A azulejaria, parte importante da visualidade da arquitetura modernista brasileira das décadas de 1930 e 1940, participou da realização da ambiência do espaço construído, concretizou as exigências psicológicas e artísticas dos ambientes e contribuiu para a singularização desta arquitetura. É possível verificar isso ao se analisar algumas obras de arte projetadas para locais determinados e moldadas pelas circunstâncias e condições desse lugar; e que não apenas levam em conta os determinantes estéticos do espaço construído, mas procuram tornar o espectador física e mentalmente consciente da dinâmica espacial e social desse espaço. Contam com o espaço como elemento da própria obra e que são geradas para reforçar os valores da ambiência deste lugar. O lugar estabelece e instaura a obra; a obra arquitetônica atua como suporte da obra plástica, e esta atua como elemento importante da ambiência da arquitetura.
De todos os elementos advindos da arquitetura colonial selecionados por Costa, o emprego decorativo proporcionado pela azulejaria parece ter sido o recurso que mais profundamente marcou a produção arquitetônica das décadas de 1930-40 (1). Entendido como elemento responsável por sublinhar os ambientes onde se insere a azulejaria, o emprego desta representou a recuperação da idéia de uma ornamentação inserida numa ótica essencialmente moderna.
Diferentemente dos demais aspectos que fundamentavam a concepção espacial de Lúcio Costa, a azulejaria era o único elemento não exclusivamente presente no vocabulário técnico da arquitetura. A disposição das plantas, os processos construtivos, as especificidades das coberturas, as necessidades de ventilação dos treliçados de madeira das gelosias não eram aspectos diretamente compreendidos pelo público leigo. Com os azulejos se dava o contrário. Enquanto elemento de revestimento, o azulejo era um material exclusivamente técnico e construtivo, com finalidades climáticas e de impermeabilidade; mas enquanto elemento simbólico, sua presença ultrapassava sua necessidade material. O lastro histórico que a azulejaria representava (e que Lúcio Costa naturalmente não somente conhecia, mas recorria conscientemente como elemento formal) embasa este ponto de vista.
Que o Brasil participasse do mesmo gosto pela azulejaria era esperado, Colônia portuguesa na origem era; e a herança desse gosto dos portugueses aqui permaneceu. Os portugueses descobriram, através da utilização do azulejo, uma forma original de realização plástica e acompanhando as correntes estéticas de um modo singular. Embora o objetivo deste estudo não seja histórico, importa reconhecer que os azulejos tem acompanhado o quotidiano dos portugueses (2) há mais de cinco séculos. O azulejo possui a virtude, enquanto elemento da ambiência de qualquer arquitetura nos espaços em que se fez presente, de adaptar-se ao longo do tempo em função dos novos gostos e estilos, de maneira a permitir uma longa duração de seu uso, associando qualidade e quantidade.
Os azulejos do Palácio Capanema
Portinari executa dois painéis de azulejos para o Palácio Capanema: Conchas e Hipocampos e Estrelas-do-mar e Peixes. Encomendados pelo ministro Capanema em 1941 e executados entre 1941 e 1945 por Paulo Rossi Osir (1890-1959), medem 9,90 x 15,10 m (aproximadamente 150,00 m2) e se localizam interna (pilotis) e externamente ao bloco lateral de frente para a Avenida Graça Aranha. Ambos se constituem em composições em azul e branco utilizando a temática marinha: no externo prevalecem os cavalos marinhos e conchas enquanto que, no painel interno, as estrelas-do-mar e os peixes.
A composição dos painéis difere do programa iconográfico do Ministério da Educação estabelecido em duas vertentes principais: a clássica no caso da escultura e a realista no grande painel dos ciclos econômicos. Ambas as composições se estruturam numa trama de linhas curvas envolvendo as figuras como uma rede disposta num espelho d’água que ao movimentar-se, gerasse ondulações discretas de áreas transparentes.
Analisando os painéis de azulejo do Palácio Capanema, Zílio coloca que:
“É nessa obra que a experiência pós-cubista de Portinari atinge sua maior plenitude, constituindo-se não só a obra mais importante do artista, como também uma das mais expressivas do modernismo. Nessa obra, o talento de Portinari finalmente se libera dos fantasmas da temática e da necessidade de provar que ‘sabia pintar’. Os muros parecem ganhar a vida do mar que o artista procura imprimir-lhes, com um movimento permanente dado pelo direcionamento das diagonais, dos cavalos marinhos e pequenos peixes e ainda das grandes formas azuis. Cria-se também um espaço complexo, formado por uma superposição de planos que dão a sensação de um amplo espaço sem recorrer a uma sensação ilusória de profundidade. Abre-se, portanto, um movimento incessante em que as formas azuis mais as figuras acabam por conter o espectador. Tem-se a sensação de um envolvimento, o espectador é como que capturado num remoinho formado pela trama das formas e das cores. O fato de não haver apelo à ilusão de profundidade ainda torna o mural mais desconcertante. Pois convida o espectador a ‘mergulhar naquele mar’, mas, ao mesmo tempo, fica claro que isso se dá no plano da imagem. Um mergulho em amplas curvas de exploração. Não mais os limites da razão ideológica, mas os da descoberta do impossível, do além, do mais ao fundo. Uma ótica submarina que desmente a da superfície, uma visão das profundezas. No mergulho, na alegre sensualidade das águas, surge a imensidão do espaço. O painel integra-se na paisagem porque é dela um prolongamento” (3).
A composição se estrutura a partir do amebóide, numa biomorfização que influenciará a produção de diversos outros artistas, como na obra pictórica de Burle Marx (4) e Paulo Rossi Osir e que praticamente caracteriza um estilo da produção da azulejaria dos anos de 1930 e 40, escapando aos rigores formais do plano cartesiano através de uma pura geometrização, mas não se perdendo na gratuidade fácil do informalismo ou da representação realista.
Em ambos os painéis, Portinari subverte a ordem do padrão ortogonal perpendicular formado pela malha dos azulejos com outra, na diagonal; definindo um padrão de textura que foge ao óbvio do suporte das placas cerâmicas. Constata-se também, como se constituirá mais tarde numa presença constante nos demais painéis de azulejos de Portinari, a presença de uma longa linha sinuosa destacada envolvendo a composição, sugerindo um amebóide, de maneira a fechar e aglutinar o conjunto. Esta linha sinuosa sugere uma raiz na rocaille (5) presente no decorativismo de inspiração Rococó: introduzida primeiramente no desenho do mobiliário, acabaria por se transformar em um leitmotiv ornamental da arte do período tardo-barroco, como afirma Oliveira (6).
Ao estruturar a composição, estabelecer uma linha de referência visual e estabelecer um limite às figuras modulares do conjunto, a presença desta linha sinuosa desempenha na composição dos painéis de Portinari a mesma função que a rocaille tardo-barroca. Naturalmente que este raciocínio conduz inevitavelmente à dedução dos valores do Rococó que, ultrapassando o campo das artes decorativas, se constituiu numa espécie de denominador comum da cultura e das artes do século XVIII. Não existem provas documentais no acervo de Portinari, entretanto é um fato que a rocaille, ou a linha sinuosa está presente nos dois painéis de azulejos do Palácio Capanema e aparece aglutinando as figuras do grande painel da Igreja de São Francisco, como é facilmente verificável. A ausência de prova documental não exclui esta possibilidade, considerando os mecanismos não conscientes da transferência presentes na praxis da arte.
Com uma ocupação reduzida ao mínimo, a implantação do edifício se orienta em dois eixos ortogonais, articulado pelo pilotis que ao invés de separar os espaços laterais se constitui num espaço de transição, numa grande esplanada sem solução de continuidade. A redução da composição a dois volumes simples, ortogonalmente dispostos, contribui para a hierarquização do perfil do edifício, e assegurando ao anexo um lugar de importância no quadro compositivo.
Se o projeto se elabora a partir de ortogonais, eixos, simetrias ou assimetrias equilibradas, a disposição dos azulejos privilegia a percepção e o movimento oblíquos, rotatórios, laterais. Eixo conceitual e eixo visual só coincidirão no auditório ao final de uma dilatada perspectiva.
No pilotis do edifício, os azulejos estão dispostos de maneira frontal ao acesso pela Avenida Rio Branco que passa a duzentos metros a oeste do quarteirão do Ministério. O prisma puro se liga perpendicularmente a ela, o bloco baixo se desenvolve paralelo ao comprimento da testada mais distante. Sua montagem reconhece a direção predominante de chegada ao sítio, as faixas plantadas qualificam precisamente o reconhecimento. A composição resiste à aproximação frontal, frustrando o olho com parede ou oco que o afasta. Só a visão desde as esquinas vizinhas à Avenida Rio Branco aclaram a anatomia e fisiologia do edifício, e essa visão é diagonal. Visão brilhantemente observada por Comas como uma “promenade oblíqua e descentralizada” (7).
Espaço de transição, o ambiente do pilotis se caracteriza por uma praça visualmente aberta mas limitada pelo perfil do prisma vertical. Neste ambiente, os azulejos desempenham o papel para o qual foram concebidos.
O ambiente formado pela praça, reinterpreta, em termos contemporâneos, as idéias tradicionais de rua, quarteirão, praça e a oposição entre espaço aberto e fechado, à qual se refere Comas (8). Neste contexto, a azulejaria procura obviamente evocar o oceano aos transeuntes do pilotis, se constituindo num elemento de referência visual no contexto formal do edifício, se constituindo num contraste de material, cor e textura às colunas de aproximadamente dez metros de altura.
Respondendo à polêmica levantada por Max Bill (9), importante arquiteto suíço em visita ao Brasil em 1953, Lúcio Costa (10) explica claramente a relação que a azulejaria desempenha no edifício:
Acha também inúteis e prejudiciais os azulejos. Ora, o revestimento de azulejos no pavimento térreo e o sentido fluido adotado na composição dos grandes painéis tem a função muito clara de amortecer a densidade das paredes a fim de tirar-lhes qualquer impressão de suporte, pois o bloco superior não se apóia nelas, mas nas colunas. Sendo o azulejo um dos elementos tradicionais da arquitetura portuguesa, que era a nossa, pareceu-nos oportuno renovar-lhe a aplicação” (11).
Na justificativa de Lúcio Costa encontramos explicitado seu desejo de, através da azulejaria, remeter ao passado colonial. Como elemento de legitimação desta tradição, os painéis de azulejos se destacam por se constituir o primeiro elemento de destaque visual ao que o pedestre entra em contato, quer como usuário do edifício quer como transeunte.
Este raciocínio conduz inevitavelmente à dedução dos valores do Rococó que, ultrapassando o campo das artes decorativas, se constituiu numa espécie de denominador comum da cultura e das artes do século XVIII. A preocupação com o lastro cultural da arquitetura colonial que Lúcio Costa reforça ao empregar a azulejaria como elemento de animação do espaço arquitetônico, demonstra a idéia de que tinha em mente os valores estéticos da arquitetura tardo-barroca que encontrara em Minas em sua viagem em 1924.
A importância primordial das decorações que transfiguram os espaços arquitetônicos na arquitetura rococó determina a ambiência do espaço. A simplicidade estrutural já pressupunha a complementação imprescindível dos revestimentos em talha dourada, pintura ou azulejos, tão cara à sensibilidade dos lusitanos. Nos edifícios rococós a ornamentação desempenha um papel que ultrapassa a função meramente decorativa. Como elemento fundamental de ambiência do espaço arquitetônico, a decoração rompe visualmente com a rigidez do plano das paredes e recriam ambientes que integram valores simbólicos e formais diversos expressos através do espaço pictórico de Portinari.
Apesar desta análise ser aplicada aos espaços arquitetônicos do século XVIII, os dados nos permitem identificar o mesmo papel desempenhado pela decoração no espaço modernista brasileiro concebido por Lúcio Costa, papel este que alcançará o seu ápice na Igreja da Pampulha.
A azulejaria na Igreja de São Francisco na Pampulha
O conjunto da Pampulha se implanta ao redor do lago artificial do mesmo nome para promover a urbanização de uma área perto de Belo Horizonte, projetado em 1942. Dos edifícios do conjunto, a Igreja é o único a não ter a estrutura independente de concreto. Conforme o colocado por Bruand (12) este tipo de estrutura – do tipo casca parabólica – somente havia sido empregada anteriormente por engenheiros, em obras puramente utilitárias (13), onde o efeito estético da abóbada se constituía num benefício acessório. Niemeyer inverteu o enfoque ao usar o conceito estrutural auto-portante da casca de concreto com finalidade primordialmente estética. A concepção técnico-construtiva e a abstração formal conjuram figuras sugestivas da natureza do programa e de seu contexto temporal e físico.
Do lado da avenida, as cascas são cinco e uma sobressai correspondendo ao altar. O volume fechado e o portal configurado pela marquise e pelo campanário induzem a um encaminhamento lateral. O encaminhamento põe em evidência a associação da cruz latina da proteção retangular da série de abóbadas e da projeção em trapézio da nave assim como o encaixe da nave na abóbada mais alta. Se o portal enfoca o lago, a marquise tira lateralmente e faz descobrir a entrada. O curso do movimento se altera de novo a penetrar na nave. Outros portais reforçam sua axialidade: o primeiro constituído por escada em caracol que leva ao coro e pela parede curva do batistério, o segundo pelas colunas que sustentam a laje retangular do coro balançada em seus dois extremos. A delicadeza e simplicidade do interior contrastam com a retórica externa, o transepto sugerido fora se pode compreender então como alusão que acomoda a sacristia e outros espaços de apoio nas abóbadas contíguas ao altar, conforme colocado por Comas (14).
Portinari executa para a Igreja de São Francisco na Pampulha, além dos diversos afrescos importantes no interior, diversos azulejos. Naturalmente que de todos os azulejos concebidos para o edifício, o tour de force seria reservado ao painel frontal com a imagem do santo que dá nome à igreja. Entretanto, diferentemente de como fizera nos painéis do Ministério, Portinari se afasta do abstracionismo e se aproxima da figuração.
Mesmo usados de uma maneira diferente, podemos identificar os mesmos elementos utilizados no painel do Ciclo Econômico (1938) no edifício do Ministério. Ao invés de estruturar o espaço pictórico, os planos parecem ser empregados como recurso de ocupação dos vazios entre as figuras. Decorre daí sua visualidade disposta num esquema como um quebra-cabeças, no caso amebóide e diferente dos angulares do painel do Ciclo Econômico. Assim dispostas, as figuras neste espaço parecem boiar num ambiente onde podemos observar a presença discreta, mas organizadora da perspectiva.
O painel da igreja da Pampulha explicita o conceito de espaço definido por Portinari e não se constitui numa exceção na obra do artista, ao contrário, estabelece com ela uma continuidade. Visto como seqüência da produção dos azulejos do Ministério, os azulejos da Igreja da Pampulha se estruturam no mesmo padrão de azul e branco, que como vimos, lastreava-se na nossa azulejaria colonial.
Mesmo usados de uma maneira diferente, podemos identificar os mesmos elementos utilizados no painel do Ciclo Econômico (1938) no edifício do Ministério. Ao invés de estruturar o espaço pictórico, os planos parecem ser empregados como recurso de ocupação dos vazios entre as figuras. Decorre daí sua visualidade disposta num esquema como um quebra-cabeças, no caso amebóide e diferente dos angulares do painel do Ciclo Econômico. Assim dispostas, as figuras neste espaço parecem boiar num ambiente onde podemos observar a presença discreta, mas organizadora da perspectiva.
O painel da igreja da Pampulha explicita o conceito de espaço definido por Portinari e não se constitui numa exceção na obra do artista, ao contrário, estabelece com ela uma continuidade. Visto como seqüência da produção dos azulejos do Ministério, os azulejos da Igreja da Pampulha se estruturam no mesmo padrão de azul e branco, que remetia à nossa azulejaria colonial.
Para o programa de um edifício religioso esta adoção era ainda a mais natural. Conforme Santos (15) o século XVII em Portugal – caracterizado pelos azulejos em policromia – cede lugar ao azul e branco que iria predominar nas grandes composições setentistas. Até a primeira metade do século XVIII, influenciado pelas porcelanas chinesas oriundas do intercâmbio comercial em Goa e principalmente Cantão, a azulejaria portuguesa passou por um forte período azul e branco, onde apesar da simplicidade monocromática fez com que surgissem verdadeiros prodígios decorativos. Os mais importantes painéis decorativos que vieram para o Brasil datam deste período. Esta produção atingiria seu esplendor durante a reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755. Neste período inicia-se uma variada produção rococó com a presença de elementos arquitetônicos nos azulejos joaninos, como enquadramentos para figuração religiosa ou profana, em formas naturalistas, de gosto Regência. Em 1737 chegam de Portugal os magníficos painéis da capela mor do Convento de São Francisco, na Bahia, o mais vasto repositório de azulejos portugueses existentes sob um mesmo teto, depois do de São Vicente-de-Fora, em Lisboa.
As cores escolhidas para o painel de São Francisco – azul cobalto em diversos tons e matizes sobre um fundo branco – devem ser vistas desta forma como uma citação da azulejaria colonial portuguesa e toda a tradição ceramista oriental em azul e branco, remetendo ao nosso passado colonial e toda a riqueza simbólica que ele representa. Portinari obviamente, conhecia nossa azulejaria, bem como sua matriz lusitana e talvez seja esse o caminho para uma possível interpretação das cores, uma vez que estas são arbitrárias e foram escolhidas em meio a uma gama infinita de variações.
Se por um lado o espaço arquitetônico proposto pelo modernismo na arquitetura – inaugurado no edifício do Ministério da Educação e afirmado eloqüentemente na Pampulha – segue rumo a uma liberdade formal, a uma expressão estética fruto de uma arrojada tecnologia própria e a um conceito fundado numa linguagem formal arrojada tecnologicamente; para afirmar sua identidade formal, recorre a elementos das artes plásticas, utilizando os recursos de sua ambiência para atingir este objetivo. Desta maneira, a conceituação espacial arquitetônica modernista formulada por Lucio Costa e expressa por Niemeyer na Pampulha se utilizam da conceituação espacial pictórica concebida por Portinari para a efetivação de sua ambiência.
Vista desta forma, a Igreja da Pampulha pode ser entendida como a expressão de uma Gesamtkunstwerke (16) e aos objetivos de muitas edificações setecentistas em assegurar uma unidade entre a arquitetura e demais elementos decorativos, na qual os efeitos de conjunto tem função primordial (17).
Ao analisar o edifício creio ser necessário focalizar primeiro os elementos da decoração responsáveis por sua ambiência, para buscar em seguida sua relação com os elementos arquitetônicos estruturais, a eles relacionados. Imaginar a Igreja da Pampulha sem a ornamentação da azulejaria é fazer um exercício de como a arquitetura se limitaria aos seus próprios elementos estruturais. Este exercício não é estéril como pode parecer à primeira vista. Ao fazê-lo, podemos ver que, desprovido de sua decoração – no caso a azulejaria da fachada frontal – o edifício se apresentaria consideravelmente reduzido em sua dimensão simbólica e expressiva.
No caso da arquitetura modernista brasileira da década de 30 e 40, o emprego da azulejaria, como recurso visual ancorado no passado colonial ibérico, no barroco tão caro aos brasileiros, se aproxima de um recurso puramente retórico, como elemento fundamental da persuasão da imagem modernista que buscava uma afirmação. Desta maneira e devido à precedência dos valores visuais que o espaço arquitetônico modernista construiu ao se afirmar, o emprego da retórica dispensa a priori o reconhecimento de que teses ela queira demonstrar: o que importa é o reconhecimento de que ela pretende simplesmente persuadir, e não a isto ou àquilo. A visualidade do espaço arquitetônico modernista se configura como apto a discorrer, fornecendo ao mesmo tempo o argumento e a prova.
O processo de tradução visual do discurso dá origem à alegoria, e ao menos como podemos ver como colocada pelos teóricos da pós-modernidade, a arquitetura modernista produzida até a década de 1940, apesar de suas pretensões de afirmação e da construção de um espaço modernista, estava distante da alegoria.
Sem ser alegórico, o espaço modernista – ao menos o explicitado em obras como a Igreja da Pampulha – se construiria através desta retórica, entendida como a arte de persuadir, a arte de estabelecer um discurso, ainda que distante do conceito aristotélico de se falar no Areópago, de estabelecer um discurso político. A retórica como um instrumento persuasivo não está necessariamente ligada a um texto literário, e seu emprego na arte é inconteste.
Na igreja de São Francisco de Assis, a azulejaria na fachada parece reforçar a idéia da poética barroca da persuasão. Para Argan, o princípio da arte como persuasão de relaciona com o programa religioso da igreja católica, e este programa não pode deixar de também se relacionar, talvez mais que todos, com a arquitetura. O entendimento do gênero da retórica característica dos artistas barrocos destacado por Argan, sublinha este ponto de vista:
O gênero que encontra sua expressão na arte do século XVII é o demonstrativo que considera o presente como ponto de encontro entre a experiência do passado e a perspectiva do futuro. Configura-se uma nova concepção de tempo: o homem vive no presente, mas suas decisões implicam uma reflexão sobre o passado e uma previsão do futuro (18).
O emprego dos azulejos se constituíram assim num elemento de persuasão no nível da imagem do conjunto, que em arquitetura significa a mudança de um sistema formal fechado em um sistema formal aberto, equivalendo no plano do discurso à passagem do enunciado à anunciação. Reside neste fato a presença da azulejaria na Igreja de São Francisco na Pampulha atingir proporções mais ambiciosas que as do Palácio Capanema.
Ao lado da retórica fundada na tríade retórica-prova-persuasão, a edificação se estrutura numa poética que não é técnica de ação mas sim técnica de criação e que corresponde à tríade poiésis-mimésis-catharsis. A fachada da igreja pertence aos dois domínios, exercendo não só uma ação retórica, como desempenhando também um papel na criação poética.
O painel de azulejos da fachada da Igreja ancorado que está na produção do passado colonial e no imaginário luso-brasileiro, sublinha o conceito de ambiência espacial modernista brasileiro. Um conceito que vai além da decoração ou da presença meramente decorativa de elementos puramente formais e deve ser entendido como produto das formas plásticas que estimulam os sentidos que, integrados pela percepção se constituem numa espécie de atmosfera que envolve e condiciona a atividade dos usuários destes espaços, conforme o entendido por Graeff (19).
Entendida desta forma, a retórica barroca parece servir para interpretar a adoção da azulejaria nos moldes como na Pampulha. A imagem cumpre as pretensões de afirmar e persuadir o usuário à legitimidade do discurso modernismo brasileiro, ao resgatar elementos visuais coloniais e apresentá-los numa forma estritamente modernista. Com as técnicas do dizer, a retórica proporcionada pelo painel persuade, demonstra e legitima o referencial teórico norteador do modernismo. Modernista na forma e barroco na intenção. São Francisco não se detém na casuística da forma e função; intui para além deste paralelismo uma unidade de ato e de potência. Paradoxal, a modernidade expressa na Igreja da Pampulha não é a tradução de um conceito numa imagem, mas antes a prevalência da imagem sobre o conceito.
O edifício instaura-se numa monumentalidade enquanto produto de sua inserção no tecido urbano e neste sentido está numa zona organizada em função de seus valores formais. Monumentalidade por excelência, ao que se refere Argan (20), resultando numa complexa relação entre duas exigências fundamentais: uma plena representatividade simbólica e uma funcionalidade que é ainda definitivamente, representativa, porque o ritual espetacular, com a sua cena, seu referente imagético, não é somente um meio, mas a substância mesma da representação.
Não se trata de estabelecer um monumento per si, mas sim de estabelecer uma monumentalidade, barroca também na intenção. Na intenção de ser a ilimitada extensão da representação em um espaço ao mesmo tempo presente, passado e futuro, onde participam tanto a natureza quanto a história.
Referindo-se à produção arquitetônica de Bernini (1598-1680), Argan diz que a grande novidade é a pura visualidade, a capacidade da imaginação artística preencher a consciência sem dar espaço à reflexão e ao juízo (21). Palavras que, sem prejuízo algum e resguardadas as devidas proporções, poderiam de referir à fachada da Igreja de São Francisco.
notas
1
Como importantes obras de azulejaria na arquitetura modernista notadamente influenciadas pelas obras do MEC podemos destacar o Conjunto Pedregulho, de Affonso Reidy; o Instituto Oswaldo Cruz e o Clube de Regatas Vasco da Gama; o Colégio de Cataguases – MG e diversos painéis em residências.
2
A técnica de cerâmica vitrificada plana foi introduzida na cultura portuguesa há mais de cinco séculos pela influência das civilizações de origem islâmica na península Ibérica. Ao contrário de outros países, onde o azulejo se distinguiu essencialmente pela concepção estética erudita e pelo requinte do fabrico, o azulejo português foi sempre concebido em função da sua integração arquitetônica constante e do marcado impacto ornamental.
3
ZILIO, Carlos. A Querela do Brasil. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2ª. Ed., 1997, p. 111.
4
Naturalmente que não se trata de analisar a obra paisagística de Burle Marx, mas sim reconhecer o diálogo com Portinari em sua produção ceramística, conforme a expressa no Painel do Clube Vasco da Gama, por exemplo.
5
Definida por Germain Bazin como “uma espécie de concha abaulada ou recurvada, com silhueta de contorno irregular e recortado” a rocalha presta-se a infinitas combinações de formas, alternando perfis curvos e sinuosos, concavidades e convexidades, vazados e cheios. Associados às rocalhas, os traçados curvilíneos em C ou S atuam freqüentemente como elementos de contenção à expansão desordenada de suas formas (OLIVEIRA, 2003, p. 29).
6
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro. O Rococó Religioso no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 28
7
COMAS, Carlos Eduardo. ”Protótipo e Monumento, um ministério, o ministério”. In: Projeto nº 102. São Paulo, Arco Editorial p.136-149.
8
COMAS, Carlos Eduardo. “A máquina para recordar: Ministério da Educação no Rio de Janeiro, 1936/45”. In: Arquitextos / Vitruvius. Disponível em: www.vitruvius.com.br. Acesso em 13 ago. 2005.
9
O arquiteto suíço Max Bill (1908-1994) proferiu uma palestra em 09.06.1953 no recinto da FAU- USP onde atacou duramente o edifício do Ministério da Educação. Falando sobre o partido do edifício ele coloca que: nasceram de um espírito desprovido de qualquer decência e de qualquer responsabilidade com as necessidades humanas. É o espírito decorativo, algo diametralmente oposto ao espírito que anima a arquitetura, que é a arte da construção, arte social por excelência (BILL, Max. In: XAVIER, XAVIER, Alberto (org.). Depoimento de uma geração. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 159).
10
A resposta de Lúcio Costa foi publicada no número 60 da Revista Manchete em 13.06.1953.
11
COSTA, Lúcio. In: XAVIER, Op. Cit., p. 183.
12
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2005, p. 113.
13
O engenheiro francês Freyssinnet projetou os hangares de Orly e o engenheiro suíço Maillart usou este tipo de estrutura no pavilhão da Exposição Nacional Suíça de Zurique em 1939. Vale destacar também a obra de Eduardo Torrojas (1899-1961) e Felix Candela (1910-1997).
14
COMAS, Carlos Eduardo. “O encanto da contradição: Conjunto da Pampulha, de Oscar Niemeyer”. In: Arquitextos / Vitruvius. Disponível em: www.vitruvius.com.br. Acesso em 13 ago. 2005.
15
SIMÕES, João Miguel dos Santos; LOPES, Vítor Sousa (ed. lit.). Estudos de azulejaria. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001.
16
Literalmente traduzido como “obra de arte total” (OLIVEIRA, 2003, Op. Cit., p. 82).
17
Particularmente as edificações produzidas pelo Rococó germânico – as igrejas de peregrinação de Steinhausen (1728-1735) e Wies (1745 – 1754).
18
ARGAN, Giulo Carlo. Imagem e Persuasão. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 70.
19
GRAEFF, Edgard A. O Edifício. São Paulo, Projeto, 1986.
20
ARGAN, Giulo Carlo. Op. cit. p. 78.
21
ARGAN, Giulo Carlo. Op. cit. p. 431.
sobre o autor
Rafael Alves Pinto Junior é natural de Jataí – GO, formado em Arquitetura e Urbanismo pela FAU da Universidade Católica de Goiás em 1991 e Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás em 2006.