Um toque de recolher informal paralisou São Paulo, a maior e mais rica cidade do Brasil. Em maio passado, por três dias, ônibus deixaram de circular, escolas dispensaram seus alunos, empresas fecharam no meio do expediente. Um grupo mafioso, PCC (Primeiro Comando da Capital), protestou contra a transferência de presos do grupo, matando 45 policiais e espalhando um clima de terror em toda sua região metropolitana, com 18 milhões de habitantes e que concentra 20% do PIB brasileiro. A reação da polícia não demorou. Em confrontos na periferia, foram mortos pelo menos 122 civis. Só que boa parte deles não tinha nenhum antecedente criminal. A repressão não causou maiores protestos.
Uma semana após o toque de recolher aconteceu a festa de lançamento do maior empreendimento imobiliário da história recente de São Paulo, o “Parque Cidade Jardim”. Um complexo de US$ 700 milhões, com 6 torres residenciais, 5 torres de escritórios e um shopping center. A arquitetura é um cruzamento entre Versalhes e Las Vegas. Seus promotores vendem a idéia de morar, trabalhar e curtir o ócio (ou seja, fazer compras), em um mesmo lugar “protegido”. 60% dos apartamentos, com valores entre US$ 800.000 e US$ 12 milhões, já estavam vendidos durante a comemoração.
No lugar onde será erigido o “Parque Cidade Jardim”, está instalada há décadas a Favela Panorama. Para o dia do lançamento, os empreiteiros providenciaram tapumes, que emparedaram a Panorama. Os bunkers fazem sucesso. Enquanto o comércio de rua da cidade está agonizando, existem 75 prósperos shopping-centers.
Na outra ponta de São Paulo, fica Cidade Tiradentes, o maior conjunto habitacional do país. Foi construído por sucessivos governos estaduais e municipais sobre uma área de mata atlântica, lagos e córregos. São centenas de predinhos iguais, cercados por favelas. Lá vivem 200.000 pessoas, a 40 quilômetros do centro da cidade. Há vinte anos, a maior parte dos conjuntos habitacionais é construída na extrema periferia. Sem metrô ou transporte público de qualidade, o trabalhador de Cidade Tiradentes pode levar de duas a três horas para chegar ao trabalho. O mesmo tempo para voltar. Apesar de existir há mais de 20 anos, o bairro ainda não possui nenhuma biblioteca, nenhum cinema, nenhuma agência bancária.
São Paulo tem 1.500 km2. Tinha 240.000 habitantes em 1900. Sem incluir a região metropolitana, o município chega hoje a quase 11 milhões. Em 1981, com 8 milhões de habitantes, havia 1,6 milhão de carros. Hoje, circulam por suas ruas 6 milhões de carros. São licenciados mil novos carros por dia. O transporte público cresce em uma velocidade bem menor. O metrô, que começou a ser construído em 1968, tem 60 km. Equivale a menos de um terço do metrô da Cidade do México, que começou um ano depois. Há apenas 26 km de ciclovias, das quais 20 estão dentro de parques. Mas há 1.000 helicópteros privados – a segunda maior frota particular do mundo.
O Centro da cidade vive um processo de decadência desde os anos 70. Várias campanhas de revitalização surtiram efeito mínimo. Os maiores empreendimentos imobiliários e as grandes empresas fogem dali. 18% dos domicílios do Centro estão vazios. Prédios inteiros desabitados há mais de uma década. Nas regiões oeste e central da cidade, onde está localizada a melhor infra-estrutura pública, o número de habitantes não pára de diminuir. Há 3 empregos por habitante. Em Cidade Tiradentes, a taxa é de 0,08 por pessoa. Pelo desequilíbrio entre a moradia e o local de trabalho, os deslocamentos sobrecarregam o transporte coletivo.
A periferia não pára de inchar. Cerca de 35% do município é área de proteção ambiental. Parte desse território abriga as duas represas que fornecem água aos paulistanos. Ao redor delas, invasões com barracos de madeira se multiplicam destruindo a área de mananciais. Há 1,6 milhão de habitantes entre as bacias das represas de Guarapiranga e Billings. As ligações clandestinas de água e esgoto afetam a água que será fornecida para o resto da cidade. A população que cresce mais se concentra nas regiões menos dotadas de infra-estrutura urbana, lazer, social, e de emprego.
São Paulo é um resumo dos conflitos Norte-Sul no mundo. Os melhores sistemas de previdência social estão em países com baixa natalidade e uma população que envelhece. Já nos países de farta população jovem não há sistemas de proteção social. Só que os países mais ricos constroem muros virtuais ou de verdade para impedir a chegada de pobres. Como precisam dessa mão de obra barata, criam sistemas que perpetuarão a ilegalidade e a “segunda classe” de parte desses cidadãos. São Paulo já é amuralhada.
Antropofagia e ousadia
Nem sempre a cidade foi um ímã para trabalhadores. Apesar de fundada pelos jesuítas em 1554, a cidade hibernou por quase três séculos. Não estava na costa, nem abrigava ouro e minerais preciosos. Na independência do Brasil, em 1822, tinha apenas 7.000 habitantes. Em 1870, eram apenas 30.000 habitantes. Graças ao café, que se desenvolveu no interior do estado, atraiu milhões de imigrantes para cultivá-lo. Por sua posição geográfica, como ponto de partida dos rios que vão ao interior, e no final do platô que leva ao porto de Santos, a cidade capitalizou toda essa nova riqueza.
Nunca foi capital. A industrialização do Brasil encontrou em São Paulo mão de obra mais capacitada que em outras regiões que viveram exclusivamente do trabalho escravo. Os filhos dos imigrantes foram estimulados a estudar e triunfar no novo mundo. Aqui surgiriam as melhores universidades do país.
São Paulo antecipou a globalização. Sem guetos, misturou japoneses a italianos, judeus a árabes, espanhóis a e armênios, portugueses a negros, índios e mulatos vindos de todo o país. Os jovens da elite, que estudavam no exterior e descobriram as vanguardas européias, promoveram a Semana de Arte Moderna em 1922. Eles defendiam a “antropofagia”. Devorar as artes e as influências estrangeiras como os índios canibais fizeram com os primeiros portugueses. Jamais se limitar à cópia. Villa-Lobos incorporou ritmos populares à música erudita. Niemeyer deu curvas ao modernismo. A bossa nova abrasileirou o jazz, o tropicalismo canibalizou o rock.
Le Corbusier e Bauhaus foram devidamente tropicalizados em São Paulo.
O Centro da cidade e o bairro de Higienópolis se transformaram em um kindergarten para jovens arquitetos, muitos deles foragidos da Europa em guerras. Uma coleção de belos prédios residenciais são testemunhas dessa época. Vários aventureiros deram vazão a seus sonhos. Imigrantes e seus descendentes, como Giuseppe Martinelli, Pepe Tjurs e Artacho Jurado, construíram alguns dos maiores arranha-céus da cidade. Assis Chateaubriand e Cicillo Matarazzo, os únicos grandes mecenas paulistanos, criaram as maiores coleções de arte do país. Estúdios de cinema, de televisão e a poderosa Bienal de Artes eram cenários da vitalidade paulistana ao comemorar o IV Centenário de sua fundação, em 1954.
A usina de oportunidades lhe custou o inchaço. O crescimento (dinheiro) em excesso lhe fez mal à aparência, como a pessoas que não sabem a hora de parar com o bisturi. Durante a ditadura militar, São Paulo permitiu que um elevado de mais de 3 quilômetros de extensão, apelidado de “Minhocão”, rasgasse tradicionais avenidas, esvaziando os belos edifícios residenciais à sua volta. Há 70 anos o carro tem todas as prioridades da iniciativa privada e do poder público. Bilhões de dólares foram gastos em túneis, em viadutos, em vias rápidas.
Nos últimos anos, túneis foram construídos para facilitar a vida de quem mora em bairros de elite, como Jardins e Morumbi. Eles já se tornaram tão intransitáveis e engarrafados como a superfície. Os maiores projetos atuais da prefeitura querem alargar vias rápidas. Apesar dessa mesma política ser desenvolvida há quarenta anos, e o trânsito só piorar, o transporte particular ainda é prioritário para as administrações locais. Às sextas-feiras, a cidade chega a 180km de congestionamento em um mesmo horário.
A fuga dos mais ricos
Esse processo foi acompanhado com a migração interna dos mais endinheirados à zona oeste do município. Nas últimas três décadas, regiõess como Morumbi, Berrini, Alphaville e Vila Olímpia passaram a concentrar residências e escritórios de alto padrão. Em nome da segurança, muros foram ganhando metros, carros são blindados e áreas da cidade já nascem inóspitas, sem praças, sem calçadas, sem transeuntes. Um esconderijo sem resultados: a violência explodiu na cidade, ignorando muros altos e guardas particulares armados. Em 1970, havia 9,7 homicídios por 100.000 habitantes. Chegou a 35 em 1999. Hoje está ao redor de 18,2 por 100.000. A maior parte das mortes acontece na periferia.
Nos tempos áureos, São Paulo teve ótima arquitetura. Tem um acervo de construções desenhadas por dois vencedores do Prêmio Pritzker, Paulo Mendes da Rocha e Oscar Niemeyer. Este último desenhou seu mais emblemático parque (Ibirapuera) e prédio (Copan). A italiana Lina Bo Bardi, que desenhou seu mais famoso museu, o Masp, e um teatro revolucionário (Oficina), transformou uma antiga fábrica de tambores e geladeiras em um dos centros culturais, esportivos e sociais mais vibrantes do Brasil, o Sesc Pompéia.
Nem todos os erros e omissões urbanísticas cometidas conseguiram conter o impulso criador da powerhouse do Brasil. Aqui estão as maiores indústrias e bancos do país, suas melhores universidades e companhias de teatro, algumas das mais premiadas agências de publicidade do planeta e uma emergente indústria da moda. Mais de 13.000 restaurantes confirmam seu melting pot e seu imenso poder de atração para gente de todo o mundo. São Paulo abriga a maior parada do Orgulho Gay do planeta, com 2 milhões de pessoas, o que prova que nem marés conservadoras que afetam o mundo conseguem dobrá-la. O êxodo da elite ainda continua para bairros fechados, com nomes bucólicos: Parque Cidade Jardim, Aldeia isso, Chácara aquilo e por aí vai. Essa elite vai enfrentar ainda mais tempo no trânsito para chegar a seus refúgios. E não vai usar seus estudos no exterior, seus recursos ou idéias para arranjar respostas a uma cidade que está atolada em problemas, mas que pode e deve reagir. Dentro desses bairros fechados, ela está longe dos melhores restaurantes, galerias de arte, museus, teatros, cinemas. Sem desfrutar o caos, a energia e a diversão que só uma metrópole com 18 milhões de brasileiros pode oferecer.
nota
1
Artigo publicado em BURDETT, Richard. Cities. Architecture and society. Catálogo oficial da 10ª Mostra Internazionale di Architettura da Biennale di Venezia. Mestre-Venezia, Marsilio, 2006, p. 96-105.
sobre o autor
Raul Juste Lores, jornalista, escreve na editoria internacional da Folha de São Paulo. Em 2005 foi assessor especial da Secretaria de Relações Internacionais do governo municipal de São Paulo. De 1997 a 2003, escreveu para a revista Veja na condição de editor de assuntos internacionais e correspondente em Buenos Aires.