"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo"
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos
Os arquitetos Alexandre Brasil, André Luiz Prado, Bruno Santa Cecília, Carlos Alberto Maciel, Danilo Matoso Macedo, Fernando Maculan, Humberto Hermeto e Pedro Morais organizam Encontros M.D.C., um conjunto de múltiplas atividades relacionadas com a difusão, o conhecimento, a prática e o ensino da Arquitetura no Brasil, indiscutivelmente oportuno e que, tudo leva a crer, será muito importante. Imagino-lhes o imenso trabalho: estudam, procuram recursos, patrocínios, produzem seminários, exposições, discussões, viajam a estudos por diversas cidades, apresentando, debatendo e congraçando resultados.
Ao expressar minha admiração pela importância cultural deste trabalho, que transcorre paralelamente à excelente obra arquitetônica e acadêmica do grupo, quero dar a medida de minha sensibilidade ao convite que me fazem e agradecê-lo.
Tenho um interesse obsessivo e indelegável pelo tema, pelo que receio exceder-me em argumentos. Às vezes sou chamado de polêmico. Creio que seja alcunha injusta. Ao contrário, meu prazer é brigar comigo mesmo à procura de expressar, concisão e clareza, o que preciso.
Isto é um ensaio, um experimento cognitivo, a ser verificado aqui. Dúvidas me estimulam. Não quero apresentar-lhes, como se as tivesse, um discurso de certezas. Desconfio delas. São conjuntos instáveis de juízos. Atribuem-me "coragem de dizer certas coisas". Trabalho, na verdade, no risco e no medo. Discordem, destruam o que eu diga, que seja o nosso método. Espero contribuir, em alguma medida, para o maior conhecimento da Arquitetura e o aprimoramento de nossa prática. Assim teremos avançado e consolidado nossa fraterna convivência.
Os textos convocatórios trouxeram-me à memória, como um raio, a palavra “movimento”. Movimento primal, "origem do mundo".
De onde vem a lembrança? Doe curso do professor Jacob Gorender, respondendo à pergunta: para nós, o que é o ser? "Ser é matéria, matéria é ser, e os atributos fundamentais da matéria são a contradição e o movimento” (2). Sessenta e poucos anos depois veríamos a “confirmação científica" da filosofia premonitória com a equação E = MC2, energia é igual à massa vezes o quadrado da velocidade da luz.
Glória, o movimento é o começo de tudo: energia, matéria, ação, transformação e reprodução sobre a Terra, origem da vida.
É raro a Arquitetura lembrar a palavra movimento. Quando ocorre é sentido figurado, metáfora, dinâmica gráfico-compositiva, sempre restrita ao formal. O resto é demasiadamente óbvio, o trânsito, o fluxo, a informação, insumos do urbano, que não se confundem, propriamente, com ela.
Este encontro reforça a idéia de que temas de seminários e congressos, garimpados intensa e honestamente, no calor da organização, sempre acertam. São frutos preliminares de racionalidade inalcançada que flutua à procura de uma espécie de verdade diferida, reservada aos convidados. Gentileza, para ajudá-los, ou pequena provocação, inveja na assimetria das posições. À primeira leitura parecem estranhos e pretensiosos. Rumo incerto. Depois se revelam, crescem e iluminam inúmeros sentidos. Brilham. Como vimos no XX Congresso da União Internacional de Arquitetos, em Berlim, 2003. Era radical, cilada: "Recurso Arquitetura". Ao final, revelou-se um instigante suporte à reflexão de centenas de participantes do mundo todo.
Assim, foi um prazer perscrutar, na forma apresentada, os possíveis significados da associação das expressões "monumentalidade, cotidiano" e "a função pública da arquitetura".
Habitualmente esses termos coexistem neutros. Porém aqui, "monumentalidade x cotidiano", isto é, versus e contrapostos, caixa alta em meio de frase, não são mera ocasionalidade gráfica. Instauram um forte confronto entre os conceitos, que aperfeiçoa o tema, em certeiro e contundente questionamento. Leio, finalmente, chamando atenção para os “dois pontos: a função pública da arquitetura", como um arremate conciliador, que os paulistas veriam, com todo o respeito, como virtude tipicamente mineira. A preposição "da" atropela e transforma a função pública em algo inerente à natureza da Arquitetura, o que não é verdade. Então, estamos salvos: calma, não há problema. Não há conflito. Nem tão monumentalidade, nem tão cotidiano, se formos re-publica-nos.
“Monumentalidade” aponta, sobretudo, para obras artísticas de grandes dimensões. À parte os protomonumentos exploratórios em aço, as primeiras estruturas em Chicago e Nova Iorque, o “Cristal Palace” e a “Tour Eiffel”, século XIX ainda, ela não ocorre na fase heróica inicial do Movimento Moderno, mais preocupado com o social. Surge de fato mais tarde, no encontro da Arquitetura Moderna, já, então, em evidência e prestigiada, em namoro com as ditaduras, na primeira metade do século XX. Benito Mussolini, Adolf Hitler e Joseph Stalin foram cortejados pelos nossos mestres. São conhecidas as investidas delirantes ("Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução") de Le Corbusier sobre Mussolini, Stalin e Getúlio Vargas e seus conselheiros. Mesmo Frank Lloyd Wright e Walter Gropius, com “seu espaço vital” e seus inventos salvadores oferecidos à Deutsche Werkbund, salvo pelo nazismo, os demiurgos sempre sonharam com ditadores ou governos fortes capazes de impor suas idéias à não importa quais sociedades. Inclusive mestre Oscar Niemeyer. Aqui no Brasil a Arquitetura Moderna foi parida no colo da ditadura, com Le Corbusier e seus jovens ajudantes como parteiros, desde o início desenvolta, monumental e um tanto ingênua, discursos ao povo, negócios, como Deus é servido, ao poder e amigos.
Portanto, o monumental vai revelar-se mais do que uma santa opção pelo grande. Vai ser celebração auto-referente do vencedor, de governos e igrejas parceiras em obras de arte e avenidas, sedes de governo, catedrais palácios e mansões, evidentemente, sempre com dinheiro público, explicito, ou sonegado, que, insuficiente, faltará para os investimentos sociais. Na Itália dos anos 60 e 70, chegaram a propor-nos uma volta histórica ao espaço urbano do século XIX, leiam e vejam Aldo Rossi, Vittorio Gregotti e outros, na verdade o desenho fascista gravado nas nossas retinas e que o novo mundo queria esquecer. Salva-se, nas alturas, Angelo Mangiarotti. Na Alemanha dos anos 90, as normas para reconstrução de Berlim, traçadas pelo parlamento, pasmem, estabeleciam diretrizes para a construção de edifícios limitados em altura, para recuperar o "notável espaço urbano europeu que a América jamais entendeu”. Edifícios altos e alta densidade, que nos ensinaram, passaram a ser considerados coisa de metrópole subdesenvolvida e inculta, salvo as ricas exceções precursoras e bem sucedidas da América, por isso, confirmadoras da regra. O vezo autoritário congênito foi longe: no mínimo 20% da área total construída são obrigatoriamente destinados à habitação?
A verdade inelutável é que o tema é essencialmente político. Livraram-nos, habilmente, de mirá-lo, tomando o adjetivo público como se fosse sinônimo perfeito de político. Longe disso, eles são conceitualmente indiferentes e nos enganam. Não se superpõem a não ser que política seja, de verdade, "a arte de bem governar os povos", que está no dicionário como um terceiro corolário metafórico dos conceitos principais, antecedentes, complacentes acolhedores de falcatruas. Do Aurélio, os significados diretos de política conduzem aos conceitos de "Estado, ação governamental, regulação de negócios econômicos, proselitismo partidário". Em alto e bom som: público é o que pertence ao povo, para quem e em nome de quem a política seria exercida. "A arte e a virtude do bem comum", como agradava dizer ao governador Montoro, mas não está no dicionário. No cotidiano dos jornais a política é suja. Ficamos entre gracejos do tipo "errar é humano" e o retorno dos bilhões roubados, para serem investidos em infraestrutura e projetos sociais, com os Poderes da República saneados e os políticos rastaqüera e os "criminosos" na cadeia, no que ninguém acredita. Tristes e indignados, haveria controvérsias e inabilidades de tal porte em nossos discursos, que dificilmente teríamos consensos e chegaríamos a tempo de falar de Arquitetura.
Voltemos, pois, à raiz do tema, com algumas observações, como se estivéssemos numa simples conversa. Evoco alguns pensamentos incompletos e, creiam-me, despretensiosas considerações em que consigo apoiar-me, no prazer da Arquitetura e seu ensino. O esforço pela manutenção do trabalho cotidiano organizado e lúcido é forma de resistência política:
1 – "Certos povos perdem-se em seus pensamentos; mas para nós, Gregos, todas as coisas são formas". Retemos apenas suas relações; [...] templos de sabedoria e ciência, que podem bastar a todos os seres razoáveis. Esta grande arte requer uma linguagem admiravelmente exata. O próprio nome que a designa é também, entre nós, o nome da razão e do cálculo". Fala do Sócrates de Paul Valéry, quando se assume "construtor" no meio do Eupalinos (3), acompanha-me desde os anos 50, e deu-me paz. Aos poucos aprendi que forma é matéria, que nos ensina a dominá-la e usá-la, e senti mais paz.
2 – Nós Arquitetos estamos condenados ao prazer de pensar e re-pensar a forma e sua invenção, isto é, o processo de sua emersão a cada novo projeto. Fenomenologicamente. Idéia fixa desde a Faculdade, depois, obsessão ascensional, resultou em minhas teses, pela USP, de Doutorado em 1972 e de Livre Docência em 1982, coisa do passado.
Cito Valéry, a propósito de matéria indefinível achada à beira mar, sobre a arte, produto da mente, e sobre o trabalho do tempo: "Quem dos séculos dispõe, muda o que quer naquilo que quer", mas, em arte, "é como se os atos, iluminados pelo pensamento, abreviassem o curso da natureza; e pode-se dizer, com toda a segurança, que um artista vale mil séculos, ou cem mil, ou muito mais".
3 – Por isso lembro, à exaustão, como apoio e descanso, um dos notáveis juízos de Giulio Carlo Argan. Aluno de Lionello Venturi, ambos grandes professores de História da Arte do século XX, foi membro atuante do Partido Comunista Italiano, fato significativo naquele momento, na Itália ferida pelo fascismo. Democrata exemplar, duas vezes eleito prefeito de Roma, o que o respalda como intelectual responsável, de exemplar coragem em seu tempo e íntegro, ao viver, tão intensamente, a cidade contemporânea na história. Ei-la:
"É Arquitetura tudo o que concerne à construção e é com as técnicas da construção que se institui, e organiza, em seu ser e em seu devir, a entidade social e política que é a cidade" (4).
Ele vê a cidade como fato, como movimento. Esta frase emociona: é uma porrada evidente e simples. Diz corajosamente que a construção é tudo. Ela cria vida social que sem ela não seria possível. É inevitável compará-la à outra, muito usada entre nós, de mestre Lúcio Costa, que me parecia elitista, não dava conta do conceito e coloca a Arquitetura como dependente subjetiva de uma certa elevada intenção plástica ou estética. Foi muito difícil analisá-las em sala de aula. Dai, a epígrafe. Em São Paulo, não passava. É Lina Bo Bardi que, em 1951, no primeiro número da revista Habitat, a primeira grande homenagem a Artigas, então com 34 anos, reúne pela primeira vez, de igual para igual, o popular e o erudito e mais, o popular como exemplar.
4 – Encanta-me o rigor axiológico do professor Miguel Reale quando diz que na crise dos modelos e ideologias do século XX, remanesce a pessoa humana como "valor fonte de todos os valores", afinal "outros há como, por exemplo, os da liberdade, da igualdade (isonomia), da justiça, do bem comum, da privacidade, os quais, no fundo, assinalam progressivas conquistas da ética", bem como, a democracia e o mais recente, a ecologia. Cito o artigo "A ecologia e seus riscos" para acesso a toda a beleza do texto (5).
5 – Em Arte não há censura. Mas, a Arquitetura, a maior das artes, é a Arte de Construir ambientes para atender aos desejos das pessoas. (Para mim, há anos, a expressão é desejo das pessoas. Programa de (necessidades) de projeto são na origem desejos conflitantes conciliados em luta por recursos para se transformarem em programas e projetos políticos e, finalmente, Cidade Real.) "Ora, de todos os atos, o mais completo é o de construir. Uma obra exige amor, meditação, obediência ao teu mais belo pensamento, invenção de leis pela tua alma, e muitas outras coisas que ela arranca maravilhosamente de ti e que não suspeitavas possuir" (6). É assim que a Arquitetura inventa linguagens e significados novos e faz Cultura. Ela trabalha com estruturas de reprodução da vida social feita de contrastes, desigualdades e injustiças que mobilizam nações em guerras e exercem forte pressão por projetos ambientais inteiramente novos, formas próprias de apoio, expressivas das transformações, em amplitude internacional.
6 – Nós só existiremos e cresceremos como arquitetos se formos capazes de realizar durante nossas vidas muitos contratos de projetos de arquitetura e acompanhamento das obras, levados efetivamente à construção. Sem obras não somos nada. Decorre como pauta importante junto às nossas organizações profissionais ampliar, de maneira democrática e ética, para o maior número de arquitetos, as possibilidades de prestação de serviços profissionais à sociedade. Devemos tudo fazer para que sejam aperfeiçoados e implantados, urgentemente, critérios transparentes de seleção por mérito, e ampla e equânime distribuição dos projetos a contratar, combatendo todas as formas de atravessamentos e privilégios, sobretudo, a utilização maliciosa de Fundações e Institutos ligados a universidades e partidos políticos. Precisamos derrubar reservas de mercado em Brasília, em São Paulo, em Curitiba e em outros lados, inclusive de antigos ganhadores de concursos que se julgam intocáveis, e órfãos de arquitetos mortos que passam de humildes colaboradores a herdeiros vitalícios e universais das artes e do saber do mestre, que faturam: crime autoral, falsidade ideológica e estelionato. Há que combater, ainda, colegas que em função pública e cargos de confiança, sem mais direitos, se adjudicam projetos subtraídos à classe, obviamente os mais importantes. Essas práticas constituem uma agressão a todos os arquitetos, é vitória dos bárbaros, uma verdadeira afronta à democracia, e comprometem o exercício aberto e livre do mercado de trabalho profissional do setor público. Mais grave é que a falácia produz má arquitetura, com fortes conseqüências negativas para a cultura e o atendimento às necessidades sociais. Como disse Malraux, no final dos anos 60: "Para melhorar a Arquitetura Francesa é preciso mudar a maneira de contratar os arquitetos". Os governos renovados têm o dever de verificar, a cada passo, e com maior razão do que qualquer cliente privado, a utilidade e interesse público dos projetos em curso, respeitadas as leis nº 6866 e 9610/98.
7 – Precisamos pressionar todas as instâncias do poder para que promovam programas de projetos com a mais ampla e cientificamente organizada participação das pessoas, cujas prerrogativas se transformem em desejos conciliados e, em seguida, em programas de necessidades sociais para projetos e, finalmente, serem, inscritos nos orçamentos públicos como demanda política e construídos.
Curto comentário final
No “Editorial” de convocação destes encontros há menção a depoimento, nos anos 60, de mestre arquiteto Afonso Eduardo Reidy a Alfredo Brito e Ferreira Gullar para o Inquérito Nacional de Arquitetura. Sem mais informação do que capto daquele texto, não posso, entretanto, deixar de esboçar um curto comentário: não parece razoável nos prendermos a quaisquer fragmentos visíveis do passado como ponto de partida para fixação de identidade, caminhos ou continuidades para a nossa arquitetura. Como na transmissão dos caracteres dos seres vivos, e não por acaso, aqui também os genes são invisíveis. A legitimidade genética do ambiente construído emerge da legitimidade com que sejam trabalhados os desejos das pessoas e a vida cotidiana, que inventam, com construção rigorosa o seu espaço, sobre o território multiforme, extremamente complexo e diversificado do País, fazendo rica e verdadeira História. Precisamos vivê-los e conhecê-los, para encontrarmos o nosso lugar e papel na construção do Estado, atentos e abertos ao que está sendo gestado em liberdade sábia e entrópica pela sociedade, além da visibilidade óbvia, Cultura. Nada a ver com formalismo fácil, passadista, equivocado e sem vida.
Escolhi para ilustrar minha sobrevivência nessa trama que descrevo e envolve o exercício da arquitetura no Brasil, algumas imagens e pequeno comentário sobre o Plano Piloto de Brasília, de 1957 e sobre o Projeto para a Cidade Nova de Caraíba, hoje Pilar, no município de Jaguarari BA, de 1978. Ambos concebidos sob conceito de Diagramas, diagramas lineares, fato de que só vim a ter maior consciência em 1999. Um terceiro projeto é o "Progetto Bicocca" em Milão, concurso fechado, internacional, para 8 arquitetos italianos e 12 estrangeiros. Diagrama Quadridimensional, em bloco. Penso que demonstro com dar suporte ao desenvolvimento em liberdade, sensível às transformações inerentes, sob tensão, ao cerne, à natureza dos humanos, das pessoas.
Plano Piloto de Brasília, 1957 (7)
O país tinha aproximadamente 60 milhões de habitantes e a população urbana acabava de atingir a metade da população total, isto é, podíamos dizer que o Brasil inaugurava a sua história de nação urbana e moderna. Constituída, por iniciativa dos arquitetos uma equipe multidisciplinar, um tanto incrédula, passamos ao estudo da massa de análises do completíssimo Relatório Belcher, abrangendo ampla região escolhida, no território nacional, para a solene implantação de Brasília, a nova Capital do Brasil.
Imbuídos de toda a grandeza e responsabilidade que assumíamos, demos início à nossa investigação e reflexão sobre a cidade e a sociedade humana na história, à procura de compreender o que seria inventar a “figura urbana”, como dizíamos, para futura capital de um país do Novo Mundo, à altura e representativa dele, com sua índole, natureza e peculiaridades, um Brasil em esperada e audaciosa ascensão.
O que fazer? O edital pedia projeto para uma cidade administrativa de 500.000 habitantes. Logo percebemos que a população inicial da cidade pronta, com funcionários federais e seu séqüito de apoio, atingiria aquele número. Provavelmente, a população da cidade, portanto, deveria crescer ao triplicar a população do país nas décadas seguintes, em 30 ou 40 anos.
A teoria urbana "oficial" limitava a cidade para se manter “humana”. Porém, ao analisarmos o processo de assentamento mais favorável naquelas condições, optamos por pares de módulos da ordem de 30 mil habitantes, dimensionados em função de fração indeslocável de crianças de 0 a 3 anos e adolescentes até 14 anos, de pequeno raio de ação independente, 1° grau.
Acima desse corte a população principal transformando-se em adulta conviveria em um único grande centro diversificado de escala metropolitana contendo escolas de 2° grau, universidade, administração federal, o Centro de Comércio e Serviços, hotéis, museus e serviços culturais, Centro Esportivo Metropolitano, tudo em torno a um parque central de 19km², apto a receber um sistema de transporte rápido de massa, em nível, semi-enterrado e elevado na área central, a partir de um sistema viário linear curvo conformado em nível ao lago, para aproveitar todas as oportunidades da aglomeração, provavelmente inevitável, em termos de máxima eficiência de acessibilidade e transporte urbanos.
Tudo para propiciar a cidade vertical, aproximando usos por concentração redução econômica de deslocamentos e infraestrutura, pensando necessidades, investimentos, quantidades de espaço e forma, impondo-se estudos para definir posteriormente espaços sociais e públicos de tipo novo, compatíveis com os novos sistemas de transporte, o provável desaparecimento da rua ocidental, destacando-se propostas referenciais como as de Alison e Peter Smithson e do Team X, e da Unidade de Habitação de Marselha para nova organização de comércio e serviço locais. Afirmamos com medo de ser apedrejados, que "a cidade é um organismo vivo" e propúnhamos que pudesse crescer sem sufocar a área central, pela periferia circundante, devendo prevalecer a imagem da estrutura vertebral de uma criança que cresce à vontade. Ao contrário, com o progresso técnico o lago seria transposto no futuro e o crescimento além lago permitiria uma expansão gráfica ilimitada. Em 1965, chega ao Brasil o livro revolucionário de Jane Jacobs, Morte e vida das grandes cidades americanas”, editado em 1961, com frase idêntica, mas propondo uma volta romântica a unidades sociais e geográficas controladas, limitadas, como vilarejos, e integradas, o que nos parecia inadequado, como sugeríamos, a partir do que se conhecia como fracasso das "Unidades de Vizinhança" e soluções semelhantes, largamente experimentadas no pós-guerra, a partir de 1945.
A cidade de Caraíba (Pilar), Jaguarari BA, 1978 (8)
De apoio à mineração de cobre, reserva limitada à exploração por 20 anos. Concorrência entre convidados, para confronto de conceitos, e procedimentos de projeto, etapas, produtos, prazos e preços. Recebemos apenas o mapa da planície chapada e infraestrutura industrial, sem curvas de nível, com uma relação de empregos classificados por renda e função. Os estudos para caracterização dos fundamentos sociais e econômicos das atividades de implantação e posterior operação urbana, pela equipe, duraram 1 ano, tempo em que a cidade foi sendo imaginada e conceituada, localização, critérios construtivos, infraestrutura, clima, habitação, níveis de oferta de serviços e emergência da forma urbana. Sugerimos pirâmide social etária dinâmica de 15 000 a 20 000 habitantes, sobre malha compacta, para mínimo deslocamento na região semi-árida e quente, com centro denso para solteiros não confinados e dispersos entre 20% das famílias que o preferissem. O sistema urbano constituído por agregação modular livre-monitorada, sobre uma trama-conceito básica, com reserva de área para população não empregada, de livre acesso, dimensionada em 10% da população total.
Projeto Bicocca, em Milão, Itália, 1987 (9)
A Bicocca era uma imensa área industrial e histórica a 5 km do centro de Milão, pertencente à Pirelli, murada, obsoleta, abandonada e degradada. O aproveitamento era muito baixo, 0,4. Seu desenvolvimento para padrões de utilização mais altos e compatíveis com as possibilidades, mercados e atividades atuais era politicamente difícil. A Prefeitura e a região da Lombardia não permitiam modificar os antigos pactos urbanos de um bairro histórico. Era preciso partir do zero, refuncionalizar e requalificar implantando novos usos, ocupações e aproveitamentos adequados. Não apenas era preciso inventar novos sistemas de espaços para novas funções urbanas, mas pensar a operação urbana e as possíveis maneiras de atuar dos diversos agentes. Era preciso negociar com o poder público e repactuar direitos com a sociedade milanesa oferecendo em contrapartidas aceitáveis, como um grande parque e áreas verdes que faltavam a Milão, limitação da ocupação a 20%, com acessibilidade e fluxos eficientes, aproveitamento das potencialidades e desenho. Pediam-nos projeto para um núcleo especializado em tudo o que se referisse à pesquisa, produção e comercialização de tecnologia de ponta, ambicioso e sofisticado.
Pesquisamos novos padrões de área verde, de rua; diversificados edifícios teriam a altura de vinte ou mais andares. A maioria dos arquitetos que participaram do concurso detalhou programas e projetos de edifícios fixos como se fossem pedidos de um empresário atual. Até hoje continuo pensando que a nossa colocação foi muito avançada. Não se pode fazer projetos de edificações detalhadas, quando se sabe tão pouco sobre as futuras atividades, inter-relações e dependências, características organizacionais, natureza dos fluxos ou natureza e trânsito de informações. É preciso desenho aberto à contribuição de todos os agentes, à medida que se implanta.
Foi então que me pareceu importante identificar os pontos fixos do projeto: os limites da gleba, os investimentos em infra-estrutura, com a grande rodovia transeuropéia (Madrid-Constantinopla) ao sul, futuro metrô e estrada de ferro a leste, a limitação aérea pelo aeroporto militar vizinho a dezessete pavimentos, os edifícios e ambientes de preservação obrigatória, muitos originários da proto-implantaçao industrial de Milão, verdadeiras relíquias, e a partir daí, fazer um projeto isonômico de máxima liberdade. Em virtude da baixa altura dos edifícios milaneses – sabíamos que a Prefeitura de Milão não veria com bons olhos propostas de densidade e edifícios excessivamente elevados. Estudamos e adotamos um aproveitamento de 2.400.000m²/80ha e uma densidade global média bruta de 240.000 a 300.000 pessoas, ou 3000hab/ha. Era já uma revolução, bem acima do que esperavam. Estabelecemos uma altura média em torno de doze pavimentos. Dentro desse volume edificado eram equacionadas e liberadas todas as permutas, para otimizar o empreendimento e levá-lo ao sucesso, inclusive para a localização pontual dos usos do solo finais, características arquitetônicas e densidades, com decisiva participação dos empresários imobiliários e seus arquitetos, que representam e respondem ao imenso mercado de usuários potenciais.
Para a comunicação do projeto estabelecemos:
1. "Notas para uma teoria da operação urbana". Para encontrar as conseqüências, diretrizes e medidas operacionais para transferência da área de 80 ha. a milhares de novos usuário especiais ou especializados e seu séqüito de apoio, indefinível no momento do projeto, a ser construídos em 20 anos ou mais, por etapas, em suas relações dinâmicas com a cidade.
2. "Notas para uma teoria do planejamento da área". Delimitando os diversos problemas relacionados com o sistema viário intra-área e extra-área, acessibilidade, transportes, pedestres, estacionamentos, áreas verdes, índice de ocupação e aproveitamentos negociáveis, zoneamento evolutivo, conceitos relacionando o projeto a Milão e sua historia.
3. "Nota para uma teoria do Projeto". Para permitir o desenvolvimento ao mesmo tempo organizado, ordenado e livre das arquiteturas com a máxima possível participação dos usuários. Não desenhamos massas, volumes edificados, mas uma malha tridimensional de apoio à dinâmica dos agentes traduzida em algumas imagens possíveis por computador Matra 1986 raro na ocasião em São Paulo. Fizemos diversas simulações para demonstrar estarem fora de alcance discutir, definir ou desenhar os perfiz da superestrutura do Projeto que seria privilégio e responsabilidade única dos promotores, arquitetos e universos de clientes dotados de desejos, projetos e capacidades próprias de realizá-los.
Digo sempre, com muita ênfase, que as cidades são arquiteturas; também costumo dizer, e venho insistindo nisso por razões pedagógicas, que arquitetura são conjuntos de objetos urbanos habitáveis e, portanto, cidade. Não há cidade ou sociedade urbana sem arquitetura. Não há conceitos urbanos se eles não são tornados corpo pela edificação. Tudo é arquitetura e matéria.
Não penso que se possa interpretar o que estou dizendo como algo desinteressado do problema global da cidade; para mim é evidente que pensar arquitetura é pensar construções e edificações que se destinam a atender necessidades urbanas, do homem urbano, das pessoas, e isso impõe a discussão imediata de todas as implicações, exigências e conseqüências da sua efetivação. Edificar implica pensar o todo.
Não acho nada adequado impor índices e gabaritos ao processo urbano, o que acontece freqüentemente. O processo será impulsionado pela discussão cotidiana sobre o território e sua infraestrutura histórica, liberando e apoiando sob consensos a emergência de atividades e de cada edificação. Expressando melhor, a cidade começa quando pessoas decidem morar no mesmo lugar; surgem necessidades práticas e necessidades de edificação produzindo espaços e significados novos de natureza social e política. Se construir é necessário e preciso – para abrigar, construir como, onde, por quê? A construção traz consigo essas perguntas e não existe, dissociado da resposta a elas, um conceito anterior, abstrato de cidade.
Foram premiados Vittorio Gregotti, Isola & Gabetti, e Gino Valle. Quando visitamos o terreno, três meses antes da entrega, o projeto de Gregotti estava pronto e embalado, com 48 pranchas. Ele deveria ganhar. O Concurso foi antes uma tomada de opinião internacional para dar-lhe respaldo. Nenhum dos estrangeiros foi premiado. Foram convidados Gae Aulenti, Carlo Aymonimo, Mario Botta, Henri Ciriani, Giancarlo De Carlo, Isola & Gabetti, Frank O. Gehry, Gregotti Associati, Joaquim Guedes, Herman Hertzberger, Richard Méier, Rafael Moneo, Gustav Peichl, Renzo Piano, Aldo Rossi, Justo Solsona, Oswaldo Mathias Ungers e Gino Valle tendo abandonado o concurso os arquitetos James Stirling e Tadao Ando.
Soubemos pouca coisa na ocasião. Havia notícia de que Manfredo Tafuri membro do júri teria perguntado: “Mas, por quê vocês convidaram Joaquim Guedes?” O que nos deixou pensativos e chateados. O que significava isso? Recentemente, quando da visita do professor Bernardo Secchi a São Paulo, organizador do concurso e presidente do júri, em encontro inesperado ele revelou que se lembrava perfeitamente de nosso projeto, que lhe parecia claríssimo do que duvidamos. E disse que “seu relatório de presidente do júri recomendava que o Pólo Tecnológico Bicocca fosse construído com os projetos do Gregotti e o nosso. Gregotti exigiu que fosse excluído o trecho que nos mencionava por que isso lhe poderia trazer problemas. Não fiz perguntas. Fiquei perplexo, feliz e chateado. Essa história eu ouvi do próprio Secchi, após sua conferencia na 6ª BIA e a conto após 18 anos para mostrar que concursos são assim. Voltando a São Paulo trouxe-me seu último livro com uma dedicatória alusiva. Entendi que a pergunta de Tafuri só poderia ter tido, ao contrário do que pensávamos, um sentido simpático de indignação”.
notas
1
O presente artigo é uma versão escrita e resumida de conferência proferida no dia 18 de março de 2006 nos “Encontros M.D.C.”, ocorridos em Belo Horizonte.
2
Suponho que se refira a Karl Marx, c. 1850. Contudo, recentemente procurei o professor Jacob Gorender, mas ele não se recordava.
3
VALERY, Paul. Eupalinos ou o arquiteto. São Paulo, Editora 34, 1996.
4
ARGAN, Giulio Carlo. "Arquitetura e cultura", In: História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1993, pp. 243.
5
REALE, Miguel. "A ecologia e seus riscos". O Estado de São Paulo, p. 2, colunas 3-6. São Paulo, 23 jun. 2001. Artigo disponível em http://pensadoresbrasileiros.home.comcast.net/MiguelReale/a_ecologia_e_seus_riscos.htm.
6
VALERY, Paul. Op. cit.
7
Concurso Nacional para o Plano Piloto de Brasília, 1957. Projeto dos arquitetos Liliana Guedes, Domingos T. de Azevedo Neto, Carlos Milan e Joaquim Guedes arquitetos e equipe. Participação do Prof. Candido Mendes de Almeida.
8
A cidade de Caraíba (Pilar), Jaguarari BA, 1978. Projeto do arquiteto Joaquim Guedes e grande equipe.
9
Concurso internacional, fechado, de projeto urbano e arquitetônico para um Centro Tecnológico Integrado, em área de 80 ha, promovido pela Província da Lombardia, Prefeitura de Milão e Pirelli SpA. Projeto: Arquiteto Joaquim Guedes. Participação especial de Lina Bo Bardi, Roberto Sambonet. Colaboração, Madalena Ré, M. Tanaka, Bruno Padovano, Hector Vigliecca e equipe.
sobre o autor
Joaquim Guedes é arquiteto e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.