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Andrea Zerbetto fala sobre a grande visibilidade e importância atribuída ao patrimônio em escala global nos dias atuais, um elemento revelador das condições em que se encontra a sociedade contemporânea


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ZERBETTO, Andrea. Inflação patrimonial: o complexo de Noé da contemporaneidade e as ilusões de eternidade. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 087.03, Vitruvius, ago. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.087/218>.

Quem sou eu? O patrimônio responde?

“A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro” (1).

“Uma nova civilização está emergindo em nossas vidas. Essa nova civilização traz consigo novos estilos de família; novos modos de trabalhar, amar e viver; uma nova economia; novos conflitos políticos e, em última análise, também um aprofunda alteração na consciência do homem. [...] Milhões de homens já estão ordenando suas vidas pelos ritmos do amanhã. Outros, aterrorizados com o futuro, se desesperam e futilmente refugiam-se no passado, procurando restaurar aquele velho mundo que lhes dá segurança” (2).

Patrimônio, patrimônio histórico, patrimônio cultural...

Patrimônio material, imaterial, natural, arqueológico, arquivístico e intelectual...

Associada, em sua origem, à herança familiar, a palavra patrimônio assumiu ao longo do tempo diversas requalificações se transformando em um conceito nômade, amplamente empregado nos dias atuais.

Essa trajetória remonta ao final do séc. XVIII época em que o governo revolucionário francês, através da Constituinte de 02 de outubro de 1789, regulamenta a proteção dos bens confiscados do clero e da coroa. Como o valor primário desses bens devolvidos ao povo francês referia-se à questão econômica, adota-se, então, para designá-lo o termo patrimônio, fazendo alusão a espólio. A partir de então o termo passa a ser utilizado para designar o conjunto de bens pertencentes a um grupo social específico, em parte, responsáveis pela construção de sua identidade. Enquanto posse coletiva, o patrimônio passou a representar um exercício de cidadania, servindo ao projeto político da época e contribuindo para a consolidação dos estados nacionais modernos.

A partir de então observa-se um crescente interesse em relação ao tema que culmina com a grande visibilidade e importância atribuída a ele em escala global nos dias atuais, objeto central dessa reflexão.

Esse culto que se rende ao patrimônio na atualidade requer um questionamento por se constituir num elemento revelador das condições em que se encontra a sociedade contemporânea, também denominada pós-moderna.

Para não incorrer no erro de uma análise simplista, é necessário considerar, mesmo que brevemente, outros condicionantes, resultado de um processo histórico, que conformam parte do contexto no qual se enraízam as principais inquietações a que se referem esse trabalho.

Não é mais novidade o fato de que estamos vivendo um momento particular na história da humanidade. Esse momento, que alguns chamam de pós-modernidade, assiste a um processo intenso de globalização que tem provocado profundas transformações em todas as esferas da sociedade.

Entendida como um processo atuante em escala planetária, atravessando fronteiras e interligando o mundo, a globalização se constitui num “movimento de distanciamento da idéia sociológica clássica da sociedade como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço” (3).

No bojo das transformações provocadas pela globalização, talvez uma, em particular, possa contribuir para o entendimento dos motivos que propiciaram o alargamento dos quadros cronológico, tipológico, geográfico e, conseqüentemente, quantitativo dos bens de natureza cultural, gerando uma espécie de inflação patrimonial (4): a questão da identidade.

No mundo contemporâneo, impulsionado pela evolução tecnológica, os meios de comunicação, dispensaram o transporte físico de pessoas e informações, dinamizando os processos de interação e troca entre indivíduos e grupos em escala planetária, o que gerou uma profunda alteração na compreensão das noções de tempo e espaço, e nos forçou a entrar em uma inércia cinética, para a qual não estávamos preparados.

Considerando que “indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade” (5) e que todo meio de representação “deve traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais” (6) a globalização gera grande impacto sobre a identidade na medida em que tempo e espaço se configuram como coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. Combinado à preocupação com o exato significado do presente e a incerteza do futuro, esse impacto provoca um sentimento de perda relacionado ao desaparecimento rápido e definitivo de grande parte das coisas que se tem produzido.

Nesse contexto, não só as trocas comerciais e tecnológicas têm se intensificado, mas, também as experiências sócio-culturais têm sido expandidas, originando o que muitos chamam de crise de identidade contemporânea, assim como atesta Hall: “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada crise de identidade é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (7).

Elemento chave para o desenvolvimento dessa reflexão, o conceito de identidade, definido pelo Aurélio como “um conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa ou o aspecto coletivo de um conjunto de características pelas quais algo é definitivamente reconhecível ou conhecido”, é complementado por Hall que o divide, historicamente, em três momentos distintos.

O primeiro deles refere-se ao sujeito do Iluminismo que baseava-se num “indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo [...] ao longo da existência do indivíduo” (8).

A segunda conceituação, pós-iluminista, refere-se à noção de sujeito sociológico, caracterizado pela interação entre indivíduo e sociedade, que reflete a “crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele habitava”. A identidade do sujeito sociológico, então, “[...] preenche o espaço entre o interior e o exterior, entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a nós próprios nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os parte de nós, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então costura [...] o sujeito à estrutura” (9).

Já em relação à identidade na pós-modernidade, argumenta-se que em função da atual instabilidade, tanto dos sujeitos, como dos mundos culturais habitados por eles, ela encontra-se fragmentada e sem referência. Sendo assim, entra em cena um sujeito pós-moderno desprovido de uma identidade fixa, essencial ou permanente.

A partir do momento em que as culturas nacionais foram expostas às influências externas tornou-se difícil conservar intactas as identidades culturais ou impedir seu enfraquecimento através do bombardeamento e da infiltração cultural.

Essa fragilização das identidades tradicionais e das fronteiras resultou no desenvolvimento de identidades abertas, contraditórias, fragmentadas e inacabadas do indivíduo da atualidade.

Contudo, e ao contrário do que possa parecer, no contexto de um mundo globalizado em que recortes de pertencimento locais possam perder seu sentido em função de outras realidades macro-agregadoras, a história recente demonstra o crescimento de localismos e aspirações de reconhecimento de grupos e minorias (10). Ademais, juntamente com o impacto global, observa-se uma grande atração pela diferença e um novo interesse pelo local com a conseqüente valorização da alteridade.

Nessa perspectiva, pertencer a uma identidade cultural passou a significar um redescobrir-se, diferenciando-se dos padrões de comportamento globais. Assim, o reconhecimento de uma alteridade contribuiu para o desenvolvimento da afirmação do conceito de identidade que, por sua vez, encontrou no patrimônio, reconhecido como cultural, uma sólida referência.

A construção de uma arca pretensamente ilimitada e o complexo de Noé

“Com muita freqüência o enobrecimento do passado conduz a um esquecimento e a um empobrecimento do presente” (11).

Nesse cenário, confuso e instável, o passado se afirmou como referência fundamental para a cultura contemporânea, servindo de parâmetro a balizar a experiência cotidiana ao oferecer “bússolas, âncoras temporais aos indivíduos num mundo cada vez mais veloz e fragmentário” (12), onde paira a transitoriedade. E, assim, a construção da identidade passa a ser “não mais uma gênese, mas o deciframento do que somos à luz do que não somos mais” (13).

Na medida em que as coordenadas territoriais e espaciais de grande importância para o sujeito, enquanto referência, são transformadas pela crescente mobilidade do mundo, o apelo ao passado parece representar um recurso de compensação desse ritmo acelerado do fluxo das mudanças. Uma resistência à dissolução dos antigos modos de viver a experiência social, na tentativa de criação de alguns laços de continuidade, permanência e pertencimento. Em outras palavras, uma estratégia crucial para a produção de uma coerência e para a atribuição de sentido à interação entre o sujeito e o mundo ao qual ele pertence, engajando-o.

Como meio de acesso a esse passado, a memória passa a ocupar uma posição de destaque no rol das preocupações culturais e políticas das sociedades contemporâneas ocidentais, se tornando uma obsessão cultural de proporções extraordinárias em várias partes do globo: “quanto mais rápido somos empurrados para o futuro global que nos inspira confiança, mais forte é o nosso desejo de ir mais devagar e mais nos voltarmos para a memória em busca de conforto” (14).

Contribuindo com essa afirmação e se referindo à importância crescente que tem sido atribuída ao passado e à memória frente às imposições do mundo pós-moderno, Pierre Nora argumenta que quanto “menos a memória é vivida no interior, mais ela tem necessidade de suportes exteriores e referências tangíveis de uma existência que só vive através delas” (15).

Reflexo de todas essas considerações, o apego ao patrimônio parece significar uma espécie de atribuição de sentido e significado ao passado, contribuindo para a ordenação, ainda que efêmera, de um contexto marcado pela transitoriedade, a dispersão e a pluralidade. Esse apego revela a necessidade de construção de uma proteção contra a obsolescência e o desaparecimento, no intuito de combater a profunda ansiedade com a velocidade da mudança e o contínuo encolhimento dos horizontes de tempo e espaço da atualidade.

Corroborando com essa asserção, Harvey afirma que “quanto maior a efemeridade, tanto maior a necessidade de descobrir ou produzir algum tipo de verdade eterna que nela possa residir. [...] O retorno do interesse por instituições básicas (como a família e a comunidade) e a busca de raízes históricas são indícios da procura de hábitos mais seguros e valores mais duradouros num mundo cambiante” (16). Ilustrando essa afirmação o autor lembra que objetos específicos e eventos particulares, como por exemplo, fotografias, um piano ou uma canção tocada, se elevaram a um novo patamar de significado na medida em que se tornaram “[...] o foco de uma lembrança contemplativa e, portanto, um gerador de sentido de eu que está além da sobrecarga sensorial da cultura e da moda consumista. A casa se torna um museu privado que protege do furor da compressão do tempo-espaço” (17).

Enquanto construção imaginária de sentido, o sujeito contemporâneo busca incessantemente na identidade uma compensação simbólica a perdas reais da vida. Entretanto, frente à complexidade da situação imposta pelos condicionantes dessa grande ciranda e à incerteza gerada por ela, os indivíduos passaram a sentir a necessidade de recolher e arquivar todas as peças que, por ventura, possam vir a fazer parte do imenso quebra-cabeças que se refere à sua existência social.

Tal fato é assim denunciado por Nora: “à medida em que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente os vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar prova em não se sabe qual tribunal da história. [...] Impossível de prejulgar aquilo de que se deverá lembrar. Daí a inibição em destruir, a constituição de tudo em arquivos, a dilatação indiferenciada do campo do memorável, o inchaço hipertrófico da função da memória ligada ao próprio sentimento de sua perda e o esforço correlato de todas as instituições de memória” (18).

Esse historicismo expansivo da cultura contemporânea que culmina com a proliferação do que Nora chama de lugares de memória também é destacado por Huyssen, que faz uma reflexão sobre o sofisma apresentado pela musealização cultural, conceito recortado por ele da obra de Herman Lubbe. Segundo Huyssen, “a crença conservadora de que a musealização cultural pode proporcionar uma compensação pelas destruições da modernização do mundo social é demasiadamente simples e ideológica. Ela não consegue reconhecer que qualquer senso seguro do próprio passado está sendo desestabilizado pela nossa indústria cultural musealizante e pela mídia, a qual funcionam como atores centrais no drama moral da memória. A própria musealização é sugada neste cada vez mais veloz redemoinho de imagens, espetáculos e eventos e, portanto, está sempre em perigo de perder sua capacidade de garantir a estabilidade cultural ao longo do tempo” (19).

Talvez caiba dizer em relação a esse movimento o mesmo que Nora em relação à vasta constituição de arquivos: o saldo desta atitude passou a representar não mais uma memória vivida, mas a deliberada organização de uma memória perdida.

E com tal acúmulo de coisas de que se fará ou não uso com o passar do tempo, com o aumento das populações e de suas possibilidades materiais, o que realmente será feito com este incomensurável estoque?

Em face desse imperativo processo de resgate do passado, talvez não seja demasiado pessimista afirmar que a construção dessa arca, baseada na memória, supostamente ilimitada e suas implicações venham a alterar sobremaneira a experiência do presente, redesenhando através da subtração, seus contornos.

Inflação patrimonial: mutação e morte

“Nada mais (nem mesmo Deus) desaparece pelo fim ou pela morte, mas por proliferação, contaminação, saturação e transparência, exaustão e exterminação, por epidemia de simulação, transferência na existência segunda da simulação. Já não há modo fatal de desaparecimento, mas sim um modo fractal de dispersão” (20).

Em conseqüência dos desdobramentos históricos relacionados às mudanças verificadas no mundo na segunda metade do século XX, o conceito de cultura ganhou uma definição de cunho antropológico, afirmando-se como o “conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma dada formação social”. (21) Este fato encontra-se estreitamente ligado à crescente abrangência conceitual na abordagem do patrimônio, hoje, chamado cultural.

A década de 60 representa um marco para essa discussão. Até então o quadro cronológico em que figurava o patrimônio, chamado histórico e artístico (22), não ultrapassava os limites do século XIX.

É precisamente nessa época que assiste-se a um alargamento dos quadros cronológico, tipológico, geográfico e conseqüentemente, quantitativo dos bens patrimoniais. Nesse momento, ainda que restritas aos bens de natureza material, “todas as formas da arte de construir, eruditas e populares, urbanas e rurais, todas as categorias de edifícios, públicos e privados, suntuários e utilitários foram anexadas, sob novas denominações: arquitetura menor, [...] vernacular, [...] industrial” (23).

Até a publicação da Carta de Veneza pelo Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios – ICOMOS em 1964, o conceito dos chamados monumentos históricos era muito restritivo. A partir de então ele se transformou em uma concepção que, teoricamente, não poderia deixar que nada escapasse. Tal mudança conceitual é apontada já no artigo 1º da referida Carta: “A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Entende-se não só as grandes criações, mas também as obras modestas, que tenham adquirido com o tempo uma significação cultural” (24).

Assim, a noção de patrimônio foi se ampliando, não só em função de uma abertura conceitual na área da cultura, mas também à reivindicação dos direitos culturais dos cidadãos do mundo na sua diferença e especificidade. Passou-se do monumento excepcional ao patrimônio vernacular das cidades e do campo; do elemento isolado e precioso aos conjuntos de construções e paisagísticos; do imóvel aos móveis; do material ao imaterial, em particular o patrimônio etnológico com seus costumes, experiências etc.

Todavia, essa atitude não representa um fato isolado e, sim, uma tendência, sendo acompanhada, inclusive, por mudanças epistemológicas que trazem à luz a história cultural. Essa nova forma de abordagem, que propõe um estudo do passado por meio das representações pelas quais o sujeito expressa a si mesmo e ao mundo, incorpora dois novos conceitos indispensáveis a esse estudo: o imaginário e as sensibilidades. Segundo Pesavento o imaginário é entendido como um “sistema de idéias e imagens que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo. [...] O imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social” (25). Ainda segundo a autora, a preocupação da história cultural com as sensibilidades trouxe para a cena contemporânea a questão da subjetividade e das histórias pessoais. Entretanto, não mais uma história biográfica dos grandes vultos da história, mas a biografia de gente simples, uma “história de indivíduos que deriva, sim, de uma história social renovada: ao estudo dos pobres, dos subalternos enquanto classe ou grupo, detentores de uma expressão cultural dita popular, passou-se a uma história de vida das pessoas humildes, na qual possam ser surpreendidos os sentimentos, as sensações, as emoções, os valores” (26).

Essa afirmação encontra respaldo nas políticas de reconhecimento, identificação e preservação da cultura popular que têm sido promovidas por governos e instituições de diversos países, precedidas, normalmente, por recomendações internacionais. Esse é o caso, por exemplo, da Carta publicada em novembro de 1989, por ocasião da 25ª reunião da UNESCO, na cidade de Paris. Denominada ‘Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular’ ela se dedica, exclusivamente, à discussão da necessidade de proteção à cultura tradicional e popular, considerando-a como um “conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores que se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes” (27). Além desse documento, nas duas últimas décadas do século XX e nos primeiros anos do XXI, foram produzidas, em âmbito internacional, uma série de instrumentos jurídicos, resoluções, declarações e convenções relativas à proteção do patrimônio imaterial, parte constituinte do atual e abrangente conjunto do patrimônio cultural.

O advento e afirmação da história cultural enquanto disciplina e o desenvolvimento de políticas afinadas com esse novo olhar torna indiscutível o fato de que a cultura, em sua acepção antropológica, passou a ocupar um espaço privilegiado na cena contemporânea. E, no seu encalço, o patrimônio cultural aparece assumindo um papel de crescente destaque, gerando o que alguns chamam de “inflação patrimonial” (28), “febre da patrimonialização ou a histeria do patrimônio” (29).

Essa intensificação dos processos de patrimonialização está associada, em grande medida, à constituição e desenvolvimento de uma indústria cultural que, em sua voracidade, se incumbiu de valorizar e disseminar os “tesouros” recém descobertos, ou até mesmo “fabricados” por ela. Fraçoise Choay descreve, com clareza, a dupla função que o patrimônio cultural adquiriu: “obras que propiciam saber e prazer, postas à disposição de todos; mas também produtos culturais fabricados, empacotados e distribuídos para serem consumidos” (30). Para ilustrar essa afirmação ela lembra parte do discurso do Ministro do Turismo da França em 9 de setembro de 1986: “Nosso patrimônio deve ser vendido e promovido com os mesmos argumentos e as mesmas técnicas que fizeram o sucesso dos parques de diversões”.

A tarefa deste grande empreendimento público e privado, a serviço do qual trabalham hoje milhares de pessoas, consiste em explorar o patrimônio de todos por todos os meios, multiplicando indefinidamente o número de visitantes e, conseqüentemente, a conversão do valor desses bens em papel moeda.

A valorização promovida por essa indústria cultural, que deveria ser tranqüilizadora, na verdade produz grande inquietação em função do caráter de mais-valia que ela apresenta. Assim como afirma Françoise Choay, “uma mais-valia de interesse, de encanto, de beleza, mas também de capacidade de atrair, cujas conotações econômicas nem é preciso salientar” (31) e cujos resultados podem revelar-se em perdas irreparáveis como é o caso, por exemplo, da invariável destruição causada pelo turismo não planejado.

Krishan Kumar traz uma importante contribuição ao analisar o desenvolvimento da relação entre a cultura e o seu valor comercial. Segundo ele, “a cultura não é mais separada do econômico. Cultura e comércio se fundem e se alimentam de forma recíproca. [...] Talvez fosse melhor dizer: tornam-se grandes empresas, porque boa parte dos negócios da economia pós-industrial é em si cultura, interessada na produção de bens e serviços culturais. Houve, em outras palavras, não só a conhecida ‘mercantilização da cultura’, estendendo-se não apenas à cultura de ‘massa’, mas também à de ‘elite’, assim como a um movimento na direção oposta, no qual a cultura coloniza a economia. Daí a importância para a economia das ‘indústrias da cultura’: educação, meios de comunicação de massa, turismo, lazer, esporte” (32).

Numa perspectiva menos otimista em relação aos desdobramentos dessa mercantilização da cultura aliada às práticas atuais, Baudrillard afirma que “já não estamos no crescimento; estamos na excrescência. Estamos numa sociedade da proliferação, do que continua a crescer sem poder ser medido por seus próprios fins. O excrescente é o que se desenvolve de modo incontrolável, sem respeito pela própria definição, aquilo cujos efeitos multiplicaram-se com o desaparecimento das causas. É o que leva a um prodigioso entupimento dos sistemas, a uma desregulagem por hipertelia, por excesso de funcionalidade, por saturação. A melhor comparação é com o processo das metástases cancerosas: é a perda da regra do jogo orgânico de um corpo que faz com que determinado conjunto de células possa manifestar sua validade incoercível e mortífera, desobedecer aos próprios comandos genéticos e proliferar ao infinito” (33).

Na visão de Françoise Choay esse processo de acúmulo, também observado no que concerne ao patrimônio cultural, despreza seleções e classificações, visando uma exaustividade simbólica ao reunir, do mais significativo ao mais insignificante, os testemunhos de um passado secular e os de um passado recente. Para ela, “o patrimônio histórico parece fazer hoje o papel de um vasto espelho no qual nós, membros das sociedades humanas do fim do século XX, contemplaríamos a nossa própria imagem”. (34) Ao fazer essa afirmação a autora questiona a efetividade, nos dias de hoje, do papel que se atribuiu ao patrimônio cultural a partir da segunda metade do século XX. Em outras palavras, segundo ela, “a observação e o tratamento seletivo dos bens patrimoniais já não contribuem para fundar uma identidade cultural assumida de forma dinâmica. Elas tenderiam a ser substituídas pela autocontemplação passiva, pelo culto de uma identidade genérica. Os traços narcisistas que aí existem já devem ter sido notados. O patrimônio teria assim perdido sua função construtiva, substituída por uma função defensiva, que garantiria a recuperação de uma identidade ameaçada” (35).

Nessas circunstâncias, continua Choay, “embora a figura que contemplamos no espelho do patrimônio histórico seja reflexo de objetos reais, nem por isso é menos ilusória. A forma indiscriminada com que foram reunidos eliminou todas as diferenças, heterogeneidades e fraturas. Ela nos tranqüiliza e exerce sua função protetora graças, precisamente, à redução e à supressão fictícia dos conflitos e das questões que não ousamos enfrentar: instrumento de defesa eficaz numa situação de crise e de angústia, mas instrumento transitório. Na sua função narcisista, o culto ao patrimônio só é justificável por um tempo: o tempo de interromper simbolicamente o curso da história, tempo de tomar fôlego na atualidade, tempo de confortar nossa identidade antropológica a fim de poder continuar sua construção, tempo de assumir um destino e uma reflexão. Passado esse prazo, o espelho do patrimônio estaria nos precipitando na falsa consciência, na recusa do real e na repetição” (36).

Sendo assim, é preciso desenvolver um posicionamento crítico em relação às práticas atuais de identificação e preservação do patrimônio cultural, como alerta Huyssen: “se nós estamos, de fato, sofrendo de um excesso de memória, devemos fazer um esforço para distinguir os passados usáveis dos passados dispensáveis. Precisamos de discriminação e rememoração produtiva. [...] Mesmo que a amnésia seja um subproduto do ciberespaço, precisamos não permitir que o medo e o esquecimento nos dominem” (37).

Do contrário, estaremos correndo o grande risco de transformarmos a bela herança deixada por nossos antepassados em algo banal e enfadonho, destituindo-a, lamentavelmente, de seu real valor. Em outras palavras, caso não seja feita uma revisão cuidadosa dessas práticas, estaremos dando continuidade ao temível processo retratado nas palavras de Baudrillard: “o surpreendente é a obesidade de todos os sistemas atuais, essa gravidez diabólica do câncer, que é a de nossos dispositivos de informação, de comunicação, de memória, de armazenamento, de produção e de destruição, tão pletóricos, que têm de antemão a garantia de já não servirem. Não fomos nós que extinguimos o valor de uso, foi o próprio sistema que o liquidou pela superprodução. Tantas coisas são produzidas e acumuladas, que nunca mais terão tempo de servir [...]. Tantas mensagens e sinais são produzidos e difundidos, que nunca mais terão tempo de ser lidos. Sorte nossa! Porque a ínfima parte que absorvemos já nos põe em estado de eletrocução permanente. (38).

E aqui cabe um alerta: devemos ser extremamente cuidadosos, pois caso o sentimento de apego dê lugar ao de repulsa, todo o esforço destinado ao reconhecimento e à valorização do patrimônio terá sido em vão.

notas

1
LE GOFF, Jacques. História e memória. 5ª edição. Campinas, Editora da Unicamp, 2003, p. 471.

2
TOFFLER, Alvim. A terceira onda. São Paulo, Editora Record, 1983, p. 23.

3
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2003, p. 68.

4
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Estação Liberdade / UNESP, 2001, p. 15.

5
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. Belo Horizonte, Autêntica, 2004, p. 39.

6
HALL, Stuart. Op. cit., p. 70.

7
Idem, ibidem, p. 07.

8
Idem, ibidem, p. 74.

9
Idem, ibidem, p. 74.

10
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p. 92.

11
PEIXOTO, Paulo. A corrida do status de patrimônio mundial e o mercado urbano de lazer e Turismo. Veredas (revista científica de turismo). Ano I, n. 01, jul. 2002, p. 40.

12
HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000.

13
NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Tradução de Yara Aun Khoury. In: Projeto História. São Paulo, PUC, n. 10, dez. 1993, p. 20.

14
HUYSSEN, Andréas. Op. cit., p. 32.

15
NORA, Pierre. Op. cit., p. 14.

16
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo, Edições Loyola, 2003, p. 263.

17
Idem, ibidem, p. 264.

18
NORA, Pierre. Op. cit., p. 15.

19
HUYSSEN, Andréas. Op. cit., p. 30.

20
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre fenômenos extremos. Campinas, Papirus, 1990, p. 10.

21
SANTOS, J. L. dos. O que é cultura? São Paulo, Brasiliense, 1999.

22
Em função disso, no Brasil, os órgãos ligados à preservação do patrimônio receberam nomes como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG), conservando-os até os dias de hoje.

23
CHOAY, Françoise. Op. cit., p. 12.

24
"Carta de Veneza". In: IPHAN. Cartas Patrimoniais. 2ª Ed. - Rio de Janeiro: IPHAN, 2000, p. 92.

25
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p. 43.

26
Idem, ibidem, p. 56.

27
"Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular". In: IPHAN. Cartas ... op. cit. p. 294.

28
CHOAY, Françoise. Op. cit., p. 239.

29
PEIXOTO, Paulo. A corrida do ... op. cit. p. 25.

30
CHOAY, Françoise. Op. cit., p. 211.

31
Idem, 212.

32
KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 128.

33
BAUDRILLARD, Jean. Op. cit., p. p. 38.

34
CHOAY, Françoise. Op. cit., p. 240.

35
Idem, ibidem, p. 241.

36
Idem, ibidem, p. 248.

37
HUYSSEN, Andréas. Op. cit., p. 37.

38
BAUDRILLARD, Jean. Op. cit., p. 39.

sobre o autor

Andrea Zerbetto, Arquiteta Urbanista formada pela Escola de Arquitetura da UFMG, especialista em História da Cultura e da Arte, sócia-diretora da ARO Arquitetos Associados, empresa que presta de serviços de consultoria e projetos na área de preservação de patrimônio cultural.

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