desde os tanques militares com os quais a ditadura fechou sua exposição de arte popular na Bahia, até as mesquinharias usuais do pequeno mundo acadêmico.
A arquitetura de Lina Bo Bardi, por outra parte, não apenas cresceu no contexto do expressionismo arquitetônico brasileiro representado por Reidy, Niemeyer, Vilanova Artigas ou Mendes da Rocha. Suas características projetuais e formais apenas podem ser compreendidas inteiramente se levarmos em conta, também, sua proximidade com as culturas e memórias populares do Brasil, e muito especificamente o universo espiritual africano da Bahia. E apenas pode se entender a partir de sua estreita relação de amizade com a boemia intelectual e artística que cristalizou na Vanguarda Tropicalista de sua capital, Salvador. Com nomes tão destacados como Glauber Rocha, Caetano Veloso, Wally Salomão ou Antônio Risério (5). É o que queria dizer Lina Bo Bardi com sua eleição da América Latina como uma família cultural caracterizada por uma imaginação poética e socialmente inovadora, uma arquitetura integrada às expressões populares e uma inteligência livre. O que, ao contrário, lhe asfixiava na arquitetura européia e norte-americana do pós-guerra, em seus sucessivos neo-estilos e pós-movimentos, era sua identificação trivial com o poder tecnológico e político, era sua pueril obediência às regras de jogo do mercado, era seu formalismo vazio.
Menciono aqui essas circunstâncias particulares porque sugerem as chaves elementares a partir das quais se tem gerado propostas arquitetônicas especialmente inovadoras desde um ponto vista tanto formal, como tecnológico e civilizatório. São chaves para compreender os ensaios e modelos de um presente crítico que apontam em direção a um futuro melhor. Resumirei brevemente os significados destes projetos em torno de três grandes dilemas do século 21: a destruição ecológica, a liquidação das memórias culturais e os amplos fenômenos de desintegração social nas megalópoles contemporâneas.
No que diz respeito ao primeiro tema, ou seja, a conservação dos habitats ecológicos, podemos mencionar, entre outros muitos, a Severiano Porto na região Amazônica ou Rogelio Salmona na Colômbia. Suas arquiteturas são relevantes como experimentação com materiais construtivos adaptados às condições ambientais tropicais e equatoriais. Porto tem desenvolvido também uma série de tecnologias tradicionais com meios modernos e objetivos ecológica e socialmente responsáveis. A obra deste arquiteto como a de Salmona é interessante, além disso, na medida em que abriga estas inovações tecnológicas e funcionais com um repertório amplo de soluções formais originais, que sem dúvida mantém um estreito diálogo com as linguagens arquitetônicas tradicionais da região. Sem dúvida, quero sublinhar que as experimentações arquitetônicas de habitar e ocupar o território não agressivas cultural, social e ecologicamente – antes, ao contrário, capazes de restaurar memórias, habitats e formas tradicionais de vida nas zonas mais ameaçadas do colonialismo pós-industrial –, constitui hoje uma corrente ampla e diversificada em toda América Latina. Conheci pessoalmente ensaios semelhantes aos de Severiano Porto na região amazônica e nos estados centrais de México. Ensaios que compreendem um amplo leque de estratégias, desde a restauração de centros habitacionais históricos e a recuperação de tradições artesanais antigas, até a pesquisa de tecnologias ecologicamente sustentáveis, e um repertório formal inovador. O ateliê experimental de arquitetura Las Gaviotas na Colômbia é outra referência de amplíssimas dimensões formais, ecológicas e sociais. Não é preciso destacar as imensas dificuldades que estes arquitetos encontram a sua frente. A violência global organizada nuns casos, e o imenso poder econômico e político da indústria da construção em outros, tende a emudecer e relegar estas experiências, que são precisamente de ponta, a um lugar marginal. Por sua vez, o establishment da crítica arquitetônica os ignora porque transgridem as fronteiras lingüísticas do fetichismo corporativo que hoje domina a representação da arquitetura e do urbanismo no meio da indústria cultural.
O segundo exemplo que quero citar nestas páginas tem a ver com a restauração das memórias culturais ameaçadas sucessivamente pelo processo colonizador e pela chamada globalização. A este respeito recordarei uma das arquiteturas mais originais de América Latina: o Anahuacalli de Diego Rivera. Trata-se de uma obra amplamente ignorada pela crítica arquitetônica latino-americana e internacional. E é, sem dúvida alguma, um projeto altamente polêmico. Para começar, a visita deste singular monumento é algo que dificilmente pode se tirar da memória. O edifício se levanta como uma imponente massa cúbica de negro basalto em meio a uma paisagem de tormentosas lavas vulcânicas. Está situado em um subúrbio pobre e de difícil acesso, ao sul do vale do México. Ergue-se em um gesto de dolorosa solidão, e a expressão de suas fachadas é ferino como um grito de agonia ou como uma maldição profética.
As funções deste monumento são outro aspecto ostensivamente singular. O Anahuacalli foi concebido, ao mesmo tempo, como museu e mausoléu. Ou seja, abriga uma importante coleção arqueológica. Suas paredes estão literalmente repletas de belíssimas obras artísticas de cerâmica pré-colonial. Mas que não estão expostas subjugadas pelo princípio estéril de uma taxonomia arqueológica, e muito menos com a intenção mercantilista da exposição de um design. Os objetos abrigados neste museu não são citações de uma memória academicamente formalizada, mas testemunhos da destruição e morte das grandes civilizações pré-coloniais do México. Por isso o Anahuacalli é um museu e é também um templo. Por isso reinterpreta arquitetonicamente elementos construtivos dos templos astecas e maias. Mais ainda, o Anahuacalli é um verdadeiro museu e templo do Holocausto das civilizações históricas das Américas.
É um monumento único. Não apenas porque não temos outro com esta intenção específica. É único porque eleva esta memória da destruição e, ao mesmo tempo, da resistência dos povos americanos a essa destruição, sob o signo da criação artística, não da culpa. Diego Rivera recorda a destruição dois povos originários da América sob o signo afirmativo da beleza. A beleza de ontem, a das cerâmicas maias e astecas, em primeiro lugar. E não em último lugar, sob a celebração de uma arte moderna socialmente responsável, que precisamente ocupa o espaço central e simbolicamente privilegiado desta arquitetura. E do qual o cavalete de Diego Rivera, situado nessa sala principal, constitui um importante exemplo (6).
Mas não são somente estes valores simbólicos que eu quero destacar no Anahuacalli. Também quero destacar seu significado programático como reflexão sobre a forma arquitetônica. A este respeito é preciso recordar a crítica que tanto Diego Rivera como seu amigo Juan O’Gorman desfiaram contra a superposição de modas e estilos internacionais nas cidades latino-americanas, em um processo contínuo de ruptura e desintegração dos vestígios urbanos da memória e das identidades coletivas ligadas a elas. Ambos artistas atacaram de frente o epigonismo e a mediocridade que se amparava sob estas linguagens corporativamente sancionados. E defenderam e definiram um conceito de forma arquitetônica a partir da reflexão sobre as memórias culturais que encerra (7).
Nenhum destes ensaios arquitetônicos, nem o que representa Rivera, nem os que têm realizado Severiano Porto, deveria ser rebaixado à categoria de regionalismo. E não porque, de fato, suas propostas não partam da maneira mais nítida possível das tradições e formas de vida, e comunidades históricas locais. Não pode reduzir-se a esta categoria regionalista porque o problema que colocam – respectivamente, a colonização das linguagens históricas, a destruição dos tecidos urbanos e a devastação ecológica das cidades – é precisamente o mais global dos problemas que ameaçam a humanidade do século 21. A rigor, a redefinição técnica da arquitetura a partir dos equilíbrios ecológicos, e a redefinição de seus espaços a partir das linguagens históricas se encontra mais próxima das categorias universais formuladas por um Vitruvius ou um Schinckel que da intransigência cartesiana de Le Corbusier ou Rietveld, e a obsessão comercial do Postmodern. Por isso ambos arquitetos representam uma alternativa ao mesmo tempo formal, técnica e civilizatória. Este é também o significado que deve ser destacado em meu terceiro exemplo.
O terceiro e último tema que me parece necessário mencionar aqui é a integração da arquitetura nos tecidos urbanos, social, estética e ambientalmente degradados, do Terceiro Mundo. E inversamente, também a integração no interior do projeto arquitetônico da imensa riqueza multi-étnica e multicultural que também distingue estas mega-cidades. Sob este tópico quero considerar o conjunto arquitetônico mais importante criado por Lina Bo: o Centro Cultural SESC Pompéia em São Paulo.
Tentarei assinalar alguns aspectos elementares que intervêm neste complexo projeto. Estritamente falando, sua função é a de um espaço de entretenimento, que também acolhe as atividades de um centro cultural, desde uma biblioteca, a salas de exposição, ateliês de arte, e teatros. Em segundo lugar, o projeto de Lina Bo Bardi é, como já assinalei, o resultado de várias décadas de trabalho em torno das expressões da cultura popular brasileira. A este respeito é importante destacar que seu conceito de popular – e em geral o que em América Latina se pode chamar arte, música e cultura populares – está tão longe dos populismos fascistas europeus dos anos trinta, como dos aspectos industriais e acomodados da cultura Pop norte-americana. Uma diferença que se remonta a um processo falido de conversão cristã dos povos colonizados, e a um incompleto processo de racionalização industrial e pós-industrial (8). Em terceiro lugar, as definições arquitetônicas de centro cultural e museu de Lina Bo rompem também com a tradição clássica que definia o museu como lugar de troféus, e sua tradução pós-moderna como arquitetura computacionalmente projetada, em cujos espaços clinicamente assépticos são seqüestradas as obras de arte sob sua dimensão espiritualmente morta de artefato fetichista.
O SESC Pompéia parte de uma vontade integradora dessas culturas populares, que primeiro tem sido violentamente deslocadas de seus meios rurais originais para a megalópole, para serem depois marginalizadas pela indústria e pelas burocracias culturais. Para isso dispõe de uma série de espaços intensamente significativos. Para começar, Lina Bo Bardi partiu do elemento arquitetônico mais comum nas megalópoles do Terceiro e o Primeiro mundos: as ruínas industriais. Em segundo lugar, transformou simbolicamente estes espaços de sacrifício humano e desolação urbana, em um lugar de jogo, criação e prazer. Formalmente esta transformação tem lugar sob uma série de linguagens arquitetônicas que conjugam ritmos e motivos do expressionismo alemão e do futurismo italiano, com as tradições artesanais de carpintaria e de construção em tijolo à vista, as citações da engenharia industrial e variações em torno do galpão da arquitetura tradicional latino-americana. Sob esta polifonia de linguagens e espaços diferentes se estabelece finalmente um diálogo entre a festa popular e a cultura erudita, entre o museu como lugar da memória e a praça pública, entre a biblioteca e a pista desportiva. Algo assim como um Gesamtkunstwerk, mas sem esse ar acético que lhe conferiu a Ópera de Wagner. E com uma transparente projeção social democrática.
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Quero terminar por onde comecei: a cidade letrada, a cidade racionalmente planificada, teologicamente hierarquizada, e vigiada segundo um rigor funcional e racional. Quero terminar com a evolução terminal desta cidade letrada. Hoje, queiramos reconhecer ou não, vivemos em megalópoles como México ou São Paulo que são social, ecológica e culturalmente insustentáveis. Contemplamos a extensão sem limites de zonas suburbanas de alta densidade populacional, submetidas ao rigor de uma infra-pobreza econômica e uma degradação moral planificadas globalmente. Verdadeiras anticidades nas quais a ordem da lei significa violência, e a escritura acompanha uma sustentada regressão a formas pós-humanas de vida.
O lugar privilegiado desta outra escritura, a escritura da anticidade, foi o romance latino-americano do século 20. É O Senhor Presidente de Miguel Angel Asturias: o relato de uma Guatemala acossada pela violência, pela corrupção e pela desumanização. É Comala, a cidade dos mortos, como a chamou Juan Rulfo em seu romance Pedro Páramo. Uma cidade convertida num inferno habitado por homens e mulheres reduzidos à existência de espectros agonizantes. É também a mescla de intensidade poética e extrema miséria do Chimbote de José María Arguedas, um subúrbio ilegal e abandonado, na inóspita e inacabável periferia suburbana de Lima. Ou é uma cidade como a Assunção descrita por Roa Bastos em Eu, o Supremo, uma cidade que se desmorona interiormente sob o efeito do despotismo e da violência.
notas
1
RAMA, Angel. The Lettered City. Durrham: Duke University Press, 1996.
2
NIÑO ARAQUE, William. “Villanueva, Momentos de o Moderno”. In Carlos Raúl Villanueva, um moderno em sudamérica. Caracas: Galería de Arte Nacional, 1999, p. 23 e seguintes.
3
O cerrado é um tipo de vegetação oriunda do Brasil central caracterizado por árvores baixas e espaçadas em um solo de gramíneas.
4
NT – Maquiladoras são Companhias que importam máquinas e materiais no sistema duty free e exportam produtos industrializados para todo o mundo. As Maquiladoras de Tijuana são conhecidas pela extrema exploração da mão-de-obra, em especial feminina.
5
RISÉRIO, Antônio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995.
6
LÓPEZ RANGEL, Rafael. Diego Rivera e a arquitetura mexicana. México: Direção General de Publicações e Medios, 1986.
7
RODRÍGUEZ PRAMPOLINI, Ida; SÁENZ, Olga; FUENTES ROJAS, Elizabeth (eds.). A palavra de Juan O’Gorman. México, DF: UNAM, 1983, p. 136 e seguintes; 204.
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Este conceito de cultura popular foi exposto entre outros por Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico. Cf. SUBIRATS, Eduardo. A penúltima visão do Paraiso. São Paulo: Studio Nobel, 2001.
sobre o autor
Eduardo Subirats é autor de uma série de obras sobre teoria da modernidade, estética das vanguardas, assim como sobre a crise da filosofia contemporânea e a colonização da América. Escreve assiduamente na imprensa latino-americana e espanhola artigos de crítica cultural e social