A representação do Brasil na Mostra Internacional de Arquitetura de Veneza insere-se no contexto da exposição “Cidades, Arquitetura e Sociedade” como uma leitura de São Paulo, escolhida pela curadoria geral da Mostra como uma das metrópoles a serem debatidas.
Essa metrópole se fez a partir das respostas concretas às urgências de um processo tardio de industrialização, porém extremamente veloz. Como decorrência, a construção da base material técnica de amparo à produção representa uma das principais lógicas a nortear o seu desenvolvimento. A estruturação do espaço urbano pode ser compreendida pela implantação de sua infra-estrutura, em que se destacam as redes de circulação motorizada (trens e automóveis).
Os sistemas urbanos contêm atributos capazes de organizar as inter-relações físicas, espaciais e funcionais de parte significativa dos elementos pertencentes à metrópole. Uma idéia a ser investigada, conseqüentemente, é como a intervenção sobre as formas de uso desses sistemas pode ser uma estratégia possível para se enfrentar a passagem da condição de “metrópole industrial” para a condição de “metrópole contemporânea”.
O relacionamento entre as noções de território, técnica, programas e usos, propõe a indagação sobre a posição limítrofe das ações de projeto. Pois é seguro que inúmeras ações deliberadas e concatenadas incidem sobre a contínua reconstrução do espaço metropolitano, ainda sob uma visão tecnocrática e sob um ímpeto por um controle que não há, nem haverá.
Compreender a dinâmica sistêmica da metrópole contemporânea; relacionar redes e localidades; identificar os elementos que conferem estabilidade à mobilidade; potencializar os pontos de contato; articular a diversidade de programas e atribuir valor de uso aos lugares, são algumas das ações a serem redefinidas pelo projeto. Ações reconhecidas como possíveis e desejáveis quando se compreende que a configuração da cidade como um projeto sistêmico pode ser uma resposta à velocidade de transformação imposta pela contemporaneidade.
Essas e outras reflexões coletivas, conduzidas por um grupo de profissionais convidado pela Fundação Bienal de São Paulo, resultaram na organização de uma exposição constituída por blocos que abordam, respectivamente, a construção técnica do território e a criação dos lugares. O intuito é aproximar-se da dimensão cotidiana da vida na cidade, ao conferir um valor de morada ao espaço construído.
Construção do território
A cidade de São Paulo, fundada em 1554, surgiu como um núcleo de povoamento jesuíta estrategicamente situado às margens do rio Tietê – importante veículo na conquista dos territórios continentais interiores – e do porto marítimo, debruçado sobre a Serra do Mar, num planalto situado a aproximadamente 700 metros acima do nível do oceano. Próxima à cabeceira do Tietê, a cidade se desenvolveu sobre as colinas vizinhas a vales, alagados pelo curso lento e serpenteante do rio, desde sempre determinante na forma de ocupação da cidade. Outros importantes rios e córregos contribuem para o seu regime hídrico, tais como o Aricanduva, o Tamanduateí e o Pinheiros, que forma, ao sul, as represas Billings e Guarapiranga, importantes reservatórios de água na cidade. No seu conjunto caracterizam o que se convencionou chamar a Bacia de São Paulo.
Formada por uma sucessão de vales e cristas, essa topografia pode ser definida como um "mar de morros", como percebeu Le Corbusier ao visitá-la em 1929. Sua proposta urbanística, desenhada em forma de croquis nessa ocasião, identificava exatamente essa característica, sugerindo a construção de "terrenos artificiais" quilométricos (megaestruturas em que se somariam edifícios lineares a autopistas) que interligassem as cotas altas da cidade, revelando a sua topografia acidentada. A clareza dessa proposta, independente da avaliação que possamos fazer acerca de sua viabilidade ou interesse, está em agir na escala da metrópole com um desenho de infra-estrutura. Raciocínio que vem acompanhado de uma inteligência poética quanto à importância da topografia na sua configuração espacial, uma vez que esta não é nem explicitamente acidentada e definidora da paisagem, como no Rio de Janeiro, Caracas ou La Paz, por exemplo, nem suficientemente tênue e discreta a ponto de não protagonizar o processo de ocupação do território, como em Nova York e nas principais capitais européias (com a exceção significativa de Lisboa). Em São Paulo, a diferença de cota entre a várzea do Tietê e o espigão da Avenida Paulista, platô mais elevado de sua área central, é de aproximadamente 100 metros.
O desenvolvimento da ocupação urbana de São Paulo descreve um movimento que se inicia nas terras altas e salubres, e vem lentamente a se estabelecer nas várzeas inundáveis. Estas planícies, desvalorizadas do ponto de vista comercial, e apresentando facilidades como meio de transporte, tornaram-se estratégicas no sistema de deslocamento e escoamento de mercadorias na cidade. Desde logo estabeleceu-se no processo de estruturação da metrópole, então, uma associação entre os fluxos viários e hídricos em São Paulo.
Uma interpretação possível para o desenvolvimento de São Paulo tem como foco essa lógica territorial de amparo às atividades produtivas. Para tanto, destaca-se a interação de três fatores que fizeram das várzeas e planícies fluviais da Bacia de São Paulo um território estratégico: a implantação da ferrovia; o baixo preço e a pouca declividade das terras; e a abundância de água, origem da industrialização da cidade.
Cronologicamente, esse processo é comandado pela implantação sucessiva dos ramais ferroviários, pela canalização dos rios e córregos, ambos iniciados na segunda metade dos século XIX; pela implantação do sistema viário estrutural com a construção das Marginais, entre as décadas de 50 e 80 do século XX; e pela aprovação de normas e regulações de uso e ocupação da terra que incidem diretamente sobre as várzeas, desde os anos 70 até os dias de hoje.
A construção ininterrupta das redes infra-estruturais tem implicado em uma profunda transformação do sítio eleito pelos colonizadores, atualizada nas tecnologias disponíveis, mas reincidente nas formas de ocupação do território. A viabilização das áreas algáveis dos rios, originalmente inapropriadas, é uma diretriz traçada através da história da cidade. A construção do território como um objeto técnico a amparar a produção resulta de uma postura que se sobressaiu perante os conflitos da urbanização característica de São Paulo
Ao longo do século XX, a cidade tornou-se uma metrópole industrial, vindo a ser, a partir dos ano 50, a capital financeira do país, e o principal centro de negócios da América do Sul. Toda a abrangência e intensidade da produção que passou a se desenvolver na metrópole, incluindo as etapas de fabricação, armazenamento, escoamento e comercialização de produtos, dependeu da eficácia do sistema técnico implantado para sustentar essa rede.
A leitura inicialmente aqui proposta, procura revelar os impactos contraditórios dessa conformação territorial sobre as diversas escalas da cidade. Pois, se por um lado, no plano aproximado das vivências locais as relações urbanas se vêem esgarçadas por essas ações eminentemente técnicas, por outro, é preciso apontar a potencialidade articuladora que apenas as ações sistêmicas representam.
Trata-se, portanto, de atribuir um olhar arquitetônico a essas obras, conduzidas via de regra pelo pragmatismo técnico que, na maior parte dos casos, termina por desertificar os espaços na escala local da cidade.
Tendo em vista a escala da metrópole, a preocupação com o desenho arquitetônico deve incidir estrategicamente sobre as possibilidades de relacionamento entre eles e as localidades, pois são estes os elementos que podem operar reorganizações significativas no seu conjunto. De que modo esses sistemas e equipamentos em rede são efetivamente usados pela população?
Como recurso museográfico, o registro das formas de ocupação desse território – lentas e descontínuas ao longo de quatro séculos, e vertiginosamente aceleradas nos últimos cinqüenta anos – é captado através de materiais cartográficos, fotográficos, e pela abrangência das visões aéreas, todos apresentados sob a forma de projeção fílmica.
O sobrevôo pela cidade procura dar conta, no registro da exposição, da experiência sensorial da metrópole: espraiada, tentacular, multiforme etc. Contudo, não se trata, aqui, nem de um elogio acrítico do concerto "polifônico" que comanda a vivência heterogênea da cidade, nem de um questionamento direto da dinâmica perversa que rege o processo profundamente desigual e excludente de ocupação dos seus espaços. Procura-se, antes, convidar o espectador a penetrar na infinitude homogênea desse tecido urbano que se estende por uma área de 2.139 quilômetros quadrados, e que abriga 18 milhões de habitantes na chamada "Grande São Paulo".
Confrontar essa escala com o número de deslocamentos efetuados na metrópole, na ordem de 31 milhões por dia, distribuídos de forma equivalente entre os modos coletivo, individual e a pé – aproximadamente 10 milhões cada – sugere a existência de uma infinitude de trajetórias, narrativas e imagens da cidade, que são construídas cotidianamente. Entrelaçadas, relacionam-se invariavelmente com os sistemas de mobilidade disponíveis em São Paulo.
Significativamente verticalizada, e construída a partir de uma legislação que estabelece poucas singularidades (como distinções de gabarito e ocupação dos lotes), a cidade, vista de cima, apresenta um tecido descontínuo e fragmentado, tornando-se reconhecível apenas na escala dos principais sistemas infra-estruturais de engenharia que atravessam o seu território (nós e eixos de circulação expressa). Essas "artérias", responsáveis pela articulação entre os diversos setores da metrópole, se tornam muitas vezes "cicatrizes" na escala local, contribuindo para o esgarçamento dos seus espaços públicos, e para a degradação de bairros inteiros.
Desde essa visão panorâmica, em "vôo de pássaro", podemos identificar os eixos de estruturação funcional da metrópole. Pretende-se, a partir daí, criar condições para que se possa indagar quais seriam os pontos de mediação possível entre as diversas escalas que se sobrepõem na metrópole. E promover um mergulho que se desloca das formas de ocupação do território, em direção as formas de apropriação do espaço.
1. Redes e sistemas
São Paulo está em movimento constante. A cidade recebe um volume de investimento significativo para o contexto brasileiro, ainda que insuficiente para atender a totalidade das demandas por habitação, equipamentos e serviços urbanos. No caso dos investimentos públicos, têm se destacado as ações voltadas para a atualização das redes de infra-estrutura, sobretudo nos setores de transportes e recursos hídricos que trazem grande impacto na estrutura urbana.
Os fluxos viários e os fluxos hídricos estão comprometidos entre si a partir das diretrizes historicamente definidas ao longo do desenvolvimento da metrópole, pois a rede estrutural de transporte foi implantada em conformidade à estrutura da bacia hidrográfica de São Paulo. O incremento da mobilidade e a escassez dos recursos hídricos, questões cruciais a serem enfrentadas no século XXI, reforçam o estreitamento dos seus laços. Reafirmam a condição estratégica da parcela do território das várzeas que recebem os principais sistemas técnicos. Essa condição torna-se mais contundente quando temos conhecimento de que esses sistemas se relacionam diretamente às áreas que abrigam o parque industrial, ora em transformação.
O processo de reestruturação produtiva tem, em grande escala, posto em disponibilidade vastas áreas urbanas. O fenômeno não é novo e pode ser reconhecido em todas as demais metrópoles industriais do planeta. Em São Paulo, a requalificação dessas áreas ainda não ganhou impulso suficiente para ser dado como um processo já determinado.
Diante do acento técnico que tem conduzido o debate e as ações públicas, parece oportuno redirecionar a reflexão para uma dupla questão: como coordenar as ações setoriais e como agregar uma nova agenda programática que potencialize a dimensão urbana das redes infra-estruturais, de maneira a agirem como agentes de reestruturação da vida metropolitana.
As “redes sem programa” e os “programas em rede”, articulados entre si, permitem identificar alguns dos pontos de contato entre as intervenções locais e a visão sistêmica necessária para se enfrentar a complexidade das demandas continuamente em transformação.
Nesse módulo, em confronto com um ponto de luz que, sobre um veículo ferroviário, percorre a extensão dos trilhos urbanos, são apresentados exemplos de equipamentos que se destacam pela trama complexa que estabelecem no território, funcionando em rede. Com presença marcante na escala da metrópole, foram escolhidos tanto pela excelência construtiva de suas edificações quanto pela relevância dos seus programas. São eles um Centro de Cultura e Lazer patrocinado por uma organização comercial – o Sesc (Serviço Social dos Comércio) –, uma rede pública de escolas que funcionam como centros comunitários de lazer e cultura em bairros carentes da cidade – o CEU (Centro Educacional Unificado) –, e organizações de comerciantes associados à complexa logística de abastecimento alimentício da cidade – as Feiras Livres.
Diferentemente das infra-estruturas técnicas, estas são ações projetuais, espacialmente qualificadas. Caracterizam-se pela diversidade de programas, de usos e de usuários que compartilham um mesmo equipamento, e distribuem-se em rede pela cidade de acordo com lógicas locacionais, de acessibilidade e de atendimento, que revelam a forma de distribuição dos serviços urbanos no território. Assim, ainda que pontuais quanto à escala de intervenção, atendem a demandas metropolitanas, configurando-se, em alguns exemplos, simultaneamente como pólos de estruturação urbana local e metropolitana.
Outrem
“Outrem” é um trabalho realizado para a exposição “Rede de Tensão” comemorativa aos 50 Anos da Fundação Bienal de São Paulo, ocorrida em 2001. É composto por uma intervenção urbana concebida por Angelo Bucci, Milton Braga e Fernando de Mello Franco, e por uma instalação multimídia de autoria de Joel Pizzini e Gianni Toyota.
O trabalho expande-se para além de uma representação de um projeto, para ser ele mesmo uma arquitetura, ou seja, uma ação de transformação de lugares. A questão colocada era provocar a maior reverberação possível na escala de São Paulo, a partir de uma obra pontual. Um ensaio de uma estratégia de intervenção na metrópole.
“Outrem” origina-se de um olhar sobre o extenso território fabril e ferroviário de São Paulo, sobre o qual se pode delinear uma previsível transformação. A intervenção urbana equipa com projetores de luz uma composição ferroviária de manutenção que percorre o traço de uma estrutura presente em toda a metrópole. Esse foco de luz, uma vez em movimento, risca um traço fundamental de São Paulo: seu sistema ferroviário. Ao rodar pela rede composta por 270 km de trilhos urbanos, confere um instrumento de medida para a sua urbanização desmesurada.
O carro ferroviário ilumina de modo acentuado os espaços por onde passa. Em deslocamento, opera enquanto agente de transformação instantânea e efêmera de um parque fabril, extenso e contínuo, que caracteriza uma cidade industrial em transformação, uma vez mais.
Revela o estado expectante de um vasto território promissor, atualmente esvaziado, e à espera de novos programas. Colocado em luz, suscita um olhar prospectivo e imaginativo sobre os mesmos e provoca uma inquietação quanto ao seu futuro e o da metrópole contemporânea.
CEU
Os Centros Educacionais Unificados – CEU – pertencem à rede municipal de ensino. Basicamente são centros comunitários organizados em torno de praças de equipamentos públicos onde as atividades de ensino tem papel preponderante. Os CEUs baseiam-se em experiências anteriores ocorridas entre as décadas de 40 e 50, sob a responsabilidade do educador Anísio Teixeira. No conceito inicialmente proposto, esses equipamentos, intitulados “escola parque”, foram implantados em grandes áreas livres, e tinham o papel estrutural na formação da vida das comunidades.
Na concepção atual, o conjunto articula diversos programas tais como escola, creche, biblioteca, telecentro, teatro, áreas esportivas e de lazer. Os CEUs oferecem atividades exclusivas que não são encontradas nas demais escolas e centros esportivos das áreas periféricas nas quais estão implantados. Dessa maneira, operam como o núcleo de uma rede de equipamentos que gravitacionam em torno de cada unidade, conferindo a eles uma dimensão também metropolitana.
Ainda que polêmica, a magnitude de sua escala, em contraste com o tecido urbano circundante fragmentado, marca física e simbolicamente a presença do poder público nas áreas mais desfavorecidas da cidade. Assim, colaboram na estruturação urbana dos locais onde se inserem.
Essas unidades múltiplas e diversas estão continuamente abertas à comunidade. Não se restringem ao uso exclusivo dos alunos da rede de ensino, e são franqueadas à comunidade nos finais de semana. Sobrepõem-se, assim, os programas e os usuários, o que contribui decisivamente para a melhoria da gestão do espaço.
Uma vez fortalecidos os laços de pertencimento e de comunidade, também desempenham um papel importante na estruturação social das periferias de São Paulo.
Seu projeto de arquitetura foi concebido pela equipe do Departamento de Edificações da Prefeitura de São Paulo (gestão municipal 2001/2004), sob a coordenação dos arquitetos Alexandre Delijaicov, André Takiya e Wanderley Ariza. Esse é um procedimento pouco frequente no contexto da administração pública em São Paulo, uma vez que o poder público tem se restringido cada vez mais às atribuições gerenciais.
Sesc
As unidades do Serviço Social do Comércio – SESC – pertencem a uma grande rede de serviços formada por centros de atividades espalhados por toda a região metropolitana. Cada uma destas unidades promove uma intensa programação nas áreas cultural, educacional e esportiva.
Pode-se dizer, sem sombra de dúvidas, que as unidades do SESC são importantes promotoras de eventos culturais na cidade. Atraem, todos os dias, uma grande quantidade de pessoas – de diferentes segmentos da população – que ali se encontram para ler na biblioteca, assistir às exposições ou aos espetáculos teatrais, para as atividades desenvolvidas nos ateliês ou simplesmente para um almoço na cantina, antes de voltar para o trabalho.
O raciocínio sistêmico que está por trás da organização do SESC explica em boa medida o êxito da entidade. As unidades possuem uma programação consistente, cuja estrutura é semelhante para toda a rede, sem, contudo, descuidar das circunstâncias de cada local; a estrutura física é qualificada, atende às necessidades do programa e, em alguns casos – como no exemplo escolhido para essa exposição – são edificações emblemáticas. Por fim, a localização das unidades na metrópole é criteriosa e está totalmente ancorada na rede de transporte público.
O SESC – Fábrica da Pompéia, projetada no final da década de setenta pela arquiteta Lina Bo Bardi, talvez seja o exemplo mais marcante do sucesso deste tipo de programa na cidade de São Paulo. O centro ocupa um conjunto de uma antiga fábrica de tambores no bairro da Pompéia. A grande beleza desta obra reside na sensibilidade de se manter a implantação, e a arquitetura dos galpões, como partido fundamental do projeto, apenas introduzindo, no seu espaço grandioso, elementos com o poder de transformar o lugar, como plataformas para leitura, arquibancadas e balcões para o teatro, lâminas d’água, uma lareira, bancos...
Em contraponto com a morfologia horizontal dos galpões, Lina imaginou uma estrutura vigorosa para o centro esportivo, formado por duas torres de concreto ligadas por passarelas. A “cidadela”, como ela a chamava, completa o conjunto e marca a paisagem do bairro com um profundo sentimento de identidade.
Mais além desta belíssima arquitetura, o que explica a força deste projeto é a maneira pela qual se relaciona com o bairro. Foi feito ali um redesenho da quadra, na medida em que todo o centro é estruturado por uma rua interna que chega, de um lado, franca e aberta até a rua pública e, do outro, até o grande “deck-solarium”, espécie de “praia” que articula o centro esportivo aos demais edifícios. Por todas estas características, podemos dizer que o SESC Pompéia é a realização de uma experiência em que a implantação de um programa e de sua arquitetura implicou, de fato, na criação de um lugar de grande significado dentro da cidade de São Paulo.
Feira livre
As feiras livres representam um caso muito particular dentre os denominados “programas em rede” que se distribuem pela metrópole. Espalham-se sistematicamente pelo território atendendo às demandas locais – se considerarmos a “unidade” – e metropolitanas – se considerarmos a rede como um todo. As relações espaciais e temporais que estabelecem com a cidade são totalmente diversos dos outros exemplos.
As feiras, por seu caráter específico, subvertem o esquema usual de distribuição dos programas comerciais dentro do tecido urbano. Ocupam (mesmo que só por um período de tempo) os espaços públicos da cidade, suas ruas e praças. Sua arquitetura é leve e efêmera, espécie de “evento urbano” cuja presença na cidade é uma variável do tempo.
Vivemos numa época em que o comércio de bens é cada dia mais complexo e sofisticado, onde tanto o programa quanto a arquitetura se desdobram na tentativa de suprir um sistema de troca que ocorre nas mais diversas escalas. Neste contexto, a tradicional feira de rua pode ser tomada como exemplo de um tipo de comércio que é tão antigo quanto a própria idéia de cidade – entendida como lugar de encontro e de troca.
Sua permanência na metrópole contemporânea talvez se deva, justamente, a este caráter fluído, de grande capacidade de adaptação, requisito de uma época em que a mobilidade tornou-se um valor fundamental.
2. Programas e usos
Na prática cotidiana, a população constantemente propõe outras formas de apropriação dos espaços, que os reconfiguram. Uma via de circulação que tenha o seu tráfego interrromido no final de semana se transforma em área de lazer, pista de corrida e ciclismo, seja de forma espontânea ou de maneira regulada pelo poder público. No sentido da transgressão, a realização de rapel nos viadutos urbanos, ou mesmo a prática esportiva do “parcour”, são atividades que, através de performances, fazem das edificações uma “natureza urbana” a ser superada. São situações cada vez mais numerosas em São Paulo que muitas vezes ocorrem alguns dos espaços mais inóspitos da cidade, e deles extraem a pulsão de uma vida essencialmente urbana. A peça BR3, encenada pelo Teatro da Vertigem, leva essa condição ao extremo ao se apropriar das margens desertificadas do canal do rio Tietê, resignificando-as.
Não se trata de realizar um elogio à capacidade criativa e irreverente da população, perante suas demandas reprimidas, em detrimento do valor do projeto. A questão se coloca na redefinição do foco do projeto e de suas estratégias em relação a variáveis que não se pode controlar, e que, opostamente, se quer potencializar através da sua qualidade.
São Paulo oferece projetos considerados emblemáticos em relação à riqueza do uso dos espaços. Espaços públicos em que se reconhece um valor de "morada", isto é, espaços cuja indeterminação lhes permite serem criativamente apropriados pela população. Os exemplos escolhidos, mais uma vez, não seguem uma unidade programática. São eles a área livre coberta pela marquise que interliga cinco edifícios no Parque Ibirapuera, projetada por Oscar Niemeyer; as rampas do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), projetado por Vilanova Artigas; e o edifício do Centro Cultural São Paulo, projetado por Eurico Prado Lopes e Luiz Telles.
Nos três casos, nota-se que à função predominante de circulação acrescentam-se outras, não nomeáveis, associadas à permanência e ao encontro, isto é, ao desfrute da sua espacialidade intrinsecamente porosa, aberta, não segregável. O que se percebe, nesses casos, não é uma apropriação criativa dos espaços, por parte da população, que subverte situações de constrangimento espacial muito comuns na cidade. Ao contrário, o que ocorre nos exemplos escolhidos é uma ação que potencializa a abertura do projeto, pois de algum modo preenche os vetores de indeterminação deixados pelo arquiteto na intenção de amparar a imprevisibilidade da vida. Essa postura, para além de uma diretriz de desenho arquitetônico na construção de artefatos, é uma posição projetual diante das questões colocadas pela contemporaneidade.
BR3 *
A peça "BR-3", do Teatro da Vertigem, dirigida por Antônio Araújo, tem implicações que extrapolam em muito a cena teatral da cidade.
Ao tomar o rio Tietê como palco da encenação, o espetáculo dá novo significado àquela paisagem, lançando luz sobre a sua qualidade de "lugar" e, em registro ampliado, sobre a história de constituição de São Paulo.
O Tietê e suas marginais são locais de passagem, com ocupações provisórias, e cuja desertificação apaga qualquer vínculo com a história e com as comunidades humanas. Por isso é que, submergindo nessa paisagem, vive-se, na peça, uma experiência de radical desterritorialização.
Por outro lado, ao romper a barreira de asco que separa visceralmente a população daquele "não-lugar" abjeto, navegando por ele, penetra-se na espessura de sua dimensão palpável. Com isso, não se procura fazer uma crítica direta da dimensão mecânica e funcional criada por esses espaços, mas do embotamento da experiência que a acompanha.
Navegar pelo rio Tietê é refazer mentalmente a arqueologia da cidade, que cresceu ocupando as várzeas dos rios com vias expressas de tráfego automobilístico e ferroviário, que fazem delas importantes eixos estruturadores da metrópole, por um lado, mas espaços sem nenhuma qualidade humana, por outro.
Não se trata, na vivência proposta pela peça, de procurar uma poesia oculta do Tietê. Mas de colocar-se alerta, aberto para a reterritorialização cognitiva que experiências como essa permitem: ver São Paulo com os olhos da mente.
* Baseado em WISNIK, Guilherme. “Rio e marginal Tietê, terra de quem?”. In Folha de São Paulo, 24 abr. 2006.
Marquise do Ibirapuera
A Marquise do Parque Ibirapuera faz parte do conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer por ocasião das comemorações do IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo, em 1954. É a conexão entre seus cinco principais edifícios: um Grande Auditório, recentemente inaugurado e que veio a completar o projeto original, e quatro Pavilhões de Exposição. Esses Pavilhões abrigam atualmente alguns dos mais importantes museus da cidade, como o Museu de Arte Contemporânea, o Museu Afro-Brasileiro e, sobretudo a Bienal de São Paulo.
Trata-se de uma grande laje em concreto armado, perfeitamente horizontal, com área de aproximadamente 26.000 m2 e 650 m de comprimento, sob a qual se configura um grande vazio. Sua excessiva generosidade faz com que transcenda em muito a estrita função de ligação pedestre coberta e dê abrigo a uma enorme variedade de eventos e usos imprevistos. Skatetistas, malabaristas, shows, patinadores, feiras, passeantes, jogos de hóquei partilham esse lugar.
Sua condição de espaço disponível, sem uma significação a priori, programa ou função definidos, entre os pavilhões, formando parte do conjunto mas com autonomia, a transforma em uma construção que não determina a ação humana, mas ao contrário, permite que haja uma apropriação social múltipla do espaço. As implicações dessa liberdade só podem ser descritas a posteriori: o projeto é nesse sentido pura potencialidade.
FAUUSP
O projeto do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP – projeto do arquiteto Vilanova Artigas, inaugurado em 1961, assume como partido uma solução espacial fortemente identificada com a produção da “escola paulista” de arquitetura. Nesse partido, sobressai um pátio central que articula ao seu redor, e sob uma cobertura comum, todos os setores que compõe funcionalmente o edifício.
No caso da FAU, o salão “Caramelo”, como é conhecido, estabelece com o exterior uma relação contínua, sem a mediação de portas ou gradis. Adquire a ambivalência de um recinto interno ao edifício, porém disponível ao uso coletivo de maneira franca. O “Caramelo” é o espaço por excelência para os eventos esporádicos que ocorrem na escola. São numerosas e sugestivas as imagens históricas das manifestações estudantis, exposições, festividades etc que ocorrem no salão de maneira ocasional.
Em um dos seus limites encontra-se o sistema de rampas do edifício. Estrategicamente situado e generosamente alargado, transcende sua função de artefato de circulação para se configurar como o lugar primordial dos encontros habituais da escola.
Das rampas se vislumbra de forma privilegiada a totalidade dos recintos que se organizam ao redor do vazio do “Caramelo”. Do salão, através da perspectiva construída, encontram-se as rampas como foco. Não mais o vazio, e sim os eventos cotidianos, adquirem o protagonismo do olhar.
CCSP
O Centro Cultural São Paulo – CCSP – está implantado na encosta do Vale do Itororó, ao longo da avenida que integra a principal ligação norte/sul da cidade. Numa ocupação exemplar, o edifício reconstitui o talude verde que caracteriza o vale, estabelecendo um sentido de continuidade ao relevo.
Edifício pouco apreensível como objeto, se revela formalmente em sua cobertura de grandes balanços que, por sua extensão, aproxima o plano horizontal do chão. É esse recurso – a escala do edifício, sua altura doméstica e singela, somada as aberturas generosas de um prédio sem portas – que convida o passante a entrar, como um desdobramento do passeio público. No interior, há a surpresa de pátios cobertos e descobertos, um deles um jardim de 700m2 que preserva a mata original do sítio. O edifício, como uma grande praça, comunica e organiza os programas específicos ali instalados: exposições, oficinas, auditórios, discoteca e uma biblioteca de mais de 9 mil m2.
Em São Paulo, raros são os edifícios que criaram um grau de identidade com o público como o CCSP. A qualidade de seus espaços permite que esse equipamento seja, antes de suas funções de complexo cultural, um espaço de estar e convívio, ao longo de seus pátios, jardins elevados e varandas. É essa característica que impulsiona e valoriza o conjunto das atividades oferecidas e programadas pela instituição. Localizado junto à estação Vergueiro do metrô, sua visitação é de cerca de 650 mil pessoas por ano.
O Centro Cultural São Paulo, com mais de 50 mil m2, foi inicialmente projetado como biblioteca municipal pelos arquitetos Eurico Prado Lopes e Luiz Benedito Telles. Após significativas mudanças de programa, e inumeráveis percalços de obra, é inaugurado em 1982.
nota
NE
Texto do catálogo da exposição “São Paulo, redes e lugares”, participação brasileira na 10ª Mostra Internazionale di Architettura, Bienal de Veneza, 2006.
créditos
Comissão curatorial / Curatorial committee
Jacopo Crivelli Visconti
Coordenador / Coordinator
Fernanda Barbara, Fernando de Mello Franco, Guilherme Wisnik, Juan Pablo Rosenberg, Marcelo Morettin, Marta Bogéa, Martin Corullon
Participaram da fase de debates / Took part in the debates
Fabio Valentim, Fernando Viegas, Luciana de Carvalho Pinto, Raul Juste Lores, Vinicius Andrade
Coordenação dos textos / Texts coordination
Fernando de Mello Franco
Coordenação dos desenhos / Drawings coordination
Martin Corullon
Produção / Production
Fundação Bienal de São Paulo, Liliane Fratto
Projeto gráfico catálogo e painéis / Graphic design
Mayumi Okuyama
Desenhos / Drawings
Anna Ferrari, Luciana Mota, Léonie Zelger
Coordenação Editorial / Editorial coordination
Ana Gonçalves Magalhães, Ana Elisa de Carvalho Silva
Tradução / Translation
Thomas Nerney
Pré-impressão / Pre-print
Photostop
Impressão / Printing
Patrocínio / sponsorship da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
Vídeos / Videos
SESC, CEU, Marquise do Parque Ibirapuera, FAUUSP, Centro Cultural São Paulo, feiras livres e vistas aéreas
Direção e montagem / Direction and montage
Otávio Cury / Mutante Filmes
Produção / Production
Ana Mendonça, Everton Taccini, Jorge Tsunoda, Marcelle Governatori
Ano / Year
2006
“BR-3”
Direção do vídeo / Video direction
Evaldo Mokarzel
Montagem / Montage
Marcelo Moraes
Produção / Production
Casa Azul
Direção de produção / Production direction
Afonso Coaracy & Paula Knudsen
Fotografia e câmera / Photography and camera
Thiago Ribeiro, Kiko Costato, Fernando Adedd, Pedro Volpi Eliezer, Rodolfo Figueiredo, Cristian Saghaard, Carlos Rodrigues Botosso, Jéferson Peixoto & Vicente Cárdia de Almeida Prado
Ano / Year
2006
“Outrem” Intervenção urbana / Urban intervention
Concepção e projeto / Realization and Project
Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco & Milton Braga
Luminotécnica / Light design
Guilherme Bonfanti
Videoinstalação / Videoinstallation
Direção geral / General direction
Joel Pizzini
Direção de arte / Art direction
Gianni Toyota
Produção / Production
J.S. Lopes
Trilha sonora / Sound track
Michelle Agnes & Nelson Pinton Filho
Ano / Year
2001
Projetos / Projects
Serviço Social do Comércio – SESC Fábrica da Pompéia / Commerce Social Service – SESC Pompéia factory
Lina Bo Bardi
Colaboradores / Collaborators
André Vainer e Marcelo Carvalho Ferraz
Local e data / Place and date
São Paulo, 1977-1982
Centro Educacional Unificado CEU / Unified Education Center
Alexandre Delijaicov, André Takiya, Wanderley Ariza
Local e data / Place and date
São Paulo, 2002-2003
Marquise do Parque Ibirapuera / Marquee of Ibirapuera Park
Oscar Niemeyer, Zenon Lotufo, Helio Uchoa e Eduardo Kneese de Mello
Local e data / Place and date
São Paulo, 1951-1955
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP / Faculty of Architecture and Urbanism of the University of São Paulo
João Batista Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi
Local e data / Place and date
São Paulo, 1961
Centro Cultural São Paulo / São Paulo Cultural Center
Eurico Prado Lopes e Luiz Benedito de Castro Telles
Local e data / Place and date
São Paulo, 1977-1982
Agradecimentos / Acknowledgments
Alexandre Delijaicov, André Takiya, André Vainer, Antônio Araújo, Bebete Viégas, David Rego Jr., Evaldo Mocarzel, Florencia Ferrari, Guilherme Bonfanti, Joel Pizzini, José Oswaldo Vilela, Kátia Kuwabara, Marcelo Carvalho Ferraz, Nelson Kenji Kobayashi, Nelson Kon, Otávio Cury, Regina Meyer, Roberto Áudio, Rogério Canella, Walter Gentil, Wanderley Ariza
sobre os autores
Comissão Curatorial formada por Jacopo Crivelli Visconti (coordenador), e os arquitetos Fernanda Bárbara, Fernando de Mello Franco, Guilherme Wisnik, Juan Pablo Rosenberg, Marcelo Morettin, Marta Bogéa e Martin Corullon.