Sob o tema geral “Cidades. Arquitetura e sociedade” abriu em Veneza em 6 de setembro a 10ª Mostra Internacional de Arquitetura e, menos de um mês depois, em 5 de outubro, foi inaugurada a 27ª Bienal de São Paulo, com o tema “Como viver junto”.
A notável ausência de arquiteturas na mostra italiana e a grande quantidade de referências às cidades, a espaços construídos, e as várias estruturas e dispositivos espaciais apresentados em São Paulo mostram uma inversão curiosa.
No entanto, os muitos pontos de contato e afinidades entre esses eventos revelam alguns aspectos do crescente diálogo entre arquitetura e arte. A aproximação se dá menos pela forma (1) que pelo uso de estratégias, com o foco em sua inscrição social, seja através de remontagens instáveis dessa forma e da natureza das coisas, seja como produção simbólica.
Há portanto uma forte componente política nas duas exposições. Embora menos contundente na Mostra de Veneza – porque diluída pela heterogeneidade dos pavilhões nacionais e pelo tom cuidadoso e isento da exposição central – é evidente na mudança de escala das discussões que a tônica não está nas soluções individuais, ou de bom desenho, e sim em intervenções sistêmicas ou infra-estruturais, necessariamente de caráter coletivo. Na Bienal de São Paulo a dimensão política fica visível não apenas nos trabalhos mais engajados, mas na escolha das âncoras conceituais do projeto curatorial. A ”presença” inspiradora de Helio Oiticica e seu programa ambiental, as intervenções ”anarquitetônicas” de Matta-Clark e a ironia de Marcel Broodthaers para com os sistemas de representação e as instituições do mundo da arte. Elas lastreiam obras recentes como as câmeras de segurança espalhadas pelo pavilhão de Niemeyer por Marcelo Cidade ou a neo-tropicália de Rirkrit Tiravanija, com sua instalação que invade uma ”Casa Tropical”, abrigo industrializado projetado por Jean Prouvé para utilização no Congo. Trata-se da ênfase na dimensão política do objeto arquitetônico ou artístico baseada em seu valor de uso e em todas as relações envolvidas em sua produção e consumo e não apenas em seu valor estético.
A idéia de infra-estrutura – urbana e como conjunto de relações sociais e econômicas – está subjacente às duas exposições.
10ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza
A principal exposição da 10ª Mostra de Arquitetura de Veneza, “Cidades. Arquitetura e Sociedade” tem curadoria do inglês Ricky Burdett. Ele coordena o Urban Age (2), uma série de conferências realizadas em seis metrópoles do mundo e em parte concluída, em que se discutem temas como mobilidade, habitação, mercado de trabalho e vida pública. Conta com a participação dos agentes locais envolvidos em políticas urbanas e um grupo de intelectuais, entre os quais Saskia Sassen, Richard Sennett e Rem Koolhaas. Essa iniciativa foi a matriz conceitual do apresentado no Arsenale.
Ao longo dos trezentos metros da Corderie, foram distribuídas as dezesseis metrópoles escolhidas para servir de base às pesquisas da curadoria. Agrupadas por continente, apresentam uma seleção de dados estatísticos, um breve texto, imagens representativas, às vezes em movimento, e uma seleção de projetos que lidam com a condição metropolitana de seu contexto.
Embora bem montada e eficiente, a aproximação à questão metropolitana valendo-se de estatísticas comparativas em uma exposição dessa dimensão não permite uma leitura que ultrapasse o caráter de curiosidade. Também é evidente que a discussão entre arquitetos sobre estratégias de intervenção nessa escala é ainda muito incipiente (3).
Tókio é a cidade que expressa a visão mais interessante sobre o fenômeno urbano contemporâneo. O texto é do Atelier Bow-Wow, que participa também da 27ª Bienal de São Paulo. Para a dupla de arquitetos, muito mais que pela herança de uma urbanização pós-segunda guerra de influência européia e suas discussões sobre os limites do público e do privado, o caráter da Tókio contemporânea é produzido pelas tentativas de gerenciamento de fenômenos naturais, como terremotos e inundações, e de fenômenos de uma segunda natureza produzida pela própria cidade, como fluxos de carros, populações e lixo. Sem uma visão global, cada intervenção responde a demandas criadas por esses fluxos, que são alterados por essa intervenção, criando assim novas demandas e engendrando novos projetos, em uma sucessão infinita.
“A metrópole deve ser entendida como uma sobreposição de diferentes fluxos. [...] Sob o aparente caos há uma complexa e consistente assemblage de sistemas urbanos, cujas interações não podem ser plenamente reguladas. Os numerosos grand projets propostos parecem seguir uma lógica mais sistêmica que espacial. [...] A produção do espaço urbano em Tókio pode ser lida como uma criativa tensão entre o sistema de gerenciamento de fluxos e a soma das práticas espaciais individuais pelas quais os tokioitas dão forma à sua cidade” (4).
Uma abordagem teórica que permite pensar novas estratégias de intervenção mais efetivas e aplicáveis, especialmente nas metrópoles não-européias, em lugar dos mega-projetos ainda produzidos. Esse modelo de mega-intervenção está presente também na mostra: é o iniciado por Barcelona, com os Jogos Olímpicos e repetido com nem tanto sucesso e muita polêmica no Fórum 2004. Pequim, Londres e Genova também mostram grandes projetos ligados a eventos como forma de obter financiamentos e parcerias com o setor privado para obras infra-estruturais e de desenvolvimento de grandes áreas. Paira, no entanto, uma dúvida sobre os reais beneficiários desses processos.
Entre os Pavilhões Nacionais, o da França é o que mais chama a atenção. Por obra de Patrick Bouchain o edifício francês foi tomado por uma cozinha, um estúdio, quartos, piscina, sauna. Toda a infra-estrutura foi montada com sistemas de andaimes e painéis industrializados e o transformou em um lugar vivo, um canteiro em obras. Convida os visitantes a usar o espaço e reduz a intervenção ao mínimo, ao programa, no qual as relações entre os que usam estão em primeiro plano. Em meio a esse cenário, há a exposição de alguns trabalhos desenvolvidos em afinidade com esses princípios, como o “Notre Atelier Commun”: um escritório de arquitetura nômade, que se desloca entre as comunidades, identifica suas necessidades, planeja, projeta e executa as construções por elas desejadas. Em um dos informes produzidos e impressos lá mesmo, Bouchain faz um elogio ao canteiro como espaço de liberdade, experimentação e formação.
Há uma clara ligação com a estética relacional de Nicolas Borriaud, participante do seminário “Trocas”, promovido pela 27ª Bienal, que foi diretor do Palais de Tokyo, em Paris. Ele analisa obras de artistas contemporâneos em que as relações entre indivíduos, e entre indivíduos e coisas, lugares, fenômenos, são as formas dadas a serem manipuladas, revelando o caráter não definitivo do “mundo”. Negam assim uma construção utópica e propõe uma negociação entre as formas que já existem, ativando fluxos de trocas.
Diversos pavilhões apresentam instalações, como o da Hungria em que exércitos de bichinhos e brinquedos fabricados na China reagiam à passagem dos visitantes com sons, luzes e movimentos, numa um tanto histérica e ambígua alegoria da invasão chinesa ao mercado mundial. Ambígua porque outros Pavilhões aderiram explicitamente ao fascínio proporcionado pelo país em que se produz atualmente 50% de toda a área construída no mundo. Caso da Dinamarca, que montou uma exposição sobre a China e com texto em chinês.
Mais crua e direta, com um discurso panfletário, é a mostra da Venezuela. Fotos dos “Barrios” de Caracas, o equivalente às favelas, acompanhadas por textos como: “Entendam isto: nossas cidades nasceram de uma sociedade diferente. Nós não podemos imitar vocês. Nosso mundo é diferente. Tem diferentes raízes e outro destino. Suas receitas, que são as receitas do entretenimento, não nos servem. […] Não nos julguem sem nos entender. No futuro nos talvez sejamos capazes de ensinar algo a vocês.”
27ª Bienal de Arte de São Paulo
A Bienal de São Paulo, cujo projeto curatorial foi formulado por Lisette Lagnado e contou com a colaboração de um grupo internacional de co-curadores, apresenta algumas novidades em relação às edições anteriores. A primeira diz respeito à própria escolha do curador. Selecionado por um júri, o aspecto público do processo trouxe, por um lado, segurança à instituição quanto à qualidade da proposta e, por outro, fortaleceu e legitimou o projeto curatorial. Dadas essas condições pôde abolir as representações nacionais, herança do modelo herdado da Bienal de Veneza. Apesar de garantir parte dos recursos necessários à produção do evento, as escolhas de obras desconectadas do conceito geral, a cargo dos órgãos oficiais dos países, desarticulavam a unidade e coerência da exposição.
Dividida em blocos conceituais que acabam por se fundir no espaço expositivo de vinte mil metros quadrados do pavilhão projetado por Niemeyer, a 27ª Bienal é pontuada por “praças” definidas por um piso destacado, como a que abriga a seção sobre Broodthaers. A grande permeabilidade da montagem permite uma relação intensa do público com o edifício e com as obras.
Ainda assim há espaços íntimos como o da ucraniana Kristina Solomoukha, no qual estão expostas paisagens desertas de nós rodoviários, em grande contraste de escalas.
O pavilhão de Dan Graham, a construção de Marjetica Potrc, as fotos de Istambul e Brasília de Restiffe, o poste-lugar de Didier Faustino, o trabalho de Lara Almarcegui, que pesou a cidade de São Paulo e catalogou os terrenos vagos, os filmes da desconstrução de Matta-Clark, entre muitas outras obras, tem como matéria o espaço construído e sua produção.
A diversidade e recorrência das aproximações às cidades e ao espaço construído na Bienal de São Paulo e a ênfase na escala metropolitana na Mostra de Veneza, mudando necessariamente o foco do desenho do objeto para o conteúdo político e social envolvido na produção desse espaço, indicam uma convergência de agendas entre as disciplinas e reafirmam a relevância dessa discussão num mundo que se deseja sustentável.
Notas
1
"Formalismo estético e arquitetura funcional são filosoficamente semelhantes. Pelo mesmo viés, a arquitetura funcional e a arte minimalista têm em comum uma crença subjacente na idéia kantiana de forma artística como uma 'coisa em si' perceptível/mental, que supõe que os objetos de arte são a única categoria de objetos 'sem uso', objetos com que o espectador tem prazer sem interesse. [...]. Elas compartilham uma crença na forma 'objetiva' e numa auto-articulação interna da estrutura formal em aparente isolamento de códigos de significado simbólico (e representativo). Tanto a arte minimalista quanto a arquitetura funcional negam significados sociais e conotativos, e o contexto de outra arte ou arquitetura.” Dan Graham, in DISERENS, Corinne. O filme arquitetônico de Matta Clark. Trópico <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1095,1.shl>.
2
A íntegra das apresentações e debates pode ser acessada no website Urban Age. A worldwide series of conferences investigating the future of cities <www.urban-age.net>.
3
“Hoje nós temos uma discussão sobre as cidades que não tínhamos há cinco anos, simplesmente porque não havia nem o contexto nem os mecanismos para o debate. Nós somos a primeira geração de arquitetos que teve a experiência direta de trabalhar em tantos sistemas urbanos diferentes ao mesmo tempo.” KOOLHAAS, Rem. Cities. Architecture and society. Catálogo da 10ª Mostra Internazionale di Architettura, La Bienale di Venezia. Veneza, Marsílio, 2006, p. 74.
4
KAJIMA, Momoyo; TSUKAMOTO, Yoshiharu. “Tokyo, Japan”. In Cities. Architecture and Society. Catálogo da 10ª Mostra Internazionale di Architettura, La Bienale di Venezia. Veneza, Marsílio, 2006, p. 238.
sobre o autor
Martin Corullon é arquiteto e titular do escritório Metro Arquitetos.