Tudo parece uma ressaca de Bilbao. Ao invés de Frank Ghery ter fechado um capítulo da história da arquitetura com seu Museu Guggenheim, aparentemente ele inaugurou outro: o capítulo que quer ser escrito pela legião de arquitetos na retaguarda de Ghery, ou os arquitetos sugados pelo ar rarefeito de idéias que permeia esta mega exposição.
A IX Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza é um espetáculo visual imbatível; é quase que uma viagem ao fundo do mar feita essencialmente por maquetes de formas orgânicas dispostas pelos quinhentos metros de extensão da Corderie, no antigo estaleiro de Veneza conhecido como Arsenal. Referências à fluidez de animais marinhos como águas-vivas, arraias, lagostas e outros crustáceos estão onipresentes, como se a ilha tivesse sido solapada por um maremoto cujos resquícios (ou danos?) são as maquetes de formas moluscóides da exibição. Contra o espaço renascentista definido pelo ritmo rígido das colunatas da Corderie, “gôndolas” amorfas brancas, criadas pelo escritório digital nova-iorquino Assimptote, definem o elegante suporte de todas as maquetes. Formalismos curvilíneos que ignoram as noções convencionais de construção são a tônica dominante, e muito espaço é dado à arquitetura como resultado de formas acidentais criadas, ou “morfoseadas”, em CAD. Daí, é claro, o título Metamorph.
A exposição começa provocativamente, com o segmento Transformazioni apresentando intervenções radicais em edifícios históricos (1). Depois dessas transformações anti-históricas, que são relativamente poucas, vem o próximo e maior segmento, Topografia. Logo no início, alguns projetos de arquitetos internacionais como Zaha Hadid, Arata Isozaki ou Richard Rodgers. Todos bem similares em termos plásticos ou de representação, o que mostra que, nessa psicodelia antitectônica, os expoentes parecem ter caído numa tentação formalista de resultados paradoxalmente anônimos: condenados a repetir formas quase idênticas. O destaque acaba ficando não para os mais espetaculares, mas para os mais reservados, naqueles cantos sem iluminação onde deixaram estar os projetos incongruentes com o título. Os projetos mais sinceros estão extremamente concentrados na Espanha, que aparece com Enric Miralles, Torres & Lapeña, Carlos Ferrater, Mansilla & Tuñón, Vicente Guallart, e Alejandro Zaera. De Portugal, uma grata surpresa ortogonal: um paralelepípedo tombado de Eduardo Souto de Moura. Apresentado com muitos holofotes, Vito Acconci, o artista conceitual dos anos sessenta e hoje também arquiteto, mostra que aderiu ao estilo orgânico e pouco mostra seu lado crítico. Na direção inversa arte-arquitetura está Peter Eisenman, que cita explicitamente os land artistas dos anos sessenta em seu mega Centro Cultural de Santiago de Compostela – a maior maquete de toda a Bienal –, e reforça que a Espanha, seja através de arquitetos locais ou estrangeiros, é o palco do melhor da arquitetura contemporânea mundial (e se relembrarmos Bilbao, fica explícito que os euros da União Européia realmente transformaram a Espanha no país-mecenas de arquitetos americanos e europeus).
Segmento Superfíci: mais prédios drapejados, mas um pouco menos que em Topografia. Fluxos côncavos e convexos continuam, e tanta curva assim acaba por deixar uma certa impressão de pouca gravidade e profundidade (Eladio Dieste, posto numa sala marginal no pavilhão da Itália, bem que poderia estar aqui para inserir um pouco de realidade nessas superfícies virtuais...). Mais dois Acconci, que dos baixios de viadutos de São Paulo (Arte Cidade Zona Leste, 2002) foi para Basiléia projetar um estacionamento de carros “topológico” e depois seguiu para a Áustria, onde projetou um teatro-praça como uma ameba flutuante no meio de um rio. Salta aos olhos a simplicidade e a timidez da maquete da casa Möbius do UN Studio, um ótimo projeto que aqui foi ofuscado pela opulência das maquetes vizinhas (e que, curiosamente, é um dos poucos exemplos de obras construídas expostas – construções têm menos vez nessa Bienal...). Greg Lynn Form nas gôndolas com mais formas não construídas; mas a simplicidade de suas casas em Venice, Califórnia, parece indicar que o teórico dos blobs está diante de uma guinada para o pragmático. No outro extremo, Campos Baeza, minimalista 90o, apresenta seu Museu Mercedes Benz: mais um exemplo, entre vários outros, de (ex-)arquiteto de linhas retas que se curvaram ao novo estilo (Mas a verdade é que, até quando se internacionalizam, os espanhóis sempre mantém a identidade). Diller & Scofidio e Renzo Piano, arquitetos em princípio menos modistas, também mimetizando as superfícies metamórficas das gôndolas...
Atmosfera: A instalação “The Weather Project” do artista dinamarquês Olafur Eliasson, ocorrida na Tate Modern de Londres, catapultou o interesse pelo que talvez possa ser chamado de arte atmosférica e lançou o tema no grande circuito cultural internacional. Na bienal, Atmosferas é o segmento menos formalista da exposição. Permeiam estas gôndolas algumas vanguardas datadas e absolutamente inofensivas, como a “living architecture” (ou melhor dizendo, um inseto de David Cronemberg como espaço habitável...) de Marcos Novak. Apesar disso, esta é a seção de arquiteturas mais sutis e mais sérias. Bons projetos de Kazuyo Sejima, de MRVDV, de Ábalos & Herreros, do finlandês Sanaksenaho Architects e dos australianos PTW Architects mostram a extrema flexibilidade do conceito de atmosfera segundo o curador; enquanto os veteranos Jean Nouvel e Toyo Ito, abusando das renderizações noturnas, também demonstram uma certa autonomia em seus projetos.
Há também outros contrapontos ao que é facilmente associável à estética orgânica, o que está claro em The Nature of the Artifice e em Harrowing the City, dois intervalos entre as maquetes compostos por ensaios de fotógrafos. É aqui que podemos perceber algumas insinuações sobre a relação entre arquitetura e natureza; assunto pouco discutido pelos arquitetos das metamorfoses. Paisagens predominam e ofuscam tudo o que é construído; arquitetura, só fora de foco. Em The Nature of the Artifice, o alemão Andreas Gursky apresenta suas imagens de grande formato. Em uma delas, onde um teleférico é só um pequeno ponto perdido numa paisagem montanhosa nebulosa, o fotógrafo parece criticar as tantas construções apresentadas e a ausência de uma discussão mais séria sobre ecologia e cidade. Outros fotógrafos comparecem com mais paisagens (nunca com arquitetura): topografias transformadas, minerações, nuvens em preto e branco, taludes de estradas, macro e micro geografias. Essa ausência de arquitetura é substituída pela representação crítica da cidade, tema da outra exposição fotográfica, Harrowing the City. Todos os fotógrafos se esforçam para traduzir uma insatisfação com os modelos convencionais de fotografia de arquitetura, predominantemente perspectívicos e iconográficos. São fotos sujeitas ao acaso, que tentam expressar uma visão subjetiva das cidades em composições mal cuidadas, acidentais e não-programadas: a própria antítese da representação cada vez mais racional e sem ruídos empregada pelos arquitetos.
Retomando os projetos de arquitetura, Iper-Progetti é o segmento cujo título dispensa explicações (mas cadê Koolhaas?), e a super exposição Sale Concerti – onde está o único projeto do Brasil na exposição internacional (2) – deixa bem claro o elitismo do curador.
O catálogo da bienal é um objeto à parte e traz vários textos, procurando costurar conceitualmente as centenas de projetos da mostra. A intenção do curador Kurt Forster, historiador de arte de currículo extenso, foi montar uma bienal “dos professores”: “Depois da bienal dos artistas de Fuksas em 2000 e da bienal dos jornalistas de Sudjic de 2002, agora é a vez da bienal dos professores” (3). Além de Frank Ghery, seu círculo de amigos e arquitetos intelectualizados inclui Peter Eisenman, quem projetou sua casa (House Eleven-A, não construída); com quem fundou a revista acadêmica Oppositions nos anos setenta; e a quem deu o prêmio Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra nesta Bienal. A excessiva atenção ao academicismo de Eisenman (4) e as referências às outras artes também são sintomas de uma busca por algum peso teórico para todos aqueles prédios sem gravidade. Vários ensaios confirmam essa intenção: Structural Intuitions and Metamorphic Thinking in Art, Architecture and Science (M. Kemp); Morphing the Sublime (Hani Hashid); Picturesque Metamorphosis (Iñaki Ábalos); Metamorphosis (Marina Wainer); etc. Mas apesar dos três volumes que totalizam quase 800 páginas de catálogo, não resta dúvida que o esforço intelectual do curador não consegue justificar a arquitetura do título com suficiente convicção. E mesmo com alguns poucos ensaios ácidos e lúcidos, no final Metamorph é um claro elogio ao estilo, deixando pouco espaço para abordagens menos plásticas.
[Evidentemente o próprio Forster está ciente de suas inclinações: “A Bienal é rotineiramente acusada de ser tendenciosa, em conluio com interesses comerciais e mediáticos, sobrepujando prédios comuns e desprezando esta ou aquela necessidade mundial.” E conclui, meio que despudoradamente: “Abrigar e impressionar continuam sendo propósitos fundamentais da construção humana, (...) certamente, há muito de moda na arquitetura atual, mas o que dizer sobre sua velha dívida com a pompa, ou sua notória obediência ao poder?”] (5)
Esse elitismo é compensado nos pavilhões nacionais dos jardins, I Giardini, onde o Brasil apresenta sua seleção de seis arquitetos. Pela primeira vez na história de sua participação na Bienal (6), o pavilhão do Brasil mostra arquitetos brasileiros e/ou um programa de intervenção que são pouco conhecidos no exterior. Os curadores Pedro Cury e Jacopo Crivelli optaram por uma visão eclética que mistura diversas gerações, estilos e abordagens de projeto, o que traduz uma abertura importante rumo à divulgação de outras faces da arquitetura brasileira contemporânea (7).
A Espanha, tão presente e importante na mostra internacional, não aderiu ao tema Metamorph. Ao invés disso, seu pavilhão apresenta uma exposição histórica de arquitetos modernistas, mas seu desenho é tão convencional e tão antiquado que mais decepciona que surpreende. O Japão apresenta uma fantástica reprodução da eletricidade das ruas do bairro de Akihabara em Tóquio, misturando escalas e espaços com objetos típicos do consumismo japonês. A Alemanha recusou os grandes projetos e apresenta a arquitetura de sua periferia na mostra “Epicentros na Periferia”, uma enorme colagem impressa num painel que sobrepõe os prédios de 37 jovens arquitetos contra uma paisagem suburbana anônima. Em termos de desenho de exposição, de relação entre forma de apresentação e conteúdo, este é definitivamente o melhor pavilhão da Bienal. O Chile confirmou o talento de seus mais novos arquitetos, e a Croácia, numa decisão arriscada e original, apostou num enorme bólido de vidro (projetado poucas semanas antes da inauguração da bienal por arquitetos recém-formados). Outros países como Israel e França deixaram alguma coisa no ar, mas o prêmio Leão de Ouro dos pavilhões foi para a Bélgica que, numa demonstração de remorso pós-colonialista, apresenta um estudo antropológico sobre a cidade de Kinshasha, capital do ex-Congo belga.
Quer seja um sintoma da frivolidade e insegurança da curadoria, quer seja uma simples coincidência; o fato é que esse prêmio para a Bélgica é uma “passagem secreta” para o distante Ca’ Pesaro, um dos palácios que compõem o desfile arquitetônico que é o Canal Grande de Veneza. Bem longe do Arsenal e de I Giardini, lá no outro extremo da ilha, é no Ca’ Pesaro onde acontecem exposições complementares da Bienal, e onde está o outro grande hiato da mostra: a exposição “Lina Bo Bardi – A Liberdade da Arquitetura”. A exposição é simples e bem montada, mas a localização distante do palácio diz muito sobre a enorme distância que separa a liberdade de Lina da outra liberdade dos arquitetos da Corderie.
notas
1
O curador Kurt Forster justifica essas transformações com certa ousadia anti-histórica: “Uma pequena amostra dessas atuais transformações e propostas nos lembra que alterar prédios quando novos usos e exigências aparecem, tem sido a prática ao longo dos anos. Hoje, em muitos países, a idéia de ‘conservação’ vem contra essa tendência de transformação que, é preciso notar, possui uma história muito mais longa do que a idéia de conservação”. Transformações corajosas assim trazem uma discussão importante no Brasil, onde os órgãos de proteção do patrimônio histórico, ao invés de promoverem intervenções e renovações inteligentes, sempre impõem projetos de arquitetura rígidos e tacanhos em nome do ‘respeito’ ao patrimônio. Uma recente notícia de que um juiz de Salvador determinou a demolição da prefeitura municipal da cidade por esta ‘destoar’ do conjunto do Pelourinho, mostra que a política de patrimônio histórico nacional está alcançando o patamar da insanidade.
2
Christian de Portzamparc e sua niemeyeresca Cidade da Música na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.
3
“Kurt il demiurgo”, entrevista publicada na revista mensal Venezian news, setembro de 2004.
4
A propósito, esta parece ter sido a Bienal concebida para o coroamento de Peter Eisenman. Em uma sala especial no pavilhão da Itália, o americano mistura Palladio e Piranesi com sua antiga referência, o outro italiano Terragni, e monta uma instalação que superpõe a Casa del Fascio de Terragni e sua House 11a (cliente que comissionou a casa: o curador). O resultado, nas palavras do arquiteto, é “uma manifestação metafórica da impossibilidade de um retorno a um centro metafísico”... No museu Castelvecchio de Verona, cidade próxima a Veneza, ele apresenta uma outra instalação temporária divulgada por cartazes afixados em toda a cidade. É do escritório Eisenman Architects a maior maquete da mostra, do já citado Centro Cultural de Santiago de Compostela. E no primeiro dia da mostra foi divulgado o nome do vencedor do prêmio Leão de Veneza: Peter Eisenman.
5
“Architecture, its shadows and reflections”, in Focus – Metamorph 9th International Architecture Exhibition, Fondazione la Biennale di Venezia, Veneza, 2004.
6
A primeira participação do Brasil foi com Oscar Niemeyer, a seguinte apresentou Paulo Mendes da Rocha e Lelé, e a terceira mostrou o programa Favela-Bairro do Rio.
7
São eles: Abraão Assad, Aflalo e Gasperini, Domingos Bongestabs, Roberto Loeb Arquitetos Associados, e Una Arquitetos, além do autor desse texto, Carlos M Teixeira (Vazio S/A).
sobre o autor
Carlos Moreira Teixeira é mestre em urbanismo (distinction) pela Architectural Association, Londres (1994). Foi bolsista do programa Virtuose do MEC na mesma AA. Tem escritório próprio desde 1995 e é professor de arquitetura da FUMEC. Publicou o livro "História do Vazio em Belo Horizonte", foi premiado em concursos nacionais e internacionais, e publica regularmente na imprensa geral e especializada