Os pavilhões nacionais nos Giardini de Veneza
Os Giardini de Veneza, uma das poucas áreas arborizadas da cidade, fica localizada no extremo leste da ilha. Originalmente jardins do castelo de um nobre veneziano, a área em 1894 se converteu em espaço expositivo, abrigando a construção o Palácio de Exposições Pro Arte, projetado pelo arquiteto Enrico Trevisanato. Sucessivas reformas e ampliações ao longo dos anos seguintes transformaram por completo a edificação, inclusive sua fachada principal. Durante os anos subseqüentes uma série de exposições foi sediada no palácio, dando início à Biennale di Venezia.
Em 1907 é construído o primeiro pavilhão nacional, o da Bélgica, projetado por Léon Sneyers. No ano seguinte foi construído o segundo, da Hungria, projeto de Géza Maroti. Ainda em 1908, foi edificado o pavilhão da Alemanha, do arquiteto Daniele Donghi, demolido em 1938. Sucedem-se nos anos seguintes os seguintes pavilhões nacionais: da Grã-Bretanha, projeto de Edwin Alfred Rickards, construído em 1909; da França, de Faust Finzi, em 1912; da Suécia, de Ferdinand Boberg, em 1912, que foi ocupado pela Holanda em 1914 para ser demolido e reconstruído por Gerrit Thomas Rietveld em 1953-54; da Rússia, de Aleksej Scusev, em 1914. Após um interregno por conta do período belicoso da Primeira Guerra Mundial, temos a construção de uma nova série de pavilhões nacionais: da Espanha, de Javier de Luque, em 1922; da Tchecoslováquia, de Otakar Novotny, em 1926.
Durante os anos 30, período de diversificação e ampliação da Biennale, é construída uma nova série de pavilhões nacionais: dos Estados Unidos, com projeto de Chester Holmes Aldrich e William Adams Delanonel, em 1930; da Dinamarca, assinado por Carl Brummer, em 1932, e ampliado por Peter Kochnel em 1958. A ocupação do outro lado do canal, aonde mais tarde seria construído o pavilhão brasileiro, vai se iniciar em 1934 com a construção dos pavilhões da Polônia, da Áustria (Josef Hoffmann) e Grécia (M. Papandréou).
Depois da Segunda Guerra Mundial, após os anos necessários para o país derrotado retornar ao labor edificatório, os jardins passam a receber novos pavilhões nacionais. Em 1948, Virgilio Vallot constrói o segundo pavilhão da Bélgica. Em 1952, Israel constrói o projeto de Zeev Rechter, a Suíça o de Bruno Giacometti e a Espanha o seu segundo pavilhão, agora projetado por Joaquin Vaquero para substituir o anterior, demolido. Estes são sucedidos por diversos outros pavilhões nacionais: Venezuela, de Carlo Scarpa, em 1954; Japão, de Takamasa Yoshizaka, em 1956; Finlândia, de Alvar Aalto, 1956; Canadá, do grupo BBPR, em 1958; Uruguai, em 1958; Países Nórdicos, de Sverre Fehn, em 1962. Uma última e tardia leva veio complementar o conjunto edificado nos Giardini: Austrália, de autoria de Philip Cox, em 1988; o novo Pavilhão do Livro, de James Stirling, em 1991; e o pavilhão da Coréia, com projeto dos arquitetos Seok Chul Kim e Franco Mancuso, em 1996 (1).
O Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza
Inaugurado em 1966, durante a 30ª Bienal de Veneza, o pavilhão brasileiro foi um dos últimos a ser construído nos Giardini. Projetado em 1963 pelos arquitetos Henrique Mindlin (1911-1971) e Giancarlo Palanti (1906-1977), foi construído por Amerigo Marchesin, colaborador histórico de Carlo Scarpa e a quem coube a fama da autoria, ao menos na Itália (2). Yves Bruand, no seu clássico Arquitetura contemporânea no Brasil (3), atribui a autoria para Henrique Mindlin e Associados, acompanhando a publicação do projeto na revista Módulo (4). Como muitos arquitetos estrangeiros migrados para o Brasil no segundo pós-guerra, Palanti não era habilitado a exercer a profissão de forma legal no país, o que talvez justifique sua ausência nos créditos oficiais.
Mindlin e Palanti, autores também do projeto classificado em quinto lugar no concurso para o Plano Piloto de Brasília, conceberam o pavilhão como dois blocos de tamanhos diferentes articulados por uma viga de concreto aparente, que os corta transversalmente pelo centro dos lados maiores, configurando com a simetria resultante uma composição de teor clássico. Bruand aponta algum parentesco do projeto com o Instituto de Tecnologia de Illinois, em Chicago, obra de Mies van der Rohe, principalmente na ala posterior, onde temos “paredes de tijolos encimadas por uma faixa de janelas encaixadas em montantes de aço” (5). Contudo, é visível o parentesco do projeto, no que diz respeito ao contraste agudo entre concreto aparente e paredes de tijolos à vista, com a arquitetura dos anos 1960 de Rino Levi, como podemos observar na Usina de leite e Hangar de aviões, ambos no conglomerado da Tecelagem Paraíba de Olivo Gomes (São José dos Campos, 1963 e 1965), e nos edifícios Gravatá e Araucária (São Paulo, 1964 e 1965), ambos na avenida 9 de Julho (6).
O pavilhão brasileiro é expressão de um momento específico da arquitetura nacional. Do ponto de vista de sua visibilidade externa, gozava de amplo reconhecimento internacional, com publicações constantes e números especiais em revistas de renome da Europa e Estados Unidos, cobrindo a produção desde o período heróico do Ministério da Educação e Saúde até a inauguração de Brasília (7). Do ponto de vista da evolução interna, havia ainda uma incerteza sobre a adoção do encaminhamento proposto por Affonso Reidy, que apostava nas grandes estruturas em concreto armado como saída para o esgotamento da fórmula compositiva proposta por Lucio Costa e desenvolvida por Oscar Niemeyer durante as décadas anteriores. Se a obra de Vilanova Artigas e seguidores vai se constituir na versão radical desse novo desenvolvimento da arquitetura brasileira, obras como as de Levi, Mindlin e Palanti conformam a versão mais acomodada, com os olhos postos nas experimentações modernas em voga nos Estados Unidos, mais preocupadas com o aprimoramento das questões construtivas voltadas para um mercado cada vez mais sofisticado e exigente.
Fruto da inflexão das preocupações de nossa arquitetura, tal como um filho bastardo, o pavilhão do Brasil em Veneza mergulhou em relativo ostracismo, ainda mais quando comparado a outros pavilhões nacionais de grande fama, construídos em outras cidades (8). Com crônicos problemas de manutenção devido à gestão compartida entre Fundação Bienal de São Paulo (a quem cabe o uso) e Ministério das Relações Exteriores (a quem cabe a conservação), em 2002 a edificação foi alvo de depredação por parte de vândalos (9). A reforma apressada, superficial e apressada que passou recentemente não consegue esconder o atual ar de abandono da instalação. Não há como evitar um sentimento ambivalente de nostalgia e tristeza diante de uma obra que evoca uma época áurea de nossa arquitetura, mas se mostra melancólico retrato de nossa atual indigência cultural.
A mostra de arquitetura no Arsenale
Em 1930, sob forte influência do período fascista, a Biennale di Venezia se torna uma instituição autônoma, ganhando rapidamente um caráter multidisciplinar, com as presenças da música (1930), cinema (1932) e teatro (1934), cujo sucesso de crítica e público os impulsionam, em curto espaço de tempo, para a condição de festivais autônomos. O grande entusiasmo gerado pelo festival de cinema, por exemplo, impôs, em 1937, a mudança de sua sede para a ilha do Lido, com a construção do Palazzo del Cinema, projeto de Luigi Quagliata. Ao seu lado será construído um ano depois, com projeto de Eugênio Miozzi, o novo Casino, conformando o complexo que até hoje abriga o evento. A arquitetura, onipresente na elaboração dos pavilhões, vai faz parte das mostras desde o início dos anos 1930, pelas mãos de Carlo Scarpa, que terá papel cada vez mais importante no evento, tanto como arquiteto (autor de parte das ampliações do pavilhão da Itália e do pavilhão da Venezuela), como curador de exposições ao longo das décadas.
Contudo, a mostra exclusiva de arquitetura só vai ganhar sua primeira edição em 1980 – sob curadoria de Paolo Portoghesi, com o tema La prezença do passado e a construção em um dos galpões do Arsenale da mítica Strada Novíssima – já sob os auspícios da voga pós-moderna (10). As mostras seguintes vão contar sempre com curadoria de arquitetos convidados: Architettura nei paesi islamici (Paolo Portoghesi, 1982); “Progetto Venezia” (Aldo Rossi, 1985); Hendrik Petrus Berlage Disegni (Aldo Rossi, 1986); Quinta mostra Internazionale di Architettura (Francesco Dal Co, 1991); Sensori del futuro. L’architetto como sismógrafo (Hans Hollein, 1996); Less aesthetics, more ethics (Massimiliano Fuksas, 2000); Next (Deyan Sudjic, 2002); Metamorph (Kurt W. Forster, 2004).
A evolução dos temas ao longo das dez edições revela o paulatino abandono do enfoque hegemonicamente estético-cultural presente nas curadorias de Portoghesi e Rossi, substituído por preocupações mais políticas, sociais e econômicas, como é o caso da décima edição em curso, que traz o tema Cittá. Architettura e società proposto pela curadoria de Richard Burdett. O arquiteto inglês aponta para a enorme importância que a arquitetura e o urbanismo, atuando na escala gregária da cidade, podem ter na democratização social: “A criação de um pequeno ginásio, um centro cultural ou um espaço público qualificado no meio de uma favela dignifica a vida cotidiana de comunidades abandonadas pelo poder público” (11). Um enfoque positivo e otimista, mas que muitas vezes ultrapassa o fio da navalha e se converte em oportunista exaltação propagandística dos governos locais, responsáveis pelo conteúdo exposto nos espaços destinados às dezesseis grandes metrópoles.
O antigo Arsenale de Veneza foi, a partir do século XII, a base material que permitiu a significativa presença da Sereníssima no Mar Mediterrâneo no período da baixa Idade Média. O complexo é considerado por muitos historiadores como a primeira fábrica do mundo pré-industrial, contando com plantas produtivas envolvendo os mais variados aspectos da construção naval, que chegou a empregar, no período áureo, até 5% dos habitantes da cidade, ou seja, 5.000 trabalhadores de uma população em torno de 100.000 habitantes (12). O complexo, abandonado há muitas décadas, tem seus galpões utilizados, junto com os pavilhões dos Giardini, como área expositiva nas mostras de arquitetura desde a primeira edição, quando a Corderie foi ocupada pela Strada Novissima de Portoghesi. Desde então, gradativamente, outros galpões têm sido incorporados à mostra, um deles convertido hoje no novo Pavilhão da Itália, único dentre os nacionais fora dos Giardini.
A mostra de arquitetura de 2006 no Arsenale
A exposição diretamente curada por Richard Burdett foi montada na Corderie, o maior dos galpões do Arsenale, integralmente calafetado para bloquear a entrada de qualquer raio de luz natural. Dentro desse imenso espaço mergulhado na penumbra, sucedem-se as exposições das grandes metrópoles mundiais – Barcelona, Berlim, Bogotá, Cairo, Caracas, Istambul, Joanesburgo, Londres, Los Angeles, Cidade do México, Milão/Turim, Mumbai, Nova York, São Paulo, Shangai e Tóquio –, entremeadas por salas conceituais, amparadas por dados estatísticos. A obscuridade se mostra o ambiente adequado para um número expressivo de projeções, que apresentam aos visitantes, ao longo de todo o percurso, uma torrente filmes e imagens estáticas. Cenas onde a situação dramática das cidades das metrópoles mais pobres e desiguais é confrontada por projetos politicamente corretos, mas claramente sucedâneos inócuos por sua escala modesta diante do caos imperante. Conjuntos habitacionais, escolas, centros culturais e outros equipamentos sociais de inegável importância, muitos deles projetos de excelente qualidade formal e construtiva, surgem como pouco mais do que gotas d’água no meio de um imenso mar de problemas de toda sorte.
Há nessa overdose de imagens projetadas nas paredes obscurecidas e coladas nos imensos painéis dispostos entre as colunas da Corderie algo de paradoxal. Por um lado, a sobreposição espacial e temporal de imagens de toda ordem – uma clara predileção pela persuasão sensual e anímica – acaba por obliterar uma compreensão aprofundada. Diante da dosagem excessiva de imagens magníficas bombardeadas em sua retina, o visitante muitas vezes se vê desamparado, sem saber avaliar o sentido das coisas que surgem inesperadamente diante dos seus olhos, muitas vezes sem explicações textuais, nem mesmo legendas. Aquela mulher sentada diante de da porta de seu barraco mergulhado na favela é sinal de dignidade e resistência ou de desamparo e indigência?
Por outro lado, no final do percurso o mesmo visitante poderá se dar conta que conseguiu – em meio ao bombardeio de fotogramas, slides e fotos – operar uma síntese, alinhando imagens em séries identificáveis, que traduzem as grandes questões do mundo atual. Séries que revelam pela recorrência a presença do brutal desequilíbrio do mundo globalizado. Não há nada nessas imagens que o visitante já não conheça – favelas, conjuntos habitacionais, condomínios de luxo, áreas degradadas, moradores de rua, automóveis de luxo, ônibus obsoletos, trens luxuosos... Mas há nessa recepção de imagens um efeito que transcende sua finalidade primeira de emocionar. O visitante mais atento – quiçá o mais desatento... – sentirá a convicção que agora sabe algo que desconhecia. As séries lhe revelaram a profundidade e a disseminação de questões que apenas tinha notícia ligeira ou incompleta.
As salas conceituais são pensadas como remansos no percurso longitudinal ao longo do grande galpão. São pausas para pensar, após visitar um conjunto de algumas cidades mundiais. Logo no início do percurso temos mapas e aerofotogrametrias das 16 cidades selecionadas, estabelecendo-se um sistema de comparações das ocupações urbanas, tanto das diversas tipologias urbanísticas, como das expansões da manchas no território. Muito interessante! Em uma outra sala temos uma curiosa coleção de maquetes de densidades, materializações em grande formato daqueles gráficos tridimensionais de barras gerados por softwares de estatísticas. Em meio à penumbra surgem, como revelações iluminadas, maquetes de variadas formas, onde se constata curiosidades, como a baixa densidade de São Paulo e Los Angeles quando comparadas com cidades como Barcelona ou Shangai.
Em outra das salas temos sucessivos mapas mundis afixados em painéis, com continentes e países identificados com texturas que variam do branco ao preto, passando por gradações de cinzas, onde as legendas correspondentes apresentam diversas estatísticas. De forma muito didática, cada mapa mundi é acompanhado por uma pergunta elucidativa: “Quanto somos alfabetizados?”; “quanto nós poluímos?”; “quanta energia consumimos?”; “quanto somos conectados?”; “quanto somos ricos?”; “quanto somos velhos hoje?”; “quanto seremos velhos amanhã?”; “quantos anos viveremos?”; etc. Pode-se gastar horas verificando os diversos dados estatísticos e estabelecer comparação entre eles.
Contudo, após saciada a curiosidade irrecorrível, chega-se à duas óbvias constatações: em primeiro lugar, temos na prática um único mapa, pois os países mais ricos são os que possuem mais telefones celulares, gastam mais energia, têm uma maior expectativa de vida para seus habitantes, estes também mais escolarizados do que os demais (o inverso é simetricamente igual em suas deficiências); em segundo, surge a dúvida sobre a capacidade desses números apontarem para uma efetiva saída para o atual estágio do desenvolvimento humano. O privilégio dos dados quantitativos criam, por efeito de encantamento de sua objetividade e clareza, uma aparente satisfação por estarmos diante de revelações. Na verdade os números só revelam, mais uma vez, o que já sabemos e silenciam sobre os conhecimentos e atos qualificados necessários para suplantar os desafios. Se é certo que dados estatísticos constituem subsídios fundamentais para ações qualificadas nos contextos urbanos marcados por problemas imensos, talvez o protagonismo excessivo dado a eles na exposição acabe por turvar o entendimento dos claros limites de uma simples constatação (13).
As exposições de cada uma das 16 metrópoles escolhidas pela curadoria seguem uma receita bem definida, tanto nos suportes expositivos (sempre temos painéis fixos com estatísticas e fotos, projeção de projetos e locução explicativa), como na apresentação de projetos de porte, voltados para a melhoria das condições de vida. Elas tentam responder um dos objetivos da exposição, presente na forma de pergunta impressa em um dos painéis: “podem as cidades mudar o mundo?” Mesmo considerando que nos deparamos com diversos projetos de grande interessante espalhados pelo mundo, abordando de forma correta as questões mais cruciais das cidades contemporâneas, a apresentação é marcada por uma visível limitação: a incontornável disposição dos diversos governos municipais em salientar as qualidades maravilhosas de suas intervenções. O marketing das administrações muitas vezes embota a situação concreta das suas cidades, salientando ou arrefecendo fatos conforme sua conveniência imediatista, cujo subtexto são os interesses político-eleitorais.
No caso específico da exposição da cidade de São Paulo, temos uma exposição bem montada, com levantamentos estatísticos, diagnósticos, fotos aéreas, mapas e outras informações de grande relevo para a compreensão do atual estágio da metrópole. Também são selecionados projetos de grande impacto na cidade, como é o caso da nova estação de trem projetada pelo UNA Arquitetos para a CPTM e o projeto de reabilitação da área da Luz, projeto dos arquitetos da EMURB. Contudo, foram esquecidos os corredores de ônibus, fomentadores da revitalização de importantes áreas urbanas, ao mesmo tempo em que foi selecionado o projeto ganhador para a reforma do Elevado Costa e Silva (o famoso “Minhocão”), cuja execução sequer foi discutida. Mesmo às diversas escolas da FDE (Fundação do Desenvolvimento Escolar) apresentadas podemos levantar objeções, pois muitas delas sequer foram construídas na cidade de São Paulo e, mesmo considerando sua importância social e a qualidade arquitetônica inegável, não são comparáveis em importância aos CEUS, equipamentos muito maiores e de significado social flagrantemente superior.
Ora, a primeira das séries de escolas mencionadas foi construída pela administração estadual, nas mãos do grupo político à frente da atual administração municipal, enquanto a segunda foi marca registrada da administração anterior, hoje na oposição. A recente contenda eleitoral para a escolha do ocupante da principal cadeira administrativa do país, que acabou catalisando os conflitos políticos-partidários locais, parece ter se refletido em uma exposição de arquitetura no outro lado do oceano Atlântico, condicionando escolhas e omissões (14). É muito difícil acreditar que o mesmo não aconteceu nas outras curadorias que, mesmo considerando a boa vontade e inteligência aportadas, contam com o mesmo limite de estar se falando de um ponto de vista institucional comprometido, portanto a partir de interesses outros que não a qualidade intrínseca aos projetos expostos. Nesse sentido, parece termos aqui um problema causado pela concepção expositiva de Richard Burdett, que abriu flancos perigosos, imediatamente ocupados.
O marketing urbano, por sinal, é a presença mais destacada de toda a exposição, independente da qualidade do que é mostrado. Ele gerencia a exposição das qualidades insuperáveis de Nova York na forma de duas fotos magníficas do Central Park florido e dos arranha-céus imponentes em sua perfeição construtiva. Também dá o tom grandiloqüente da exposição londrina, que já está vendendo sua Olimpíada nos fóruns internacionais, ou da exposição de Barcelona, que quer nos convencer que a grande operação de especulação imobiliária intitulada “@22” conta com as mesmas qualidades presentes nas intervenções urbanas dos anos 1980, quando a cidade contava com a lucidez do intendente Pasqual Maragall e a inteligência estratégica do urbanista Oriol Bohigas. Mesmo o excepcional projeto para a frente marítima da cidade de Gênova, de autoria do arquiteto Renzo Piano, prioriza a estratégia governamental e maquetes magníficas, em detrimento de uma apresentação mais pacienciosa dos diversos aspectos de um projeto gigantesco.
Um dos pontos altos do marketing urbano é sem dúvida a exposição do novo sistema de metrô da cidade de Nápoles (15). A estratégia de comunicação e persuasão inclui desde a escolha de um nome de enorme apelo – Perì-Metrò – à escolha dos nomes dos arquitetos, a maioria deles pertencente ao jet set arquitetônico atual. O projeto da Stazione Municipio, por exemplo, foi encomendado aos arquitetos portugueses Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura. Ao arquiteto norte-americano Peter Eisenman couberam as Stazione Pompei Santuario e Pompei Scavi. Os arquitetos italianos Richard Rogers, Benedetta Tagliabue e Massimiliano Fuksas projetaram, respectivamente, as Stazione Capodichino Aerporto, Centro Direzionale e Duomo. Ainda sobraram estações para os britânicos Jan Kaplický e Amanda Levete do Future Systems, para o francês Dominique Perrault e para a iraniana Zaha Hadid, ganhadora do prêmio Pritzker, que foram responsáveis pelas Stazione Monte Sant’Angelo, Piazza Garibaldi e Napoli Afragola, respectivamente. Culminando a operação publicitária, a direção artística para instalação de obras de arte nas diversas estações foi atribuída ao crítico de arte Achille Bonito Oliva, conhecido por seu estreito contato com o mundo fashion.
Se há um excesso do princípio da realidade no uso e abuso do marketing, também é possível observar exposições marcadas por uma evasão que se recusa ao enfrentamento com a densidade histórica do mundo contemporâneo. Ao revisionismo da exposição L’altra modernità, curadoria de Claudio Guerrieri (16), que tenta reabilitar a arquitetura de teor neoclássico, associada no século XX às manifestações totalitárias européias, assim como à utopia presente na exposição Vema 2006 (17) de Franco Purini faltam o embate com a história, com seus ensinamentos e legados, que dão o contorno do que é possível pensar e fazer em um dado momento histórico. Nas formas neoclássicas construídas ao longo do século XX reluz a obsolescência e inadequação ao mundo contemporâneo, coordenado por novos paradigmas – informática, genética, ecologia, etc. Nas múltiplas formas urbanas e arquitetônicas, desenhadas por um amplo grupo de arquitetos convidados por Purini, é possível enxergar – como em qualquer utopia seja qual for a época aonde ela foi escrita ou desenhada – muito mais as mazelas e recorrências de nossa época do que possíveis saídas para o impasse para o estabelecimento humano de forma sustentável no globo terrestre.
As exposições nacionais nos pavilhões dos Giardini
As observações sobre aspectos recorrentes nas exposições do Arsenal servem em larga medida para as exposições nacionais na área dos Giardini. O constante apoio em projeções, o uso intenso de estratégias de marketing, o apelo à moda e à decoração, se amalgamam a projetos consistentes e compromisso coletivos forjados em debates democráticos.
Dentre os pavilhões nacionais, o primeiro a ser visto pelo visitante ao adentrar espaço positivo é o da Espanha, construção em tijolos que expõe a maestria da artesania merengue. A exposição Nosotras, las ciudades, curada por Manuel Blanco, é uma homenagem à mulher espanhola, em especial às arquitetas que trabalham ou trabalharam no país. Em uma única e grande sala, dezenas de vídeos de alta resolução, afixados em displays dispostos em formação cartesiana, trazem mulheres de diversos extratos sociais e das mais variadas profissões – inclusive arquitetas –, em tamanho natural, falando sobre assuntos diversos relacionados à cidade e à vida urbana. Nos displays estão também afixados projetos para várias cidades e assinados por Carmen Pinós, Benedetta Tagliabue, Carmen Calvo, Nathalie de Vries e outras arquitetas. A metáfora da cidade feminina deveria evocar, segundo a curadoria, a mensagem de que “nós, as cidades, as protagonistas, os avatares, a encarnação da sociedade, somos os cruzamentos do território real e virtual” (18). Mesmo considerando que ela foi premiada como a mais significativa dentre as presentes nos pavilhões nacionais, o ar ascético e sofisticado da exposição espanhola sugere mais o universo fashion do que os reais problemas urbanos enfrentados pelas grandes cidades.
A temática geral proposta por Richard Burdett – Cidades. Arquitetura e sociedade – ganha aqui uma das diversas interpretações e abordagens que materializaram exposições muito distintas e desiguais, seja na qualidade formal de seus suportes, seja na profundidade presente em seus conteúdos. Se o mundo da moda era sugerido sutilmente na exposição espanhola, em conflito franco com seu conteúdo engajado, na exposição canadense ele era mais explícito, com a presença de produtos industrializados – bicicletas, roupas, objetos diversos – a partir de tecnologias ecologicamente corretas. A face mais ostentatória da riqueza do primeiro mundo, que embrulha com discurso comprometido posturas arrivistas por seu caráter anti-universalista, contrasta com a pobreza do terceiro mundo, cruelmente gerada por mecanismos macro-econômicos excludentes na escala global e pelos eternos e corruptos sistemas de dominação locais. As favelas de São Paulo, Bogotá, Caracas e Cidade do México, espalhadas por latitudes diversas da América Latina, são apresentadas como desafios a serem vencidos, quando são na realidade a prova contundente de um status quo imutável. Como na exposição das 16 metrópoles na Corderie, a antinomia pobreza e riqueza se mostra previsivelmente esquemática.
Dois pavilhões nacionais se destacam por proporem exposições mais interativas com o público visitante. O da França traz uma casa com todos os seus cômodos, onde uma família hipotética deve habitar durante o período da Bienal. Os visitantes podem conversar e interagir com os “moradores”, ganhando camisetas estampadas há poucos minutos ou usando o computador gentilmente emprestado. Mesmo considerando que o texto curatorial da exposição aproxima a instalação com experiências concretas junto a comunidades carentes, o que sobressai é uma intromissão controlada, similar ao Big Brother televisivo (19). A interatividade é ainda maior na exposição inglesa, onde uma mesa imensa, cheia de recortes, cola e adesivos, permite que o visitante participe da construção de um grande painel coletivo, que se constitui na principal exposição do Pavilhão. A constatação é imediata: muita participação e pouca arquitetura!
A exposição presente no Pavilhão do Brasil é fruto de uma ampla discussão entre os membros da Comissão Curatorial formada por Jacopo Crivelli Visconti (coordenador) e pelos arquitetos Fernanda Bárbara, Fernando de Mello Franco, Guilherme Wisnik, Juan Pablo Rosenberg, Marcelo Morettin, Marta Bogéa e Martin Corullon. Formado basicamente por jovens arquitetos paulistas, o grupo propõe uma abordagem alternativa à adotada na exposição de São Paulo na mostra geral de Burdett. O tema São Paulo. Redes e lugares (20) se desenvolve a partir de duas pautas complementares: a “construção do território”, onde as redes e sistemas infraestruturais ocupam papel protagonista; e “programas e usos”, que selecionam atividades espontâneas e induzidas por equipamentos urbanos de grande significado social. As duas pautas entrelaçadas acabam apresentando uma metrópole multifacetada resultante de um processamento compacto e intenso, com sua beleza truculenta exposta de forma contundente, com a vida urbana cheia de ricos detalhes e entranhada em cada fissura material e em cada momento temporal.
A consistência e o vigor da abordagem dessa contemporaneidade aguda são limitados por dois aspectos distintos. Em primeiro lugar, a aposta radical em uma exposição baseada fundamentalmente em projeções, tornam válidas também aqui as observações críticas que fizemos anteriormente sobre essa questão. Em segundo lugar, a seleção de obras de arquitetura traz ícones da arquitetura paulista datadas de décadas (a única obra atual selecionada são as escolas do CEU, cuja ausência na exposição geral é compensada aqui). A Marquise do Ibirapuera (Oscar Niemeyer, 1954), a FAU-USP (Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, 1961), o Sesc Fábrica da Pompéia (Lina Bo Bardi, 1977) e o Centro Cultural São Paulo (Eurico Prado Lopes e Luiz Telles, 1982) são edificações de caráter urbano intensamente utilizados até hoje e exemplos excelentes do pensamento arquitetônico voltado para a coletividade (como já vimos, questão fucral para a curadoria geral de Burdett e adotada pela Comissão Curatorial da exposição no pavilhão do Brasil). Mas a hegemonia de projetos tão antigos em uma cidade tão dinâmica traz à tona a pergunta inevitável: não teríamos projetos igualmente qualificados e mais recentes para mostrar? A ausência de um número mais expressivo de projetos atuais pode significar tanto um equívoco da seleção curatorial (o que nos parece improvável, pelo que temos conhecimento), como a piora ou mesmo estancamento da construção de projetos relevantes de caráter social, o que inevitavelmente implicará em prejuízos para a renovação de nossa arquitetura.
Seja qual for a resposta, ressurge aqui, como um retorno cruel de uma imagem recalcada, o sentimento de reiterada e melancólica nostalgia evocada pelo velho pavilhão do Brasil, semi-abandonado nos Giardini de Veneza.
notas
1
Um retrospecto da evolução histórica da Bienal de Veneza pode ser encontrado em BUSETTO, Giorgio (org). Um secolo di architettura alla Biennale e in Europa. La Biennale di Venezia – Archivio Storico delle Arti Contemporanee. Venezia, Marsilio, 2006.
2
Idem, ibidem, p. 32.
3
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil . São Paulo, Perspectiva, p. 259.
4
Módulo, nº 38, dez. 1964, p. 32-37. A omissão do nome de Palanti na autoria do Pavilhão do Brasil em Veneza foi devidamente corrigida, conforme podemos observar nessa passagem: “Desta parceria surgiu o projeto classificado em quinto lugar no concurso para o plano piloto de Brasília, o projeto do Pavilhão do Brasil na XXX Bienal de Veneza, além de diversos projetos de residências, edifícios de programas complexos como indústrias, bancos, edifícios mistos com galerias em áreas centrais da cidade e hotéis além de projetos de urbanização, lojas, algumas exposições, e arquitetura de interiores”. SANCHES, Aline Coelho. A obra e a trajetória do arquiteto Giancarlo Palanti, Itália-Brasil. Dissertação de mestrado em arquitetura e urbanismo. São Carlos, EESC-USP, 2004, p. 211.
5
BRUAND, Yves. Op. cit., p. 258.
6
ANELLI, Renato; GUERRA, Abílio ; KON, Nelson. Rino Levi – arquitetura e cidade. São Paulo, Romano Guerra Editora, 2001, p. 246-247; 250-253.
7
Sobre o tema, ver TINEM, Nelci. “Arquitetura Moderna Brasileira: a imagem como texto”. Arquitextos, nº 072.2, São Paulo, Portal Vitruvius, maio 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq072/arq072_02.asp>.
8
Pavilhão do Brasil na Exposição de Nova York, 1942, projeto de Lucio Costa e Oscar Niemeyer; Pavilhão do Brasil na Exposição de Bruxelas de 1968, projeto de Sergio Bernardes; Pavilhão do Brasil na Exposição de Osaka, 1970, projeto de Paulo Mendes da Rocha. Até o pavilhão do Brasil em Sevilha (arquitetos Álvaro Puntoni e Ângelo Bucci, 1990) não construído, é mais conhecido.
9
“O pavilhão brasileiro, localizado no Giardini di Castello (o jardim sede da Bienal italiana), foi ‘totalmente depredado’, segundo Carlos Bratke, presidente da Fundação Bienal de São Paulo. A instituição é a responsável pela participação brasileira no evento, mas a manutenção do prédio cabe ao Itamaraty”. CYPRIANO, Fábio. “Depredação ameaça Brasil na Bienal de Veneza”. São Paulo, Folha de São Paulo, 15 jun. 2002 < www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u24824.shtml>.
10
“O setor arquitetônico da Bienal de Veneza de 1980, A presença do passado, anunciava de várias maneiras a emergência do pós-modernismo em nível global. [...] Contudo, apesar da tese defendida por Paolo Portoghesi na Bienal, o passado já era uma presença nos principais monumentos do período”. FRAMPTON; Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 370.
11
BURDETT, Richard; KANAI, Miguel. “City-building in a age of global urban transformation”. In BURDETT, Richard (org). Cities. Architecture and society. Volume I. Venezia, Marsilio, 2006, p. 3.
12
Cf. Verbete “Arsenale di Venezia“ da enciclopédia online Wikipedia.
13
Um ponto de vista parecido a respeito dessa questão é compatilhado em CORULLON, Martin. “Arquitetura, sociedade e arte. Bienais de Veneza e São Paulo”. Arquitextos, nº 077.3. São Paulo, Portal Vitruvius, out. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq077/arq077_03.asp>.
14
Os pontos altos da exposição de São Paulo na Corderie do Arsenale pode ser verificado no texto curatorial, apresentados em LORES, Raul Juste. “São Paulo, Brasil. Pioneira da globalização, a cidade simboliza os maiores contrastes”. Arquitextos, nº 077.1. São Paulo, Portal Vitruvius, out. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq077/arq077_01.asp>.
15
Exposição “The rail transport challenge in Naples and Campania”. Curadoria de Benedetto Gravagnuolo e Alessandro Mendini.
16
“L’altra modernità. La città mediterranea del XX secolo”. Módulo da Exposição “Città di Pietra”, curadoria de Claudio Guerrieri.
17
“Vema, a new Italian city for the Venice Biennale”, curadoria de Franco Purini. Novo Pavilhão Italiano, Arsenale.
18
BLANCO, Manuel. “Nosotras, las ciudades”. In BURDETT, Richard (org). Cities. Architecture and society. Volume II – Participating countries / Collaterals events. Venezia, Marsilio, 2006, p. 126.
19
Para uma opinião muito diversa da exposição francesa, ver CORULLON, Martin. Op. cit. <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq077/arq077_03.asp>.
20
VISCONTI, Jacopo Crivelli. Et al. “São Paulo. Redes e lugares”. Arquitextos, nº 077.2. São Paulo, Portal Vitruvius, out. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq077/arq077_02.asp>.
sobre o autor
Abilio Guerra, arquiteto, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.