“Berlim torna-se imagem”
Andreas Huyssen
“Não desistirei até encontrar a Potsdamer Platz”
Seguindo a linha do muro, sem esperanças caminha o “velho contador de histórias berlinense” (2). Ao seu lado, com a mão sobre seu ombro, inutilmente busca consolá-lo, um anjo. Capaz de escutar seus pensamentos, permite também a nós espectadores, conhecê-lo: “Não encontro a Potsdamer Platz”.
A paisagem por onde caminham não poderia ser mais desoladora; um vasto campo, preenchido apenas com um tipo de mato urbano duro, torna ainda mais agudo o vazio que ecoa da questão. Incrédulo com o que vê, ou melhor, com o que não mais é presente e já não pode encontrar, prossegue o velho em sua busca:
“aqui, não pode ser. O café Josti ficava na Potsdamer Platz, ia lá as tardes conversar, tomar café e observar as pessoas. Fumar um charuto no Loese & Wolf, tabacaria de renome... Bem aqui. Não pode ser a Potsdamer Platz! Ninguém por perto a quem perguntar. Era um lugar...cheio de vida. Bondes, ônibus puxados por cavalos, e dois carros: o meu e o da loja de chocolates. A loja Wertheim também era aqui [...] Aí, surgiram as bandeiras... aqui... o lugar ficou cheio delas...e as pessoas não eram mais simpáticas, nem a polícia”.
A passagem narrada acima é uma das tomadas mais intrigantes de Asas do Desejo, premiado filme de Wim Wenders, finalizado em 1987. O que se vê é Berlim, especificamente Potsdamer Platz, praça que era o epicentro cosmopolita berlinense nas primeiras décadas do século XX. Dividida em duas pelo muro que separava leste e oeste da cidade, reduzida a um imenso vazio urbano que as bombas da Segunda Guerra Mundial deixaram. Estamos em tempos de Guerra Fria; a personagem em questão caminha pelo vazio ao lado de Cassiel, o anjo que lhe escuta, mas que nada pode fazer para lhe poupar o desconsolo da impossibilidade de encontrar aquele lugar que tantas memórias lhe desperta. O velho e lúcido homem relembra com pesar a mesma Berlim que inspirara os expressionistas alemães em suas cenas urbanas; lugar das vanguardas artísticas do início do modernismo, palco da multidão da metrópole industrial.
Ernest Kirchner, expoente do modernismo alemão, retratou, o que segundo o crítico Roland März (3), pode ser entendido como a cena de rua mais importante de seu tempo; Potsdamer Platz durante a noite. Neste óleo de 1914, cujo título é o próprio nome da praça, vemos em primeiro plano, duas prostitutas; a primeira, mais nova, traja-se de um azul reluzente, enquanto a segunda, mais velha e sóbria, traz o rosto coberto por um fino véu transparente. Ao fundo, dois prováveis clientes. Atrás deles, surge a arquitetura que desenha o espaço; ao centro a Potsdamer Bahnhof, à sua esquerda o café Piccadilly e à sua direita a Pschorr-Haus. É curioso que um arquiteto de formação como Kirchner, ao retratar uma praça, não faça de seu motivo primordial os edifícios que a conformam. Antes, para o pintor, a praça parece extrair sua mais significativa expressão do movimento conflituoso e impressionante da metrópole (4).
A pintura de Kirchner ilustra bem os pensamentos do personagem de Wenders; Potsdamer Platz era então “um lugar cheio de vida”, repleta de cafés e bares noturnos, abarrotada de ônibus e bondes, um lugar onde a mistura característica das aglomerações metropolitanas encontrava espaço para suas contradições intensamente poéticas e expressivas.
Kirchner estudou arquitetura em Dresden e posteriormente pintura em Munique. Em 1905, junto com mais três colegas, Karl Schmidt-Rottluff, Fritz Bleyl e Erich Heckel, formou o grupo “Die Brüke” (A Ponte), importante vertente do expressionismo alemão (5). Se a obra do artista conjuga-se com a praça numa imagem representativa das modernas vanguardas alemãs, talvez o destino que lhe coube possa nos ajudar a ilustrar aquilo que ocorreu em Potsdamer Platz: por volta de 600 obras do pintor foram destruídas na ocasião da famosa exposição nazista “Entertate Kunst”, ou “Arte Degenerada”, realizada em 1937, cujo objetivo era, como sabemos, banir a arte moderna, e com ela, suas aspirações à revolução moral, estética e política (6). Em 1938, Kirchener suicidou-se.
As palavras do personagem de Wim Wenders nos dão a dimensão do destino que coube a Potsdamer Platz: “E aí, surgiram as bandeiras... aqui... o lugar ficou cheio delas... e as pessoas não eram mais simpáticas, nem a polícia (...)”. Contudo, prossegue;
“Não desistirei até encontrar a Potsdamer Platz”.
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Parece ter sido esta a questão – encontrar Potsdamer Platz – que fora feita aos arquitetos e urbanistas quando, em 1991, Berlim volta a ser capital do estado alemão reunificado. A praça, uma ampla área que vai da Filarmônica e da Staatsbibliothek de Scharoun até a linha por onde passava o muro, conformava um amplo espaço vazio (7), e a partir de então, constituiria ponto fundamental de interesse na dinâmica urbana da cidade reunificada, pois era justamente um dos lugares que marcaria, não apenas no plano físico, mas de maneira significativa o plano simbólico, a re-ligação entre leste e oeste.
Ao lado da primeira, desvela-se uma segunda pergunta: o que significava, reconstruir Berlim e redesenhar Potsdamer Platz nos anos 90? A arquitetura novamente fora chamada para aquilo que parece ser, a despeito de suas aspirações revolucionárias, seu destino inerente; colaborar na construção de ideologias econômicas e políticas.
Potsdamer Platz foi um dos pontos mais importantes de um amplo e intensivo projeto de reestruturação urbana para a nova capital alemã, que contou com diferentes propostas submetidas a uma série de concursos, elaboradas por diferentes arquitetos, e que rendeu uma fortuna crítica não menos diversa (8). À medida que este “vazio”, que é um espaço físico pronto a receber as mais novas propostas urbanas, mas também uma tabula rasa conceitual capaz de colocar em debate as mais díspares e atuais teorias sobre a cidade, é preenchido, visualiza-se a forma do “discurso urbano” por completo e em toda sua complexidade, como prática e teoria.
Para Berlim, e em especial, no projeto para PP, buscava-se equacionar a memória e a história (impregnadas tão intensamente na paisagem berlinense e com tal dramaticidade que podemos afirmar não haver exemplo semelhante de cidade que tenha guardado um testemunho tão preciso do século passado), com o novo, o futuro e o progresso, pois o que estava em jogo era a reinserção da Alemanha como país de ponta dentro do capitalismo global, e logo, a inclusão de Berlim no mapa das mais importantes capitais européias. Por tudo isso, nos parece que o projeto de reurbanização de Potsdamer Platz é capaz de trazer a superfície as mais pertinentes questões que concernem o discurso urbano contemporâneo, e se converterá, com o passar dos anos, num caso exemplar de suas implicações na paisagem “real”. Um paradigma, talvez, que demandará outros estudos, que abordem outros aspectos também envolvidos nesta nova paisagem.
Aqui buscamos apenas levantar a idéia de que junto com o “evento” PP atualiza-se um debate que encontra sua origem na própria gênese da disciplina urbana, a saber, os embates entre uma visão progressista de cidade face às perspectivas culturalistas. Contudo, como veremos, em outro plano; não mais as perspectivas urbanas que marcaram o pensamento dos CIAM, cujo objetivo utópico era possibilitar, através do progresso tecnológico e da racionalização do espaço urbano um outro tipo de sociedade; nem tão pouco a contra crítica contextual, rearticulada nos anos 60, que buscava “impedir que tanto a arquitetura quanto a cidade fossem infestadas pelas forças onipresentes do consumismo megalopolitano” (9). O que se torna transparente em Potsdamer Platz é a permanência da oposição entre a reconstrução da história e a projeção do futuro deslocada para a superfície da imagem.
Se a imagem se impõe como campo de articulação do discurso urbano contemporâneo por excelência, talvez através dela enxerguemos com maior nitidez, uma vez transposto os limites de sua superficialidade, por onde este caminha. Outras formas de “imaginar” o urbano então são trazidas à baila para colocar sob o devido foco a questão. Wim Wenders muito bem já notara, em entrevista ao arquiteto Hans Kollhoff, a importância da imagem para as cidades contemporâneas;
“Creio que as cidades estão tão atreladas às imagens, tão expressas através de imagens, que a linguagem torna-se insuficiente” (10).
A perspectiva de um outro campo da arte, campo este que já foi comparado à arquitetura por Walter Benjamin, o cinema, parece ser o reflexo invertido das imagens propostas pelos arquitetos: “Do ponto de vista urbanístico” diz Wenders;
“as partes mais atrativas de uma cidade são precisamente aquelas zonas onde ninguém fez nada. [...] Considero a qualidade de vida de uma cidade na proporção direta da possibilidade de que existam estas lacunas de planejamento”.
“Para os arquitetos”, responde Kollhoff; “esta é, naturalmente, uma opinião deprimente”. Ao contrário do cinema, da arquitetura e do planejamento urbano espera-se um ponto em definitivo, uma imagem encerrada, uma identidade. As palavras do cineasta alemão ganham mais sentido quando confrontadas com as considerações de Huyssen, evidenciando o quão afastado está o discurso urbano contemporâneo de uma escritura crítica da cidade. “A noção de cidade como signo”, argumenta o autor:
“permanece tão pertinente quanto antes, mesmo que agora talvez num sentido mais pictórico do que num sentido mais textual. Mas essa mudança da escrita para a imagem traz uma significativa inversão. Para ser bem claro: o discurso da cidade como texto, nos anos 1970, era sobretudo um discurso que envolvia arquitetos, críticos literários, teóricos e filósofos determinados a explorar e criar novos vocabulários para o espaço urbano depois do modernismo. O discurso atual da cidade como imagem é o dos “pais da cidade”, empreendedores e políticos que tentam aumentar a receita do turismo de massa, convenções e aluguel de espaços comerciais” (11).
A imagem de que fala Wenders é imagem do cinema. De maneira diversa, a imagem de que fala Huyssen é aquela para o qual a arquitetura é chamada em colaboração, pois se como argumenta Jameson, a lógica do capitalismo tardio é cultural, tão triste é o destino de uma arte de massas que sempre foi levada a constituir a imagem ideológica dominante.
Em Potsdamer Platz não poderia ser diferente. Tendo que responder às demandas de representação do Estado alemão reunificado de um lado, e do outro lado, dos empreendedores dos projetos, corporações multinacionais do capitalismo de ponta do porte da Sony Corporation, DaimlerBenz e Brown Bovery, os projetos arquitetônicos apresentavam duas variantes; ou seguiam os padrões morfológicos da Berlim tradicional, ou buscavam construir a imagem da high tech Berlin. Falsa oposição, pois tanto de um lado quanto de outro, guardadas respectivas variantes, o objetivo era o urbanismo-turístico, cuja carga programática concentra-se nos megacomplexos de entretenimento e consumo, e o apelo ideológico no mix cultural (12). Ou, para utilizarmos as considerações bem mais ácidas da socióloga Sharon Zunkin, o objetivo deste tipo de projeto urbano contemporâneo resume-se na conformação de um espaço que encontra seu modelo recalcado nos parques temáticos de entretenimento (13).
O projeto que seria selecionado então, deveria definitivamente completar esses vazios que se somavam ao da cidade, preencher os anseios de representação nacional e definir a possibilidade para o futuro. Nada semelhante aos “vazios e superfícies inacabadas” nos quais Wim Wenders captava “impressões divergentes” e extraia “relações históricas”. A nova Potsdamer Platz deveria representar algo preciso; a imagem da nova Alemanha, e não poderiam sobrar dúvidas ou conflitos aparentes. Com efeito, o cinema parece trazer mais espessura à discussão do que os projetos arquitetônicos.
Por tudo, conclui Huyssen, um debate “equivocado”. Tanto os “êxtases das imagens high tech” quanto “a simplicidade nacionalmente codificada” apresentar-se-iam apenas como superfície. “A verdadeira Berlim de hoje” argumenta o autor, “com seus conflitos e aspirações, permanece um vazio” (14). A busca do personagem em Asas do Desejo não encontra um desfecho e a frase ainda ecoa em vazio; “Não consigo encontrar Potsdamer Platz”.
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Em sua antologia do pensamento urbano, Françoise Choay busca mapear quais as concepções fundamentais que atuaram na formação do Urbanismo, e procede para tanto, por uma série de agrupamentos e generalizações definindo campos que vão orientar criação dos conceitos da disciplina (15). Sabemos os riscos de tal empreitada; a tendência a colocar em blocos estanques concepções que nem sempre se mantém em formas tão rigorosamente delimitadas. Com efeito, os limites de uma idéia, uma terminologia, um conceito, são bem mais porosos. Guardada devida ressalva, lançaremos mão de uma idéia central na argumentação da autora que parece evidenciar nossa perspectiva: às transformações dos “velhos quadros” da cidade pré-industrial que foram identificadas por seus contemporâneos como “desordem”, procedem-se respostas em antítese; ordenação, “segundo as duas direções fundamentais do tempo, o passado e o futuro, para tomar as formas de nostalgia e do progressismo” (16). Isso nos permite visualizar no próprio âmbito da cultura urbana, ainda em formação, com a necessária transparência, pois didática, as respostas que se seguem quando o modo pelo qual a sociedade organizava sua experiência no tempo e no espaço alteram-se em definitivo. David Harvey complementa a tese; para o geógrafo, a cada novo salto evolutivo dos sistemas técnicos, segue-se uma ruptura em nosso quadro espaço-temporal, pois as diferenciações dos sistemas tecnológicos nos permitem engendrar a dinâmica social (e urbana) em outro nível, processo que, segundo ele, orienta diferentes respostas na esfera cultural; ora em negação, ora positivamente (17).
Durante o período em que se formou a disciplina urbana, objeto primordial de Choay, nada mais poderia receber a qualidade de “desordem” do que uma ruptura do conceito de espaço e de tempo que os desdobramentos das transformações tecnológicas provocaram na virada do século XIX para o século XX. Lembremo-nos; a aceleração dos processos produtivos, da capacidade de deslocamento e comunicação veio junto com a formação das vanguardas culturais do modernismo heróico e de seu duplo negativo, as correntes românticas “preservacionistas” (18).
O discurso urbano contemporâneo parece seguir sobre estas mesmas linhas primordiais, postas em evidência nos projetos e no debate gerado por conta dos concursos promovidos para o projeto da PP; ressonância do debate inaugural com profundos deslocamentos, como vimos, pois a preponderância se dá mais sobre o plano da imagem do que propriamente sobre ideais de afirmação de culturas arquitetônicas específicas (que significavam, grosso modo, uma resistência aos avanços tecnológicos que desestruturariam as cidades) ou a busca por um padrão universal de espaço urbano (que denotavam, grosso modo, a fé emancipadora na sociedade maquinista). Conseqüentemente, estaríamos passando por um período de reconfiguração de nosso quadro espaço-tempo? A resposta, problematizada por muitos teóricos de diferentes áreas, não poderia ser mais evidente; nossos conceitos de espaço e de tempo passam por um período de convulsão, resultado de uma transformação tecnológica, agora aliada à ciência, sem precedentes. São as comunicações em rede, a computação gráfica, a biotecnologia, a nanotecnologia, a genética etc. que sinalizam tal “reviravolta” (19). O debate circulou, com grande amplitude, em torno do conceito de pós-modernismo, ora se afirmando em continuidade com a modernidade, ora pontuando ruptura definitiva (20). Não nos cabe, neste breve ensaio sobre o discurso urbano, enfrentar méritos tão complexos. Porém, faz-se necessário deixar evidente que os deslocamentos daquele debate inaugural da disciplina urbana é justamente fruto desse estado de reconfiguração das características sócio-espaciais atuais, e se ele reencontra sob outras formas sua atualidade é porque tal reconfiguração já não suporta as mesmas respostas que a disciplina urbana, em sua gênese moderna, propunha para as cidades industriais. Ou, de outra maneira, se as respostas continuam as mesmas, elas já não têm o mesmo significado. Pois a ruptura mais significativa verifica-se quando o próprio objeto da disciplina já não pode ser concebido sob o mesmo aparato conceitual, ou de maneira mais profunda, quando este próprio objeto já não se apresenta da mesma maneira, a saber, a cidade industrial tal qual os pioneiros a conheceram ou concebiam.
Passando em revista a atual fase dos discursos urbanos sobre a cidade, Paola Berenstein Jacques nos fala de um estado “quase” esquizofrênico (21). As duas correntes que orientam o pensamento urbano desde sua concepção disciplinar, a culturalista e a progressista, “apesar de aparentemente antagônicas”, estariam levando a um mesmo caminho, a cidade como imagem, ou, nas palavras da própria autora, “a espetacularização das cidades contemporâneas”. Pois não há mais nenhum resquício dos ideais utópicos dos urbanistas progressistas; a técnica ou o trabalho já não mais são dotados de missões revolucionárias, nem tão pouco crítica contextual significa uma resistência ao universalismo homogeneizante da cultura de mercado. A própria diferenciação sócio-espacial insere-se como estratégia no capitalismo global e a mistura constitui, atualmente, seu apelo ideológico (22). Portanto, se de um lado, a técnica como fetiche do capitalismo high tech, altamente mecanizado, já não agrega mais nenhum sentido revolucionário, do outro lado, a memória, o passado e a identidade vêm preenchendo um significativo lugar nos discursos emergentes do novo conservadorismo político Europeu.
Em Potsdamer Platz, este estado esquizofrênico do discurso urbano contemporâneo parece se expor. Não são poucos os aspectos que indicam-no. Sobre eles agora teceremos considerações.
Reconstrução crítica: o Manifesto 9 de Dezembro
“Without the combined opposition of public opinion in both parts of the city, the technocrats will put their own plans into effect. These are still based, as if nothing has changed, on the ideology of unlimited growth. It is against them that we must unite, for the city does not belong to them, nor to states or blocks, nor to movements of capital. The city belongs to its inhabitants and to the new events” (23).
Em novembro de 1989, o Grupo 9 de dezembro (24), formado pela iniciativa do professor de história da arquitetura Dieter Hoffmann-Axthelm, publica um manifesto onde convocavam a opinião internacional a fazer frente às pressões do capitalismo imobiliário que, como não poderia deixar de ser, a despeito da problemática sócio-cultural que se impunha na reconstrução da cidade, enxergava os vazios de Berlim, apenas como possibilidades de rendimento. Em oposição radical a qualquer projeto que buscasse “internacionalizar” Berlim, o grupo encontrava na identidade de suas morfologia urbana um fator de resistência aos ditames do mercado. Para eles, a capital alemã ainda se definia como uma cidade industrial e qualquer tentativa de transformá-la num centro de finanças e de serviços do capitalismo avançado seria um erro. As dimensões de suas construções, defendiam, deveriam seguir os gabaritos da década de 20, e qualquer projeto deveria considerar a dimensão histórica de seu centro como ponto de partida. Em suma, a versão “culturalista” do discurso urbano, ressurgida com a Tendenza e atualizada no recente debate sob o signo da “reconstrução crítica” das cidades européias, conceito formulado por Dieter Hoffmann-Axthelm, que afirmava a importância das relações entre o contexto morfológico e tipológico tradicionais das cidades européias nas novas intervenções do espaço. O que estava em jogo, argumentavam, era a “identidade” do berlinense.
Não estivéssemos os anos 90 e talvez as propostas do grupo pudessem realmente significar uma resistência aos parâmetros de urbanização impostos pelo jogo político e econômico que sempre trazem perdas significativas para a cultura das cidades. Contudo, em que medidas o discurso preservacionista, uma vez associado à indústria do turismo de massas, não estava neutralizado em sua capacidade crítica, promovendo, como nos diz Huyssen, “o mais importante parâmetro do novo conservadorismo arquitetônico”? (25) Uma vez depurada de seu sentido tectônico e crítico, absorvida pelo discurso da indústria simbólica do consumo de massas, e elevada a status de imagem nacional, as hipóteses formuladas nos anos 60 e 70, parecem já não mais configurar algum tipo de saída para a crise que vive hoje o discurso urbano. Tratada apenas como fachada, bem aos gostos da superficialidade do pós-modernismo, a memória e o passado, local e identidade, aquilo que ressoou do discurso de Heidegger no debate arquitetônico do pós-guerra, não constitui um contraponto crítico em meio ao “pensamento único sobre as cidades” (26).
A revisão crítica de Vittorio Gregotti
As evidentes deformações das teorias do lugar no debate urbano podem ser claramente identificadas na revisão crítica de Vittorio Gregotti, arquiteto italiano que articulou o debate nos anos 60 e 70 com a Tendenza. Diante da facilidade e da superficialidade com que as referências à tipologia berlinense apareciam nas propostas apresentadas durante todo conturbado processo dos diferentes concursos, o arquiteto italiano questiona-se de que maneira o valor do lugar no projeto arquitetônico como um diálogo com o contexto e potencializador de sua transformação não havia desempenhado um papel na criação de um discurso reacionário? Para ele, o que se podia concluir era que a prática artística do design estava sendo encarada apenas como decoração ornamental (associação estilística), “típica da autonomia comunicativa pura”, assim “recusando-se a aceitar a responsabilidade para a construção de uma hipótese crítica”, com grande perda para a especificidade das identidades (27). Tal como Huyssen, Gregotti identificava a predominância de um conservadorismo cultural, claramente explícito na escolha do projeto de Hilmer e Sattler como primeiro colocado na competição internacional organizada em 1991 pelo Museu de Arquitetura de Frankfurt junto à administração berlinense.
O projeto da dupla Hilmer e Sattler definia-se por uma série de blocos que tomavam o perímetro da quadra, coroados por torres que margeavam a praça; uma equação, um tanto quanto mal arranjada, entre o “típico” da cidade e uma outra proposta, calcada na densidade dos arranha-céus.“A escolha da solução vencedora”, argumentava Gregotti;
“deixa poucas dúvidas. O que estamos vendo é o apagamento de todos os traços das contradições e dos dramáticos eventos que caracterizaram a história da cidade [...] e a completa reconstrução de uma “feliz” realidade pré-existente. Parece não haver mais distinção ou julgamento com respeito ao passado: apenas uma total recusa em trazer a lembrança suas contradições, mesmo essas que ainda são visíveis no processo de reunificação das duas Alemanhas. O modelo ideal parece ser este do retorno a um imaginário neo-nacionalismo xenófobo, a uma estética da consolação e da pacificação artificial” (28).
“O massacre das idéias”: a crítica de Rem Koolhaas
Em 16 de outubro de 1991, logo após o primeiro concurso para o projeto da PP, Rem Koolhaas, um dos participantes do corpo de jurados, publicou no Frankfurter Allgemeine Zeitung uma carta onde tecia duras críticas ao processo de julgamento e à decisão final dos jurados. O título do texto não poderia ser mais direto: “Berlim: o massacre das idéias” (29). Em poucas linhas, o arquiteto holandês descreve porque sua participação havia sido “uma das piores experiências profissionais de sua vida”. Sua indignação devia-se basicamente a dois fatores; em primeiro lugar, o controle que o senador Stimman impusera à comissão julgadora, evocando freqüentemente a identidade tradicional berlinense para desclassificar “precipitadamente” os projetos que continham as “soluções mais inteligentes” e com o maior “potencial especulativo”. Dentre estas, o primeiro esquema de Kollhoff, com a série de edifícios altos que coroavam a praça, para o qual Koolhaas sai em defesa. Ao eliminarem o projeto do arquiteto alemão, abortava-se “a investigação dos potenciais benéficos da concentração [...] e do significado da densidade”.
Em segundo lugar, argumentava, os projetos que haviam permanecido para a segunda etapa da competição “dividiam a mesma fraqueza”, pois todos exploravam a morfologia urbana do século XIX, baseada no perímetro da quadra urbana. Criava-se então, uma incompatibilidade entre forma e programa, pois para adequar a complexidade e densidade das atividades que ali deveriam se desenvolver, os “novos blocos tradicionais” deveriam elevar-se até 10 ou 12 pavimentos, o que provocaria uma distorção em seus padrões históricos. Sentenciava, por fim, que todo o processo não passara de “um deliberado massacre da inteligência, da imaginação, do realismo”.
O arquiteto Rem Koolhaas preencheu importante lacuna na crítica ao modernismo do pós-guerra europeu, e forneceu, através de seus ensaios e projetos, as bases conceituais para a formação de um novo tipo de abordagem urbana. Forjou sua teoria na Manhattan do entre guerras (30), identificando na metrópole americana conceitos como flexibilidade, densidade e congestão, que a converteriam numa espécie de modelo para o urbanismo do capitalismo avançado. Seu livro, S.M.L.XL, busca definir, no plano teórico, o urbanismo da grande escala, investigando as potencialidades das megaestruturas e da “cultura de congestão”. Logo, suas críticas à volta de um urbanismo “tradicionalista” não deveriam nos surpreender.
Apesar de tudo os argumentos de Rem Koolhaas soam pertinentes. Ao objetivarem a conjunção entre o passado e o futuro, desconsiderando as contradições implícitas neste processo, eliminou-se de fato qualquer tipo de exploração imaginativa, que repensasse os caminhos da teoria e dos projetos urbanos.
Outros concursos foram realizados, mas, guardadas poucas alterações, o esquema inicial de H&S permaneceu.
Os dois projetos de Hans Kollhoff
“Outro aspecto que sugere um paralelismo é a intenção de reconciliar-se com o passado e, neste caso parece haver realmente uma defasagem temporal entre as diferentes etapas do cinema e da arquitetura. Como você deve saber, quanto ao projeto de edificação predomina um intolerável ecletismo, não somente no sentido puramente arquitetônico, mas também quanto ao planejamento urbano. Por exemplo, ao voltar aos velhos modelos de praças, aos velhos planos de cidades, para os arquitetos, poderia representar também uma certa esperança de serem capaz de achar um ponto para começar de novo, não somente quanto aos modelos urbanos, mas também quanto a tradições arquitetônicas... retomar o fio de onde se o perdeu. Não obstante, súbito nos demos conta que não se empregava a tradição como novo ponto de partida, mas como uma base legitimadora do que se fazia; encontrava-se uma espécie de refúgio na suposta tradição. Converteu-se basicamente numa espécie de suporte, do qual nada surgia de vivo”.
O trecho acima transcrito é uma fala de Hans Kollhoff, retirada da referida entrevista com Wim Wenders. De maneira muito lúcida, o arquiteto alemão, nos explica o que significava, na década de noventa, data em que a entrevista foi realizada, “reconciliar-se com o passado” no campo da arquitetura. Puxamos uma linha: “retomar o fio onde se o perdeu” era justamente a crítica que tomava corpo no final dos anos 60, com a Tendenza italiana, já anunciada no CIAM de 1947 em Milão, quando o tema do centro da cidade emerge de maneira revitalizada. Contudo, o discurso do arquiteto é um sinal evidente da revisão das “teorias do lugar” e dos rumos que ela havia tomado quando seus fundamentos propriamente tectônicos eram dispensados em prol do ecletismo fachadista pós-moderno. Como ele mesmo aponta, a tradição não se convertera em ponto de partida como esperavam os neo-racionalistas (31) italianos, mas sim num refúgio para tornar legítimo o que ele chama de “arquitetura recreativa”, cujo paralelo para o cinema, como aponta Wenders é a indústria Hollywood.
Kollhoff participou ativamente dos concursos que foram realizados para que se pudesse escolher o projeto mais adequado na reconstrução de Potsdamer Platz. Para o primeiro concurso, organizado por alguns jornalistas do Frankfurter Allgemeine Zeitung, desenhou, a exemplo de seu projeto para a área da Alexander Platz, uma série de arranha-céus em torno do carrefour que define a praça. A crítica imediata era de que se tratava de um projeto que não guardava nenhuma relação com o contexto dos blocos característicos de Berlim, uma arquitetura muito pouco berlinense. Posteriormente, para um segundo concurso, Kollhoff realizaria um outro projeto; um conjunto de micro-blocos que respeitavam os gabaritos da Berlim tradicional (32).
Ao propor, para a mesma área, propostas tão díspares, a atividade de Kollhoff converte-se em ilustração exemplar do debate que se desenvolveu no processo de escolha do projeto que daria conta de preencher todo aquele vazio que se instalara. Nenhum desses dois desenhos foi construído, mas posteriormente Kollhoff foi chamado a participar do projeto que efetivamente seria realizado, de autoria do arquiteto italiano Renzo Piano. O desenho final, curiosamente, traz características de ambos (33).
A translocação do Kaisersaal
Resta-nos dizer que, após o complexo debate gerado e os diversos projetos apresentados, as torres que compunham o esquema de Hilmer e Sattler, um torto amálgama de soluções tradicionalistas e futuristas, ganharam o apurado desenho de alta tecnologia dos arquitetos Renzo Piano e Helmut Jahn, além da colaboração de Hans Kollhoff, cujo projeto final já comentamos anteriormente. Desde o paradigmático projeto para o centro Pompidou, Piano seria conhecido por suas brilhantes soluções espaciais fundadas na alta tecnologia. A “reconstrução crítica” , como podemos ver nos edifício que desenhou, não constitui um mote de apelo de seus partidos arquitetônicos. Também assim o é nas soluções high-tech de Helmut Jahn.
Por fim, talvez o sintoma mais evidente da esquizofrenia do urbanismo contemporâneo em Potsdamer Platz tenha sido a translocação das partes remanescentes do famoso Hotel Espanada, um edifício eclético de 1908, considerado monumento histórico da cidade. A audaciosa operação consistiu em elevar poucos centímetros do chão as partes do edifício remanescentes dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial, “o salão de banquetes” (Kaisersaal), e deslocá-lo sobre trilhos de aço por aproximadamente 75 metros, tirando-o de seu lugar original, onde interferia no projeto do Sony Center, do arquiteto Helmut Jahn. Prodigioso evento possibilitado pelas mais avançadas técnicas de engenharia existentes e justificado pelo discurso preservacionista, o movimento do edifício histórico, conjuga, numa mesma ação, a representação do passado e do futuro, e assim, emerge como epítome deste confuso processo que caracterizou o redesenho de Potsdamer Platz (34). No seu novo contexto, incorporado ao projeto high-tech de H. Jahn, o Kaizersaal transformou-se num luxuoso restaurante.
Arquitetura e esquizofrenia
A esquizofrenia do discurso urbano contemporâneo é o desdobramento de uma dupla crise; em primeiro plano a crise da historicidade, ou melhor, a crise da “reconciliação com a história”, claramente perceptível na revisão crítica de Gregotti, ou na clareza com que Kollhoff a descreveu. Do outro lado, a crise da projeção; dada a impossibilidade de se recorrer à identidade para o restabelecimento do sujeito, o futuro bem poderia se apresentar como possível saída, contudo, já não se configura como opção redentora, pois, após o colapso da modernização e a tomada de consciência da crise ecológica, não temos mais tanta certeza das beneficies do desenvolvimento tecnológico capitalista. A conseqüência no campo da experiência urbana poderia ser resumida, segundo a análise de Jameson:
“Se, de fato, o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa suas protensões e retensões em um complexo temporal e organizar seu passado e seu futuro como uma experiência coerente, fica bastante difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra coisa que não “um amontoado de fragmentos” e em uma prática de heterogeneidade a esmo do fragmentário, do aleatório” (35).
No que se converteria Potsdamer Platz se não numa série de considerações referenciais de um passado justapostas sobre pretensões de avanço futuro (que, são elas mesmas, referências a formas passadas que objetivavam a representação do futuro – o alto modernismo como estilo), desconsiderando qualquer possibilidade crítica de “escritura” da cidade? Qual não seria a experiência portanto, senão o reflexo desta esquizofrenia, quando aquele que vive a cidade é chamado a “observar todas as telas ao mesmo tempo”? (36)
Utilizando-se da exposição lacaniana sobre a esquizofrenia, “não como diagnóstico, mas como modelo estético sugestivo”, Jameson ajuda-nos a compreender de que maneira a identidade do sujeito contemporâneo, “em si mesmo, efeito de uma certa unificação temporal entre o presente, o passado e o futuro”, é um outro lugar do depósito da experiência na percepção/produção urbana contemporânea. Para Lacan, descreve, a esquizofrenia é a ruptura na série de sintagmas que encadeados constituem um enunciado e denotam um significado. A quebra da cadeia significante levaria a esquizofrenia, ou seja, a um “amontoado de significantes distintos e não relacionados”. Num paralelo com a desordem lingüística, Jameson nota nossa incapacidade, mediante à superficialidade da representação imagética, “de unificar passado, presente e futuro em nossa experiência biográfica” (37) de tal maneira que nossa experiência espacial estaria reduzida a um presente contínuo.
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O fotógrafo Michael Wesely expôs em 2002 na 25ª bienal de São Paulo (38) imensas fotografias de Potsdamer Platz. A imagem se apresenta aos nossos olhos é nebulosa, indefinida, como se os objetos e pessoas que se dipõe diante da lente da câmera apenas chamuscassem o filme. É como se imagens ainda estivessem por se fazer. O que vemos são construções inacabadas justapostas ao vazio inaugural. Uma grua ao lado esquerdo de uma das composições justapõe-se em transparência com a fachada de um edifício; onde os prédios estão levantados, as maquinarias ainda encerram o canteiro de obras. Aqueles que ali trabalharam, ironicamente, estão presentes mas não são vistos. Tudo se passa como se diferentes “tempos” fossem reunidos para compor o mesmo espaço; ou diferentes paisagens condensadas no mesmo momento. Aquilo que foi e aquilo que será numa mesma imagem.
A técnica de Wesely opera uma inversão; ao dilatar o tempo de exposição, permitindo que a luz sensibilize a prata por um tempo muito longo, o fotógrafo alemão transforma aquilo que nos primórdios da fotografia era uma limitação, a saber, a impossibilidade de se realizar um instantâneo, em foco de sua especulação pictórica. As fotos de Wesely implicam uma reflexão sobre o tempo, que antes relegado a segundo plano em benefício da coisa a ser retratada, emerge como campo a ser dotado de conteúdo, como o próprio fotógrafo nos explica:
“O tempo é um elemento de extrema importância na fotografia que ninguém estava questionando. Deste ponto de vista analítico, eu estava indo de encontro com a histórica da fotografia quando achei este “vazio”. Então, basicamente comecei a investigar “a duração do momento”. (...) A “duração do momento” era um tema de interesse nos oitocentos...Cartier Bresson, o grande mestre da fotografia de reportagem, estava sempre discutindo sobre este aspecto. (...) Quando você começa a trabalhar sobre isso, você pode inverter o sistema. (...)Você pode pensar; ‘ de que tamanho é o momento’? quando ele termina? cinco minutos...cinco milhões de minutos?” (39).
O vazio que Wesely encontrou e questiona encontra intrigantes ressonâncias com aquele vazio que a arquitetura foi chamada a preencher. O fotógrafo, porém, não se furta a percepção de que o tempo é antes o elemento que faz o espaço entrar num movimento de perpétua diferenciação e assumir múltiplas e diferentes identidades. O tempo aqui tem espessura real.
A imagem que sai das lentes de Wesely não define um tempo; não representa nem a Berlim tradicional, nem Berlim global city. Sua câmera, diz, “é mais fatalista” (40). O artista parece interessar-se mais pela mudança, pelo “tornar-se” de Berlim em oposição à sua essência perdida. Assim como Wenders, o que o fascina é a idéia de uma imagem por acabar (41), a idéia de que a identidade é sempre parcial e mutante. De modo diverso, a arquitetura parece lidar com o tempo apenas no nível da representação: construção definitiva de apenas uma imagem de um certo tempo.
notas
1
Este ensaio, finalizado em junho de 2005, é resultado da pesquisa “O discurso urbano contemporâneo e o desenho da Paisagem: um estudo dos projetos para Potsdamer Platz, Berlim” desenvolvida durante um ano com apoio do CNPq.
2
A caracterização do personagem em questão; “the despairing old storyteller, the old Berliner” é do escritor Eric Mader-Lin, retirado do artigo “Angels and the Modern City; Wim Wenders: Wings of Desire”, publicado in: http://www.wim-wenders.com. Como nos explica o escritor, o personagem é Homero, que referencia o poeta grego.
3
Retirado do catálogo da exposição “Arcadia and Metropolis: Masterworks from the German Expressionism from the Nationalgallerie Berlin” disponível em www.thecityreview.com. A descrição do quadro baseia-se neste depoimento de Roland März.
4
“Kirchner was himself a creature of the night who intensively experienced a sense of personal alienation in the metropolis, where the beauty and notoriety of sexuality fascinated him. He chose to explore the subject in numerous drawings and woodcuts using contrasting forms: human figure versus urban setting, big versus small, oval versus circular.” MÄRZ, R. Op. cit.
5
As informações biográficas sobre Kirchner encontram-se em www.wikipedia.org.
6
O filme “Arquitetura da Destruição”, dirigido por Peter Cohen, (Suécia, 1992), demonstra com maestria de que maneira o nazismo desenhava-se como um projeto estético que se opunha gravemente às propostas das vanguardas modernas. No campo da arquitetura, especificamente, a ascensão do nazismo significou o fim das pesquisas levadas a cabo pela primeira geração de arquitetos modernos alemães. A Bauhaus foi fechada em 1933, quando estava sob a direção de Mies Van der Rohe, que deixou a Alemanha em 1937. Walter Gropius, fundador da escola e importante teórico do movimento moderno exilou-se na Inglaterra em 1934.
7
Andreas Huyssen descreve abilidosamente a paisagem que, quando da queda do muro, desenhou-se no centro da cidade: “Durante uns dois anos, o centro de Berlim, portal entre as partes leste e oeste da cidade, era um terreno baldio de dezessete acres que ia do Portão de Bradenburgo a Potsdamer e a Leipziger Platz, um largo rasgão de sujeira, mato e restos de pavimentação, sob um enorme céu que parecia maior ainda dada a ausência de um horizonte de edifícios altos, tão característicos desta cidade.” (HUYSSEN, A. Os vazios de Berlim. In: Seduzidos pela memória. São Paulo, Editora 34, 1999)
8
O projeto para Potsdamer Platz, ao lado da reurbanização da Alexanderplatz e da revitalização da Frieddrichstrasse constitui a parte mais relevante de um profundo processo de transformação urbana na cidade que previa não somente a reconstrução das áreas centrais esvaziadas, mas também a reurbanização das periferias e novos projetos de expansão da cidade. Uma operação que contava com mais de trezentos projetos, comandados pelo primeiro time da arquitetura mundial, que movimentou cerca de duzentos milhões de dólares fornecidos pelas mais poderosas corporações globais, cujo objetivo era a conversão da cidade numa metrópole do terciário avançado. Diversas publicações especializadas tratam do tema. Para uma leitura bem detalhada, ver a revista Lotus, nº 80, ed. Eletcra.
Este gigantesco projeto de redesenho da cidade alinha-se com a mais recente teoria na política de planejamento urbano, o chamado “planejamento estratégico”. Otília Arantes abordou com propriedade o assunto num texto recentemente publicado, que nos informa sobre as relações entre o Estado, o capitalismo corporativo global midiático e as recentes “estratégias” de recuperação das metrópoles: uma das faces mais importantes do discurso urbano contemporâneo. Arantes, O. B. F. Berlim Reconquistada: falsa mistura e outras miragens. in: Espaços e Debates, n. 43-44, p. 28-50. jan/fev. 2003.
9
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 357.
10
Entrevista de Wim Wenders a Hans Kollhoff (trad. Diana Teresa Di Giuseppe), in: Espaços e Debates, nº 38. São Paulo, Neru, 1994.
11
HUYSSEN, A. op. cit.
12
Novamente o texto de Otília Arantes segue como referência para um debate mais profundo a cerca das relações entre este novo urbanismo e os grandes parques de entretenimento.
13
Como muito bem aponta Huyssen novamente, “Hoje em dia é ao turista, mais do que ao flâneur, que a nova cultura da cidade quer apelar, ao mesmo tempo que teme o indesejável duplo do turista: o migrante expatriado.” Huyssen, A. op. cit. pp. 91. Sobre a relação entre os parques temáticos e o urbanismo contemporâneo ver Zunkin, S. Paisagens Urbanas pós-modernas. in: Revista do Patrimônio, nº 24, 1996. ou em Zunkin, S. Aprendendo com Disney World. in: Espaço e Debates, n.43-44, São Paulo, 2004, p. 11-27 (tradução de José Tavares Correia de Lira).
14
HUYSSEN, op. cit. p. 103.
15
CHOAY, Françoise. O Urbanismo: utopias e realidades. Uma antologia. São Paulo, Perspectiva, 1992.
16
A partir daí a autora vai alocando aqueles que desenvolveram críticas e propostas para a ordenação da cidade em cada um desses campos que, segundo ela, definem modelos – modelo culturalista, modelo progressista e um terceiro, o modelo naturalista. De fato encontraremos problemas nesta catalogação. Talvez o mais evidente seja o enquadramento das idéias de Ebenezer Howard tão orientadas para o futuro como as de Le Corbusier, como um modelo “nostálgico” (o modelo culturalista). As análises de Peter Hall sobre a cidade-jardim são esclarecedoras: “Há quem pense, ainda hoje, que seu intento era confinar pessoas em cidadezinhas isoladas em pleno campo, quando ele simplesmente propunha o planejamento de conurbações de centenas de milhares, quiçá milhões de habitantes”. Contudo, também nota o autor que atrás dessas concepções estavam presentes as idéias de Ruskin e Morris, que buscavam “repelir as pompas mais grosseiras da industrialização e voltar a vida mais simples, centrada no artesanato e na comunidade.” (HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo, Perspectiva, 1995, p. 103). No catálogo de Choay, esses dois pensadores, figuram o “pré-urbanismo culturalista”. Como apontamos, as “reverberações” existem e não se tratam de detalhes.
17
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1993.
18
O debate entre Otto Wagner e Camillo Sitte a propósito da modernização de Viena no final do século XIX ilustra bem este impasse que é a própria origem da disciplina urbana. Não por coincidência, David Harvey retoma tal discussão para “exemplificar” melhor sua tese.
19
Para uma problematização dos efeitos das transformações tecnológicas na contemporaneidade ver os ensaios de Santos, LAYMERT, G. Politizar as novas tecnologias. São Paulo, Editora 34, 2000. No campo do debate urbano, as transformações dos quadros conceituais e epistemológicos são muito bem analisadas por Paul Virilio. Em especial no texto O espaço crítico, São Paulo, Editora 34, 1999
20
Os ensaios de James Jameson, em especial Pós-modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 1996. E também o supracitado livro de David Harvey são referências para entender em que vias o debate caminhou.
21
Jacques, P. Berenstein. Apresentação da coletânea de textos situacionistas sobre a cidade. in: Apologia da Deriva. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
22
A permanência do status moderno do Trabalho vem sendo amplamente debatida no âmbito das ciências sociais. Para considerações intrigantes sobre o tema, ver o audacioso ensaio de KURZ, Robert. O colapso da modernização. São Paulo, Paz e Terra, 1999. Para compreender como o capitalismo global atua justamente nas diferenciações sócio-espaciais, explorando defasagens sociais, cambiais e tecnológicas e as variações nos sistemas legislativos e econômicos, David Harvey, no texto supracitado, oferece interessantes considerações.
23
Grupo 9 de Dezembro, Manifesto. in: Lotus, nº 80. Ed. Electra.
24
O grupo é formado por Bruno Flierl, Rainer Graff, Dieter Hoffmann-Axthelm, Heike Langenbach, Helmut Maier, Ulrich Reinisch, Peter Schatz, Karl Schlögel, Bernhardt Strecker, Peter Thomas e Klaus Birkholz.
25
HUYSSEN, A. Op cit.
26
A expressão é de Otília Arantes, utilizada em diversos textos.
27
GREGOTTI, Vitorio. The aesthetics of consolation. Casabella nº 232. Roma, 1994, p. 27-28.
28
GREGOTTI, Vitorio. Op. cit.
29
KOOLHAAS, Rem (1991). Berlin: the massacre of ideas. in: Casabella nº 232, Roma, 1994, p. 27-28.
30
Seu intrigante “manifesto retroativo” para o urbanismo “sem teoria” de Manhattan encontra-se no livro Delirious New York, Nova York, The Monacelli Press, 1994. A primeira edição é de 1978.
31
A expressão é de Kenneth Frampton. Op. cit.
32
Na conclusão da primeira fase desta pesquisa, o relatório parcial, apresentamos o histórico do concurso para a Potsdamer Platz de maneira pormenorizada. Optamos então por não repetir tal passagem e nos focar sobre o argumento central de nosso texto, a esquizofrenia do discurso urbano contemporâneo. Um bom guia dos projetos que foram realizados encontra-se na revista Lotus, nº 80, ed. Eletcra.
33
O projeto que foi construído de Kollhoff é resultado do esquema vencedor de Renzo Piano para a área que, por sua vez, segue mais ou menos o projeto urbano realizado por Hilmer e Sattler, vencedor da primeira competição realizada. O resultado final, portanto, segue aquele esquema inicial onde já estava presente esta morfologia “híbrida”.
34
Dois vídeos que mostram o processo de “translocação” podem ser encontrados em www.sonycenter.de/sonycenter_eng/
35
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 1996, p. 53.
36
JAMESON, Frederic. Op. cit, p. 55.
37
JAMESON, Frederic. Op. cit, p. 57.
38
As fotografias de longa-exposição de Michael Wesely podem ser vistas digitalmente em www.wesely.org.
39
Retirado da entrevista realizada por telefone com o artista.
40
Idem.
41
“A imagem que fiz de Potsdamer Platz tem, de certa maneira, está idéia utópica de que não está terminada, de que não está pronta. Muitas vezes, a imagem inacabada é mais interessante que a realidade”. Ibidem.
sobre o autor
Paulo Tavares é arquiteto e urbanista pela Universidade Estadual de Campinas.