A chegada do inverno traz sempre tristeza. É o frio, a chuva, a neblina, as árvores sem folhas, nem flores, as noites prolongadas. No Rio de Janeiro, este 21 de junho amanheceu ainda mais triste. O familiar e tradicional volume abobadado visível na curva da avenida Brasil, em São Cristóvão, que anunciava os caminhos em direção à ponte Rio-Niterói e ao centro da cidade, sumira. Depois de anos de abandono e progressivo deterioração o prédio das Oficinas Gastal, projetado pelo arquiteto Paulo Antunes Ribeiro (1905-1973), em 1952, foi dinamitado pela Prefeitura a fim de construir um novo, e duvidoso, viaduto de conexão com a Linha Vermelha, quando poderia, por exemplo, restaurá-lo para receber atividades culturais, em um bairro em que estas infra-estruturas são bastante escassas.
Em um momento em que se tenta derrubar o menor número possível de prédios da primeira modernidade – lembremos a defesa das obras do Movimento Moderno levada adiante pelo DOCOMOMO –, buscando reciclar e promover uma reconversão funcional que prolonguem a sua vida útil; é constrangedor o desaparecimento de um ícone fortemente integrado ao skyline da cidade. Sobretudo nos dias atuais em que o tema da destruição do contexto nos remete às imagens de Kabul, Bagdad e Faixa de Gaza, que tanto participam do nosso cotidiano. Torna-se difícil assumir com normalidade o sumiço de um prédio que marcava fortemente a paisagem de uma avenida de circulação intensa ligando bairros e municípios vizinhos, como a Avenida Brasil. Some-se a isso o fato de a perda de prédios significativos não é já há algumas décadas uma realidade carioca. Apagou-se a chama da fúria renovadora que acabou com os morros do Castelo e Santo Antônio, eliminou dezenas de quarteirões da Cidade Nova e os tradicionais prédios ecléticos da Avenida Central, incluindo o Palácio Monroe, para encher o centro de prédios altos e abrir-lo com largas avenidas. Por outro lado, após a transferência da capital para Brasil, há mais de quarenta anos, o ritmo das transformações do ambiente construído carioca não se compara ao observado em São Paulo nas últimas décadas.
Do conjunto de obras valiosas construídas no Rio de Janeiro por Paulo Antunes Ribeiro, esta era uma das que tinha maior visibilidade devido à localização estratégica relacionada com a porta principal de entrada à cidade. Em um entorno onde predominam a aridez, a baixa qualidade estética dos armazéns, depósitos e fábricas, a Oficinas Gastal criava, com a síntese do grande arco de sessenta metros de cumprimento, ecoado nos dois menores sustentados pelas colunas em v, uma dinâmica visual que acompanhava a velocidade perceptiva dos motoristas e passageiros que circulavam na avenida. As três curvas das abóbadas definiam, inclusive, uma articulação formal e espacial com a curva do percurso da Avenida Brasil, obrigando a vista a acompanhar a sinuosidade do hall de exposições.
Nos anos cinqüenta, no Brasil e no exterior, tinha começado a aplicar estruturas leves de concreto, aço e materiais leves para cobrir grandes espaços sem apoios internos. O tema do salão de exposições de carros, tratores ou maquinas industriais, era comum no período de desenvolvimento econômico mundial ao finalizar a Segunda Guerra Mundial. O exemplo inovador de Oscar Niemeyer, na utilização das abóbadas leves de concreto na igreja de São Francisco em Pampulha (1940) e no clube em Diamantina (1950), foi difundido entre os arquitetos cariocas, aparecendo tanto no ginásio de Pedregulho de Affonso Reidy (1947-1950) e na interessante estrutura de arcos de madeira do salão de exposições Sotreq, de tratores Carterpillar (1949), desenhada pelo escritório dos irmãos Roberto, que integram o skyline da avenida Brasil, como na estrutura do parabolóide hiperbólico do pavilhão de São Cristóvão, desenhado por Sérgio Bernardes (1957-1960), cujo espaço vazio no interior da bela estrutura abriga, hoje, contraditórias e insólitas estruturas leves com coberturas plásticas da Féria Nordestina.
Considero oportuno, além de expressar o protesto contra a demolição do belo prédio das oficinas Gastal – anteriormente Hanomag –, lembrar a significação da obra arquitetônica de Paulo Antunes Ribeiro, pouco citado nos estudos da arquitetura modernista carioca, à exceção dos livros de Yves Bruand, Alberto Xavier e de Lauro Cavalcanti. Formado pela ENBA em 1926, Paulo Antunes foi membro do grupo da vanguarda que revolucionou a arquitetura no Rio de Janeiro nos anos trinta. Ele projetou o primeiro prédio moderno de escritórios no centro da cidade - a sede do IPASE, Instituto de Pensão e Aposentadoria dos Servidores do Estado (1933) - precursor, portanto, da ABI (1936) dos irmãos Roberto e do MESP da equipe dirigido por Lucio Costa (1936-1945). A volumetria limpa das duas fachadas principais se caracterizava pelas faixas continuas – opacas e de vidro –, tipologia assumida dos exemplos alemães de Mies van der Rohe e Mendelsohn. O purismo, influenciado pelo Movimento Moderno europeu, se transforma na linguagem construtivista – sem dúvida relacionado com os projetos da vanguarda russa –, na complexa volumetria de cubos e cilindros da residência Abgail Siebra de Paula Buarque (1939) no bairro de Santa Tereza.
Autor de projetos urbanos – participou com Attílio Corrêa Lima no plano de Goiânia –, as obras mais maduras foram construídas em Salvador e Manaus, expressivas da assimilação da identidade brasileira, presente no principal ícone que resumia as novas concepções formais, estéticas e ecológicas: o Ministério de Educação e Saúde Públicas (1936-1945). Por uma parte, desenha uma original malha de brise-soleil de extraordinária leveza e transparência nas duas fachadas do edifício Caramuru (1946) em Salvador; por outra, conserva o protótipo do MESP – volume puro, pilotis, teto jardim, brises – nos hotéis Amazonas em Manaus (1947) e no hotel da Bahia (1951), elaborado com a participação de Diógenes Rebouças. Neste, a originalidade está no contraste entre a pureza do volume principal das habitações e o embasamento do térreo, solucionado com um sistema de espaços curvos.
O triste desaparecimento do emblemático prédio das Oficinas Gastal corre o risco de ser esquecido para a maioria dos estudantes e dos jovens arquitetos já que poucos conhecem a obra de Paulo Antunes Ribeiro. Sugiro que este ato vandálico do poder público, seja compensado com a difusão da obra deste significativo profissional carioca.
referências bibliográficasBRUAND, Yves, Arquitetura contemporânea no Brasil, Editora Perspectiva, São Paulo, 1999, 3ª ed.
CAVALCANTI, Lauro. Guia de Arquitetura 1928-1960. Quando o Brasil era moderno, Aeroplano Editora, Rio de Janeiro, 2001.CZAJKOWSKI, Jorge; Fernando Sendyk et. Alt (Org.) Guias da arquitetura do Rio de Janeiro: Art déco e moderna, Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2000.XAVIER, Alberto; Alfredo Britto; Ana Luiza Nobre. Arquitetura moderna no Rio de Janeiro, Rioarte / Fundação Vilanova Artigas / Pini, Rio de Janeiro, 1991
sobre o autor
Roberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.