O edifício da sinagoga tem um propósito triplo. O primeiro deles é o de servir como casa de prece e oração (Bet-ha Tefilah). É o local aonde as preces direcionadas a Deus são realizadas.
A segunda função básica do espaço da sinagoga é servir de local de estudo (Bet-ha Midrash). É ali que serão realizados os estudos da Torah (o Pentateuco, cinco primeiros livros da bíblia) e do Talmud, respectivamente as leis escrita e oral da religião judaica. É através do estudo destes dois importantes livros que se construiu e que se continua construindo as bases éticas e morais da religião judaica.
Por fim, a sinagoga é o grande ponto de encontro da comunidade. É onde os debates são realizados; o centro das decisões que dizem respeito à organização e ao futuro daquela congregação. O próprio termo sinagoga, originário da expressão grega synagein, “reunir-se”, resume o espírito do edifício. Em hebraico, chama-se a sinagoga de Bet-ha Knesset, ou “Casa da Assembléia”.
Como edifício de orações, a sinagoga é, em si, um conceito revolucionário para sua época. O mundo antigo conhecia lugares de adoração desde os seus primeiros dias; templos que, supostamente, seriam a moradia do Deus vivo. Consistiam, normalmente, de um santuário relativamente pequeno, a casa do Deus, acessível apenas aos sacerdotes, às vezes nem mesmo a estes. Era rodeado por um espaçoso pátio, em que os fiéis podiam reunir-se em volta do altar e adorar, enquanto seus sacrifícios subiam aos céus, pátio este cercado por pórticos e residências dos sacerdotes. Este era o esquema clássico do templo, encontrado no Oriente Antigo, na Grécia e Roma antigas.
O primeiro Templo hebreu foi construído em Jerusalém por Salomão, filho de David, em meados do século 9 a.C. e destruído pela primeira vez pelos Babilônios em 586 a.C. As origens da sinagoga remontam a este momento, tempos em que os judeus exilados, expulsos da palestina, foram obrigados a manter seus preceitos religiosos através de métodos alternativos, utilizando um novo conceito de edifício para adoração. Este novo conceito foi batizado pelos próprios judeus de o “santuário menor”. O lugar onde a memória dos rituais do templo destruído deveria ser mantida e, nesse sentido, os sacrifícios eram substituídos por preces afins, realizadas em horários equivalentes, o que irá definir a estrutura litúrgica judaica. Quase nenhum vestígio destes primeiros exemplares chegou aos nossos dias, no entanto, dificultando o esclarecimento acerca da composição exata dessa estrutura.
O Templo seria reconstruído em 515 a.C., após a volta dos judeus a Jerusalém, além de ampliado sob o reino de Herodes, comandante ligado aos romanos e rei da Judéia entre 37 a.C. e 4 a.C (1). O conflito entre hebreus e romanos, no entanto, levou à segunda e definitiva destruição do Templo, em 70 d.C., episódio que exilou uma vez mais os judeus. Saindo da Palestina, os hebreus espalharam-se principalmente pela Europa, Ásia e África, num processo até hoje conhecido pelo nome de diáspora. Este novo exílio obrigatório (que duraria, oficialmente, até 1948, com a criação do Estado de Israel) consolida o uso da sinagoga como casa de orações e núcleo das comunidades o que concretiza seu papel de eterno “substituto temporário” do grande Templo.
Os vestígios mais antigos de sinagogas datam de cerca de 200 d.C., momento em que já havia alguma estabilidade política nas terras em que hoje está Israel, o que permitiu um leve reocupação da zona pelos judeus. Assim como na igreja católica, esses primeiros exemplares também terão como modelo mais próximo à basílica romana, embora neste caso seja muito mais comum encontrarmos um tipo de construção ampla, de apenas uma nave, com uma abside ao fundo, onde ficava a Torah.
Do período da imigração para a Europa, os remanescentes mais antigos de sinagogas datam do século XII. Admite-se que o período anterior tenha sido marcado pelas imensas dificuldades do exílio, bem como pelo isolamento num sistema feudal caracterizado pela ordem católica do medievo europeu. O afastamento das comunidades judaicas em relação à ordem social vigente será uma marca presente em quase toda a Europa no período que se segue até o século XIX. As judiarias da Península Ibérica pré-inquisição, bem como os “ghettos” italianos são exemplos práticos de como essas comunidades eram compulsoriamente organizadas. Na Veneza do século XVII, por exemplo, destacam-se as comunidades sefaraditas (2), que haviam fugido da Espanha após 1492. A diferenciação entre judeus ashquenazitas (oriundos da Europa oriental) e sefaraditas (oriundos da Península Ibérica), será ainda outro elemento de descentralização da expressão artística judaica, na medida em que estes dois grupos desenvolveram rituais, espaços e dialetos diferentes entre si, embora de raiz semelhante.
Do ponto de vista da linguagem arquitetônica, este contexto resultou numa adaptação das sinagogas às condições existentes em cada tempo e lugar, além do desenvolvimento de edifícios mais reclusos e menos destacados, até por questões de segurança, ou mesmo pelo comportamento não proselitista da religião judaica. Isso significa pouca elaboração de artifícios formais específicos, exceto aqueles condicionados pelas questões tecnológicas e construtivas. Nesse sentido, esses prédios diferenciam-se da igreja católica, um tipo de construção sempre ligada à vanguarda da experimentação arquitetônica e de grande participação na organização dos espaços urbanos europeus medievais, uma conseqüência da força política e econômica da Igreja.
Na expressão decorativa do espaço interior, no entanto, é destacável o esforço realizado em prol da manutenção das tradições e identidades religiosas, ação que conservou vivos os elementos fundamentais da sinagoga. A arca sagrada (Aron-ha Kodesh), local que guarda a Torah, e a Bimah, plataforma de onde se lêem os textos sagrados e comanda-se a liturgia, representam até os dias atuais o cerne do edifício religioso judaico. Mesmo considerando o caráter iconoclasta do judaísmo, é possível observar que os interiores eram objeto de rico trabalho decorativo, onde elementos como a caligrafia hebraica tinham lugar cativo. Destacam-se nesse conjunto as sinagogas de madeira polonesas do séc. XVIII, posteriormente dizimadas pelo regime nazista.
A mudança estrutural da Revolução Industrial e a laicização do Estado terão um papel importantíssimo na mudança do judaísmo enquanto religião, e conseqüentemente na mudança do espaço da sinagoga, a partir do século XIX. No caso do judaísmo, será extremamente representativo o fenômeno da emancipação judaica, processo iniciado neste período e caracterizado pela “gradual aquisição de direitos civis pelos judeus, inicialmente nos Estados Unidos e de grande aceitação na França Revolucionária” (3). A aquisição de direitos civis igualava o judeu ao cidadão comum, comprometendo-o com o Estado e inserindo-o definitivamente na sociedade. Esta nova condição social judaica deflagrou um processo de assimilação cultural que, por sua vez, fez com que parte das comunidades judaicas desse início a um novo pensar, nomeado de Movimento Reformista. O Reformismo reviu pela primeira vez uma série de valores milenares e, embora restrito, atingiu importantes comunidades, sendo de grande representatividade frente ao judaísmo como um todo (4).
Novas sinagogas testemunham esse momento histórico, representando mudanças significativas no tema da arquitetura ligada ao judaísmo. Além de mudanças nos arranjos planimétricos tradicionais, esta nova posição social judaica gera uma notável diferença na escala destes edifícios. Se antes elas não passavam de pequenas sinagogas, muitas vezes escondidas em casas, tornaram-se naquele momento construções monumentais, francamente abertas para a rua e preparadas para públicos de até três mil pessoas, como a Sinagoga da Oranienburger Strasse, em Berlim ou a Sinagoga da Rue de La Victoire em Paris. Mudanças claras na liturgia, como a instituição do coro e canto uníssono da congregação ou a mudança do hebraico para a língua local, visavam concorrer com o culto protestante, muito popular entre os jovens judeus, que freqüentemente se convertiam, no intuito de procurar algo mais compatível com seu novo status. Os grandes edifícios também tinham a função de realçar a nova posição social das comunidades judaicas, um sentido de auto-afirmação.
Assim como as igrejas católicas desta época, as sinagogas serão também campo de experimentação de estilos historicistas - bizantinos, mouriscos, góticos e neoclássicos, o que não colaborou para o surgimento de uma estética eminentemente judaica. Paradoxalmente, esta linguagem do “revival” buscava muitas vezes as origens orientais do judaísmo, inspirada nos achados das primeiras escavações arqueológicas na terra santa. Um avanço importante neste período, no entanto, foi a aproximação entre o edifício judaico e o contexto urbano, à medida que aquele assume pela primeira vez uma escala menos discreta, voltada claramente para a rua.
A partir da década de 20 do século passado sinagogas também serão tema de trabalho do Modernismo e de novos arquitetos judeus, tornando-se um campo natural de experimentação. O Movimento Moderno, até mesmo pelo seu caráter vanguardista, dá os primeiros passos para a construção de uma expressão formal mais ligada à tradição e aos elementos judaicos. Um dos marcos deste período é a Sinagoga de Zilina (1928), de Peter Behrens, edifício que já incorpora no volume externo diferentes tratamentos de textura e materiais no sentido de mostrar e marcar a posição de elementos sagrados internos, como a arca sagrada. Tal processo, no entanto, foi brutalmente interrompido pela ascensão do nazismo na década de 30 e posterior eclosão da II grande guerra.
O fim da guerra em 1945 (ainda nos anos modernos) irá influenciar a produção arquitetônica judaica como um todo, forjando um impacto ainda mais significativo sobre a maneira de pensar a construção das sinagogas. Os Estados Unidos terão nesse contexto um papel fundamental, já que haviam se tornado a nova pátria de boa parte dos judeus emigrados da Europa nazista, dentre eles arquitetos como Eric Mendelsohn, famoso por sua Torre Einstein, em Potsdam. Mendelsohn será responsável por reflexões que buscavam um projeto de sinagoga que não fosse apenas “símbolo das conquistas materiais do homem, mas representante do renascimento espiritual da religião após o holocausto” (5). Arquitetos não judeus como Walter Gropius, Phillip Johnson e Frank Lloyd Wright também estarão ligados à produção de sinagogas modernistas nos EUA, edifícios que serão importantes na construção das referências arquitetônicas dentro da temática judaica. A paradigmática Sinagoga Beth Sholom, construída por Wright em Elkins Park, Pennsylvania (1957), tem o seu volume comparado ao do bílblico Monte Sinai, num dos primeiros exemplos de associação entre forma e símbolo na arquitetura judaica recente.
Além disso, fenômenos como a criação do Estado de Israel, em 1948, também irão contribuir decisivamente para o surgimento de uma estética mais peculiar ao judaísmo a partir da década de 50, questão até hoje em franco desenvolvimento, além de amplamente discutida no âmbito das comunidades judaicas ao redor do mundo. Não há dúvidas que a construção do Estado Sionista representou um momento de afirmação de novos conceitos, condizentes com a nova ocupação. Deste período vale destacar a sinagoga do Campus Givat Ram da Universidade Hebraica de Jerusalém, construída em 1957 numa parceria do brasileiro David Reznik com Heinz Rau.
Por sua vez, este processo hoje já não se restringe mais às sinagogas, e está também ligado a uma série de edifícios com outros usos “judaicos”, tais como centros culturais, museus, memoriais do holocausto, escolas e centros de estudo. O crescimento das comunidades judaicas, principalmente na Europa e nos EUA, tem criado uma demanda pela descentralização das funções antes exercidas apenas na sinagoga. Na maioria dos exemplos, é marcante a tentativa de buscar uma linguagem coerente com o tema de trabalho, capaz de criar laços com a história do povo judeu, notadamente no período marcado pelos últimos sessenta anos. Sobre a prancheta, todos os símbolos, cicatrizes e desejos para o futuro, atores das matrizes conceituais que pretendem contextualizar cada uma dessas obras. No caso da arquitetura religiosa, os valores contemporâneos de tratamento da forma e da luz também corroboram para a criação de uma atmosfera diferenciada.
Nesse contexto situam-se obras como o Museu Judaico de Berlim, de Daniel Libeskind (1999), as novas sinagogas de Dresden (2001) e Munique (2006), dos arquitetos Wandel, Hoefer, Lorch e Hirsch, a Sinagoga Cymbalista, de Mario Botta, situada em Tel Aviv (1998) e o Centro de Cultura Judaica de São Paulo, desenhado por Roberto Loeb (2003), dentre muitos outros.
Outros nomes e obras foram também parte de uma recente exposição que circulou por grandes capitais européias e Israel, chamada de “Jewish Identity in Contemporary Architecture” (Identidade Judaica na Arquitetura Contemporânea). Segundo os próprios curadores, um dos objetivos principais da mostra foi discutir justamente a formação desta nova identidade judaica na arquitetura contemporânea, expressão de comunidades que ganham finalmente força e autoconfiança para reconstruir suas bases, duas gerações após o holocausto (6).
Não há dúvidas de que os caminhos capazes de trilhar esta renovação da religião judaica e da expressão de sua arquitetura são múltiplos e heterogêneos. No baú de história, cultura, referências e símbolos do judaísmo não faltam elementos capazes de inspirar e fomentar o pensamento arquitetônico judaico. Por outro lado, há neste processo outros desafios. No momento em que a tolerância religiosa está na ordem do dia, esta renovada arquitetura ligada ao judaísmo deverá ser também capaz de estabelecer uma relação saudável com o contexto político e social em que se insere, sabendo promover o diálogo, a inclusão e a paz. Será ainda mais bem sucedida, à medida que consiga também ser aberta a todos, dando exemplo no esforço pela manutenção do respeito mútuo entre as religiões.
Mais do que buscar apenas referências para seu desenho, esta renovação deve estar comprometida com os conceitos de justiça e solidariedade do judaísmo. Só assim será capaz de materializar um espaço judaico coerente com a própria religião e seus valores mais importantes.
notas
1
“O Kotel Ha’Maaravi”. Revista Morashá, ano XIV, dez. 2006, p. 12-19.
2
Sefarad quer dizer Espanha em hebraico. Após a saída da palestina em 70 d.C., o grupo que se instalou na Península Ibérica e Marrocos teve grande intercâmbio com comunidades árabes e orientais, criando inclusive novos dialetos como o ladino, que admitiu influências do hebraico no castelhano. A inquisição, a partir de 1492, marca uma diáspora sefaradita em direção à Europa Oriental, África e América.
3
MEEK, Harold A. The Synagogue. London, Phaidon, 1996, p. 173.
4
É importante ressaltar que o Judaísmo não possui um comando central, ou mesmo hierarquia clerical organizada. Nesse sentido, coexistem diferentes orientações frente à forma de viver a religião, sua liturgia e vida cotidiana.
5
GRUBER, Samuel D. American Synagogues: a Century of Architecture and Jewish Community. New York, Rizzoli, 2003, p. 85.
6
A exposição Jewish Identity in Contemporary Architecture passou por Viena, Munique, Berlim, Londres e Tel Aviv, entre junho de 2005 e junho de 2006. Seus curadores foram Angeli Sachs e Edward Van Voolen.
referências bibliográficas
DEKEL-CASPI, Sofia (org.). David Reznik: A Retrospective. Tel Aviv, The Genia Schreiber Universit Art Gallery, 2005.
KRINSKY, Carol Herselle. Synagogues of Europe. New York, Dover, 1996.
SACHS, Angeli & Voolen, Edward Van (org.): Jewish Identity in Contemporary Architecture. Berlin, Prestel, 2004.
sobre o autor
Sergio Kopinski Ekerman, arquiteto e urbanista pela Universidade Federal da Bahia. Trabalha com o Arq. Paulo Ormindo de Azevedo e ensina na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.