Há poucos anos, Antonio Bonet Castellana (1913-1989) teve seu legado reconhecido e divulgado através de uma significativa exposição itinerante sobre sua obra, a qual foi acompanhada pela edição de um livro-catálogo. A posição referencial do arquiteto sobre a arquitetura moderna do cone sul vem sendo gradualmente reconhecida, coroando o eficiente trabalho de recuperação iniciado na Catalunha. Este artigo procura demonstrar sua atuação como mais uma rota pela qual as vanguardas construtivas européias atingiram a América do Sul, auxiliando a consolidação da arquitetura moderna no continente. A contribuição de Bonet soma-se a outras basilares, como a consultoria prestada por Le Corbusier aos projetos do MESP e da Cidade universitária, em 1936, fecundando a exitosa experiência da escola carioca.
Seu exemplo para a região do Rio da Prata foi decisivo, praticando uma arquitetura genuinamente moderna desde a chegada a Buenos Aires, em 1938. Foi o que demonstrou seu trabalho inaugural, o “edifício de ateliês” coroado por abóbadas de secção assimétrica (1939), localizado na esquina das ruas Suipacha e Paraguay, quando o racionalismo criollo era a expressão máxima de modernidade nas duas margens do grande rio. Essa tendência prosseguia na década seguinte, tanto na capital porteña como em Montevidéu. Os argentinos Juan Kurchan e Jorge Ferrari Hardoy, seus colegas na passagem pelo ateliê de Le Corbusier, constituíam exceções: voltavam trazendo na bagagem o apelo construtivo, a valorização da transparência e o conhecimento de obras heterodoxas como a primitivista casa Mandrot; um conjunto de atitudes que renovava a arquitetura moderna européia dos anos 30, deixando para trás a falácia de um suposto estilo internacional das "caixas brancas". Um pouco depois, em 1943, Amâncio Williams concebia a célebre casa-ponte, ingressando no restrito grupo. E, no final dos anos 40, Mario Roberto Alvarez ensaiava algumas obras modernas de forma tímida, mas segura, transmitindo sensação de suspensão a um edifício residencial através do destaque dos pilares sobre a fachada recuada na base, utilizando janelas rasgadas e inserindo trechos de pilotis e brises verticais em seus dois projetos de Centros Sanitários realizados no período.
Na margem oposta, Luis García Pardo e Raúl Sichero Bouret davam os primeiros passos na direção de uma arquitetura construtiva, quando se encerrava a primeira metade do século. Arquitetos como Román Fresnedo Siri realizavam obras nas quais o acento acadêmico inibia a utilização da sintaxe moderna, como demonstram a pauta clássica da Faculdade de Arquitetura e o repouso na composição do Hipódromo de Maroñas, o qual amenizou a tensão presente nos grandes balanços. No caso da Faculdade de Arquitetura, a solução conservadora eleita acomodou o edifício de forma contingente à esquina, adotando como geratriz um setor de circunferência que originou um pátio interior triangular. O ritmo justo dos pilares-brises nas fachadas exteriores e interiores, aliado à geometria do partido, resultou num conjunto que expõe as origens acadêmicas marcantes do autor, características da escola uruguaia; uma tendência da obra de Fresnedo que seria revertida no curto período da segunda metade da década, como demonstra o projeto do Jockey Club de Porto Alegre, de 1951.
Este ensaio busca, mais do que reiterar a importância de Bonet para a arquitetura moderna do cone sul, redimensioná-la através da apresentação de novos argumentos. Seu trabalho precursor na região do Rio da Prata teve efeito multiplicativo estimulando a produção de uma arquitetura verdadeiramente moderna na região. Como caracteres genéticos transmissíveis, os desdobramentos de sua obra atingiram paragens mais distantes como a cidade de Porto Alegre; neste caso, através de dois protagonistas da arquitetura uruguaia: Román Fresnedo Siri, arquiteto autor do Jockey Club (1951) e do edifício Esplanada (1952) na cidade; e Eládio Dieste, engenheiro responsável pelas cascas de tijolos que caracterizaram a CEASA (1970), algumas residências e a Fábrica Memphis (1976).
Na segunda metade dos anos quarenta, Bonet realizaria o conhecido empreendimento balneário para a família Lussich, na margem oriental do Rio da Prata, próximo a Punta del Este: um parador e algumas casas cuja ousadia formal fertilizou a arquitetura uruguaia, propiciando o surgimento de uma prática moderna. Introduzia na “banda oriental” elementos próprios da arquitetura moderna mais recente, como já havia feito em Buenos Aires: adotava a transparência própria dos planos de vidro extensos, em substituição às janelas rasgadas ou recortadas nas “caixas brancas” dos anos 20; enfatizava a tectonicidade dos edifícios nas fachadas, isolando a “carpintaria" estrutural através das diferentes superfícies presentes nas composições, ora polidas, ora apresentando texturas rugosas identificadas com o primitivismo; entre outros expedientes próprios da vanguarda arquitetônica dos anos 30.
De Barcelona a Buenos Aires via Patris-Paris
Admitido na Escola Superior de Arquitetura de Barcelona em 1929, Bonet complementou a formação acadêmica tradicional no ateliê de Josep Lluís Sert e Josep Torres Clavé, entre 1932 e 1934, vivenciando obras racionalistas importantes como a Joyería Roca, o edifício Josefa López e a Casabloc.
Em 1933, embarcava em Marselha no Patris II, rumo à Atenas, conhecendo os grandes nomes presentes no IV CIAM, como Le Corbusier, Alvar Aalto, Sigfried Gideon e Cornelius Van Eesteren. O entusiasmo de Bonet por Aalto e Le Corbusier evidenciava-se desde a viagem, onde obteve fotografias ao lado dos dois mestres como pequenos troféus dignos de um tiete. O contato com o suíço seria promissor, resultando no estágio posterior à formatura. Um ano depois ingressava como sócio estudante no GATCPAC, ramo catalão do GATEPAC (Grupo de Arquitetos e Técnicos Espanhóis para o Progresso da Arquitetura), onde participou dos principais trabalhos do grupo. É consensual o débito corbusiano de Bonet. A influência de Mies também é aceita, e Segre lembra Neutra com propriedade (2). Porém Aalto jamais é mencionado, outra referência visível do arquiteto no Parador La Solana.
Concluindo os estudos em 1936, viajou à Paris para trabalhar no ateliê de Le Corbusier, onde a Casa de Week-end era concluída e a primeira versão de Jaoul começava a ser desenvolvida naquele momento. No mesmo período, colaborou com Sert e Luis Lacasa no projeto e montagem do pavilhão espanhol para a Exposição Internacional de 1937, em Paris, onde se destacaram o Pavilhão dos Tempos Modernos, de Le Corbusier, e o Pavilhão da Finlândia, de Aalto.
No ateliê do suíço conheceu Kurchan e Hardoy, pelos quais foi incentivado a emigrar para a Argentina, como forma de driblar a Guerra Civil Espanhola. Transferindo-se para Buenos Aires em 1938, desenvolveu com eles a célebre poltrona BFK e fundou o Grupo Austral responsável pela revista de vanguarda homônima. No ano seguinte projetava o pequeno edifício de lojas e ateliês à rua Suipacha, no qual realizou precursoras abóbadas de curvatura assimétrica na cobertura. O extenso envidraçamento das fachadas, entretanto, foi o aspecto que alinhou o trabalho com o que havia de mais atual no velho mundo, como ocorria no Brasil com o MESP (1936) e o Pavilhão de Nova York (1938) (3). No térreo, as vitrines apresentaram sofisticados vidros curvos. Delimitado por duas lâminas horizontais paralelas, o corpo do edifício foi coberto por planos de vidro extensos, complementados por paredes de tijolos de vidro que remetiam a Porte Molitor (1933) e, por conseqüência, a Maison de Verre (1929), de Pierre Chareau. Delimitada por uma terceira lâmina, a cobertura expôs envidraçamentos junto à fachada, recuando as resumidas vedações opacas para trás dos terraços.
Dois anos depois, em 1941, retornaria ao tema das abóbadas nas casas em Martínez, agora adotando a forma de arco abatido mais literalmente ao modo de Week-End. O projeto do conjunto urbanístico de “Casa Amarilla” (1943), desenvolvido em conjunto com Amâncio Williams e Eduardo Sacriste, entre outros arquitetos, seria seu primeiro trabalho em escala urbana desenvolvido em Buenos Aires.
Antonio Bonet na Ballena
Em 1945, ainda em Buenos Aires, Bonet projetava a casa do poeta Rafael Alberti em Punta Del Este, a chamada “La Gallarda”. Rústica, fazia uma menção explícita ao modelo de Errázuriz, com seus telhados “em borboleta”. No mesmo ano, o arquiteto transpunha o Rio da Prata, transferindo-se temporariamente para o Uruguai. Contratado pela família Lussich, também proveniente da Catalunha, projetou e executou o loteamento de uma grande gleba na praia de Portezuelo, junto a Punta Ballena, no bosque artificial conhecido como Arboretum Lussich. A oportunidade se constituiu numa espécie de laboratório de experimentos formais e construtivos para o arquiteto. Fundiram-se no conjunto a antinomia racionalista e sensual de Le Corbusier com as influências próprias de Aalto, perceptíveis no Parador La Solana del Mar (1946), que atuaria como âncora do empreendimento: pequeno hotel com restaurante e night club junto à praia.
O Parador La Solana
Voltado para as águas calmas de Portezuelo, o prisma envidraçado do parador emerge das curvas de nível do terreno, destacando-se à frente do bosque de pinus marítimo. O terraço-jardim sobre o volume frontal está pouco acima do topo da colina na qual o edifício se insere, arrematado por uma espécie de cornija estilizada em concreto armado. Visto de frente, o volume tem sua contenção rompida pela forma serpenteando sobre o terraço-jardim: um muro curvilíneo de traçado nervoso, incumbido de esconder a empena do bloco de serviços, que se sobressaiu, e absorver as chaminés através da continuidade de uma espécie de biombo.
Para revestir aquela “forma livre” própria de Aalto, Bonet adotou a solução do mesmo, utilizando as lâminas verticais de madeira; material que se estendeu generosamente sobre outras superfícies exteriores, piso e estrutura do mezanino e parte das divisórias internas. Aalto havia utilizado a madeira daquele modo a partir de sua casa em Helsinki, projetada em 1934. No ano seguinte vencia o concurso do pavilhão finlandês para a Exposição de Paris de 1937, no qual levou a solução ao extremo, revestindo todo o edifício efêmero daquela forma. No Pavilhão da Finlândia para a Exposição Universal de Nova York (1939), projetado em 1937, o espaço interior foi elevado ao protagonismo, através das curvas inclinadas presentes nas paredes, revestidas com lâminas de madeira verticais; e na villa Mairea, projetada no mesmo ano, a utilização da madeira parece ter atingido o apogeu: as formas curvas das duas marquises, o grande volume cilíndrico sobre o ingresso e as platibandas do setor social, tudo foi igualmente solucionado através do revestimento de sarrafos verticais.
A cortina de vidro de duplo pé-direito do restaurante foi protegida originalmente pelo brise vertical de pranchas de madeira espaçadas, como atesta a foto de Henry-Russel (4). Produzia um grafismo delicado sobre a fachada, eliminado posteriormente. A face lateral desprotegida expõe a silhueta de um par de lareiras sobrepostas (uma delas posicionada no mezanino), cuja forma resultante lembra o desenho de Miró ou objects trouvés – objetos de reação poética – corbusianos: referências próprias da influência surrealista, a qual ele afirmava haver sentido intensamente na pintura, desde Barcelona, e foi “trasladando para a arquitetura”. Lembrando a passagem pelo ateliê de Le Corbusier, Bonet conta que aquele lhe incumbiu de um projeto incorporando a liberdade criadora própria do movimento surrealista à arquitetura racionalista (5). Nos fundos do parador, o perímetro recorta-se, surgindo uma ala perpendicular que abriga os serviços. O tratamento do anexo explora o contraste do revestimento de pedras com painéis de madeira vertical.
A riqueza de detalhes acentua-se no interior do edifício. O restaurante apresenta um biombo articulado à entrada dos sanitários, formado por lâminas verticais paralelas. O balcão curvo do bar, de aspecto rústico, também foi confeccionado em madeira, como o restante do mobiliário projetado pelo arquiteto. Apesar da transparência dominante (três das quatro paredes), o salão de duplo pé direito transmite sensação de aconchego, através da presença de lareiras mencionada e do mezanino que intercepta o grande espaço. O refinamento dos detalhes atinge seu ponto alto nas mãos francesas que sustentam o mezanino, fundidas em metal e afixadas aos pilares de seção circular canelada, em concreto aparente texturizado. A parede de pedras da ala perpendicular invade o interior do restaurante, reforçando a leitura do volume estereotômico em contraste com a carpintaria das vedações transparentes. Nela, pedras horizontais delgadas projetam-se alguns centímetros da parede, produzindo textura. O zoneamento de funções na planta baixa, através de diferentes pisos nivelados, é outro refinamento que merece menção. O granito apicoado está presente no piso, nos degraus de arranque e no patamar da escada que leva ao mezanino, transmitindo esmero e perenidade à obra.
A Casa Berlingieri
No mesmo conjunto da Ballena, Bonet projetou e construiu a casa Berlingieri (1947), retomando o tema das abóbadas herdado da experiência no ateliê de Le Corbusier, onde a casa de Week-end destacava-se naquele momento. A fachada principal foi voltada para a praia, tirando partido do perfil das quatro abóbadas em arco abatido, e o extenso gramado que antecede a casa valorizou a perspectiva. O acesso ocorre na parte posterior, voltada para as ruas curvas do loteamento.
Solucionada em dois pisos, a área social agregou os serviços, acomodando-se no pavilhão perpendicular à praia, coberto pela abóbada de maior vão. No piso superior, o terraço frontal estende-se para fora da cobertura curva: apoiada sobre um único pilar, a expansão projeta-se no ar como um trapiche, sustentando a escada exterior que conduz ao pátio. Embaixo, o amplo salão de lazer conecta-se à área da piscina. Os dois níveis estão integrados através do vazio de duplo pé-direito. O setor íntimo constituiu um volume equivalente e perpendicular ao primeiro, coberto pela sucessão de três abóbadas menores, correspondentes aos dormitórios. Os dois volumes isolados foram conectados pela contrastante passagem cristalina.
O projeto desencadeou a experiência de Eládio Dieste com as cascas de tijolos, reconhecida internacionalmente. Chamado pelo arquiteto para calcular a estrutura, Dieste sugeriu-lhe que as abóbadas fossem confeccionadas com uma casca de tijolos, dando início ao desenvolvimento da técnica que o consagrou. O depoimento do engenheiro uruguaio é elucidativo:
“numa obra do arquiteto Bonet, em Punta Ballena, se pensou numa solução de abóbadas segundo umas obras que Bonet havia feito em Buenos Aires. [...] então eu lhe disse porque não fazíamos uma abóbada de tijolos [...]. Ele me disse que estava de acordo, mas que a sentia muito pesada, já que estava pensando em tijolos colocados como se fazem os arcos, então lhe disse: ‘não, uma casca de tijolos’. Ele me perguntou se isso podia se fazer, eu pedi-lhe que me deixasse estudar” (6).
Dieste retomaria o desenvolvimento da técnica a partir de 1953, produzindo soluções inovadoras como aquela aplicada na célebre Igreja de Atlântida (1957), cujas paredes e teto ondulados criaram um interior surpreendente. Na fábrica TEM Montevideo (1958) utilizou pela primeira vez as abóbadas gausas de grande vão-livre, e na loja Autopalace (1963), em Montevidéu, aplicou as abóbadas de berço autoportantes que se tornaram as mais difundidas.
As cascas de tijolos da Berlingieri tornaram-se exemplares, motivando inúmeros outros arquitetos para aplicá-las, a partir dos anos 50. Especialmente a paisagem construída de Punta del Este registrou uma profusão de abóbadas – de berço, abatidas, assimétricas, biomórficas, enfim, de toda ordem. No Brasil, a Central de Abastecimento de Porto Alegre (1970) iniciou a utilização das coberturas calculadas por Dieste, tornando-se inspiração para um número considerável de obras espalhadas pelo País.
Outras três casas
Além destas duas obras referenciais para a arquitetura do cone sul, Bonet realizou outras três casas em La Solana. Na menor delas, a Quatrecasas (1947), destaca-se a horizontalidade transmitida pela delgada cobertura que define o volume. Mais ampla, a casa Booth (1947-1948) apresenta semelhante horizontalidade acentuada. O partido adotado, em duas alas paralelas conectadas por galeria, demonstra semelhança com um esquema recorrente da escola carioca.
A terceira delas, a casa La rinconada, é a que merece maior destaque: um prisma horizontal em contraste com a topografia da paisagem agreste, na encosta abrupta e rochosa da Punta Ballena. A fachada envidraçada em toda extensão trás para dentro da sala ampla a vista deslumbrante, com a praia abaixo e a extensa linha do horizonte sobre o mar. Aqui a fachada de vidro remete a Casa Tugendhat de Mies, porém as gárgulas presentes na platibanda baixa identificam-se com a dramaticidade própria de Le Corbusier. O fundo apresenta paredes de pedra bruta, material que se estende pela base elevada, contrastando com a síntese dos planos brancos de alvenaria.
A presença de bonet na contribuição uruguaia a Porto Alegre
Antonio Bonet colocou-se como mais uma rota alternativa das premissas corbusianas e de outras vanguardas européias rumo ao novo mundo. A recuperação de sua trajetória expõe os caminhos, às vezes acidentais, da transmissão do conhecimento e das idéias na arquitetura, como o encontro de Dieste com as abóbadas que o consagraram. Sabe-se que o próprio Le Corbusier já havia lançado suas sementes quase uma década antes de sua chegada, quando proferiu as palestras baseadas na apologia às máquinas, às formas puras, à racionalidade e à salubridade, nas quatro cidades sul-americanas, em 1929. Entre as repercussões menos conhecidas da obra de Bonet, figuram duas experiências realizadas por profissionais uruguaios na cidade de Porto Alegre: uma delas tácita, a partir de Dieste; a outra subliminar, através da provável influência de suas obras em Punta Ballena sobre Fresnedo Siri.
Román Fresnedo Siri e o Hipódromo do Cristal
A partir da exitosa experiência do Hipódromo de Maroñas, em Montevidéu, Fresnedo Siri foi contratado pela construtora Azevedo Moura & Gertum para o concurso da nova sede do Jockey Clube do Rio Grande do Sul (1951), no bairro Cristal (7). Sem dúvida, foi a obra local mais corajosa do período, na qual o arrojo das estruturas atirantadas que sustentam o grande balanço não acabou num heroísmo estrutural estéril: a composição dos volumes e fachadas é harmoniosa e precisa, os interiores são ricos em curvas, ângulos e transparências, proporcionando agradáveis surpresas ao visitante. O sistema estrutural Freyssinet da cobertura foi apoiado numa linha única de pilares, criando dois balanços assimétricos: o mais extenso possui 26 metros, cobrindo as arquibancadas e tribunas; o lado menor, com 17 metros de balanço, possui os tirantes de aço ancorados ao solo, além do contrapeso próprio.
As fachadas voltadas para o exterior são totalmente envidraçadas, desde o ponto médio das laterais, onde uma lâmina vertical divide os pavilhões no sentido longitudinal, estabelecendo uma transição entre as arquibancadas e o prisma transparente que contém os diferentes pavimentos. Brises horizontais metálicos protegem as fachadas voltadas para oeste, com exceção do térreo e do último pavimento: a vista para o exterior foi preservada nos salões do nível mais alto e o quebra-sol horizontal engastado no grande balanço protege a fachada. O envidraçamento extenso configurando um prisma, sem interrupções nos vértices e entre-pisos, era incomum na arquitetura moderna brasileira naquele momento. Raras obras brasileiras do período apresentavam soluções tão ousadas, à exceção do MESP e do Pavilhão de Nova York. Na sede do IAB/SP (1948), da equipe liderada por Rino Levi, a fachada envidraçada foi segmentada pelas lajes de entre-piso.
A inspiração de Fresnedo na arquitetura moderna brasileira é plausível, dentro da tendência ocorrida no Uruguai nos anos 50 (8). Porém as grandes superfícies transparentes do Hipódromo certamente não provêm daquela, parecem inspiradas em outras latitudes. Também é inegável seu débito com a experiência desenvolvida por Bonet em Punta Ballena, naquele conjunto de prédios modernos exemplarmente resolvidos e construídos. A liberdade formal daqueles projetos associando formas curvas, envidraçamentos generosos e a utilização de materiais e técnicas inéditas na região – como as cortinas de vidro do restaurante, os revestimentos exteriores em madeira, as coberturas com abóbadas de arco abatido e os tetos planos –, era uma experiência que estava sendo posta em prática a poucos metros da casa de veraneio de Fresnedo Siri, localizada nos altos da Ballena (9). Eclético na melhor acepção da palavra, o arquiteto transitou virtuosamente através de diferentes sintaxes e influências arquitetônicas, com uma destreza passível de ser creditada à sólida formação acadêmica que possuía.
As cascas de Eládio Dieste
A Central de Abastecimento de Porto Alegre (1970), da autoria de Carlos Fayet, Cláudio Araújo, Luís Américo Gaudenzi e Carlos Eduardo Dias Comas, foi um projeto de proporções típicas do período do “milagre econômico”. Do ponto de vista conceptivo, entretanto, o conjunto divergia do curso principal da arquitetura brasileira daquele momento, ao adotar pioneiramente a tecnologia da cerâmica armada de Eladio Dieste no País: com exceção do antecedente isolado da Fábrica Olivetti em São Paulo, nos anos 50, cujo projeto e tecnologia eram italianos, experiências coetâneas como a casa Zamataro (1970), de Rodrigo Lefèvre, continham um caráter empírico e artesanal que se distinguia da abordagem tecnológica de Dieste. As abóbadas acompanhavam a arquitetura moderna brasileira desde seus primórdios; com exceção da pioneira Igreja de São Francisco da Pampulha, porém, vinham sendo utilizadas como elementos complementares das composições, quase nunca como solução global adotada. No caso da CEASA de Porto Alegre, constituíram-se em componente elementar do projeto, unificando concepção estrutural e forma com justeza.
A partir da experiência acumulada no projeto da CEASA, Carlos Eduardo Comas projetaria cinco residências com a tecnologia de Dieste, entre 1971 e 1975. A indústria de sabonetes e cosméticos Memphis (1976), de Cláudio Araújo e Cláudia Obino Correa, seria outro projeto importante utilizando a experiência das cascas. Outras centrais de abastecimento estavam sendo construídas no período, e a experiência local seria retomada como padrão construtivo para as centrais do Rio de Janeiro e Maceió (10). As abóbadas de Dieste e soluções assemelhadas também foram transpostas para inúmeras outras obras brasileiras, como os boxes do Autódromo de Jacarepaguá e o Centro de Controle Operacional e Manutenção do Metrô, no Rio de Janeiro, postos de gasolina e outros programas.
À guisa de epílogo
Depois de duas décadas vivendo na Argentina, Bonet iniciaria a prática profissional na Espanha, em 1959, onde se concentraram suas obras a partir daquele momento. O conjunto extenso e consistente de trabalhos produzidos na região Cisplatina constituiu, sem dúvida, uma importante contribuição para a arquitetura moderna do cone sul americano. As transparências presentes de forma pioneira em sua obra compuseram um esforço paralelo às experiências da escola carioca, na consolidação de uma “primeira era do vidro” no âmbito sul-americano. Não seria precipitado afirmar que as fachadas envidraçadas do Hipódromo tenham resultado da convergência destes dois vetores. Do mesmo modo, a disseminação das abóbadas introduzidas por ele na região, e as variações sobre o tema efetuadas nas cascas de tijolos desenvolvidas por Dieste, atingiram paragens mais distantes como a cidade de Porto Alegre, entre outras no País. Com elas, o repertório de elementos da arquitetura moderna ampliava-se, enriquecendo a silhueta das cidades com a poética daquelas formas.
notas
1
Este ensaio retoma o trabalho publicado nos Anais do I Seminário Docomomo Sul, evento realizado em Porto Alegre em agosto de 2006.
2
SEGRE, Roberto. “Punta del Este: Ameaçado um ícone do modernismo uruguaio”. Minha Cidade, nº 156: São Paulo, Portal Vitruvius, mar. 2006 <www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc156/mc156.asp>.
3
As datas apresentadas referem-se aos projetos.
4
HITCHCOCK, Henry-Russell. Latin american architecture since 1945. New Cork, MoMA, 1955, p. 54.
5
ÁLVAREZ, Fernando [et al.]. Antoni Bonet Castellana (1913-1989). Barcelona, Colegio de Arquitectos de Catalunya, s/d., p. 72.
6
Em entrevista concedida à revista Elarqa, nº 15. Montevidéu, set. 1995, p. 14-15.
7
Como decorrência do trabalho, Fresnedo realizou um segundo projeto na cidade, o edifício Esplanada (1952). Neste, duas grandes grelhas de balcões nas fachadas produziram uma retícula que amenizou as dimensões avantajadas do bloco. O ático recompôs o volume do prisma através de uma espécie de pérgula de vigas, arrematadas por uma “cornija-marquise” sustentada por pilotis. Há uma frágil possibilidade do projeto aproximar-se da escola carioca, a partir da “alveolaridade” presente na grelha de balcões, no espaço de pilotis esboçado à frente das lojas e nas marquises do ático, onde “formas livres” se insinuam (grosseiramente) através de casas de máquinas e reservatórios unificados como curvas; além do revestimento em vidrotil, também aplicado no hipódromo. No caso do revestimento e das “formas livres”, deve-se considerar a hipótese de terem sido adotados durante o detalhamento realizado pela construtora, a cargo do técnico Guido Trein. Aqui Fresnedo parece ter adotado os arranjos de caráter anônimo do racionalismo italiano ou criollo uruguaio, associados à composição corbusiana corrente.
8
Os próprios críticos uruguaios denunciam a influência em passagens como estas: Guias ELARQA de Arquitetura, tomo 5, p. 27: “A herança corbusiana – assumida através da experiência brasileira – se manifesta claramente nos critérios éticos e estéticos que determinam a resolução do programa, que apela a clareza funcional e ao rigor da forma”; e Guias ELARQA de Arquitetura, tomo 2, p. 43: “Pontualmente é adicionado um mezanino sobre o acesso formalmente autônomo, segura evocação da arquitetura renovadora do Brasil, de forte influência sobre a arquitetura da região na década de 50”.
9
Fresnedo construiu para si uma casa nos altos de Punta Ballena. O projeto é apresentado por Yolanda Boronat e Marta Risso, autoras da sua biografia, como sendo datada de 1938. Adotou como partido um cubo de vidro coberto por uma placa fina projetada em balanço sobre as fachadas. É possível que, tanto o projeto como a construção, tenham avançado nos anos 40.
10
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil (1900-1990). São Paulo, Cosac & Naify, 2002, p. 172.
bibliografia complementar
BORONAT, J. Yolanda/ Risso, Marta R. Román Fresnedo Siri: un arquitecto uruguayo. Montevideo, Universidad de la República, 1990.
COMAS, Carlos Eduardo Dias. “Mercado Central de Porto Alegre”. Barcelona, DPA nº 15 DIESTE UPC, p. 32-37, 1999.
COMAS, Carlos Eduardo; CANEZ, Anna Paula; BOHRER, Glênio Vianna. Arquiteturas Cisplatinas: Roman Fresnedo Siri e Eladio Dieste em Porto Alegre. Porto Alegre, UniRitter, 2004.
DIESTE, Eladio. Eladio Dieste 1943-1996. Sevilla-Montevideo, Dirección General de Arquitectura y Vivienda, 1996.
GAETA, Julio C.; FOLLE, Eduardo. Guias ELARQA Montevideo (tomos 2-5). Montevideo, Dos Puntos, 1995.
LUCCAS, Luís Henrique Haas. Arquitetura moderna brasileira em Porto Alegre: sob o mito do “gênio artístico nacional". Porto Alegre, PROPAR/UFRGS, 2004 (Tese de Doutorado em Arquitetura).
XAVIER, Alberto; MIZOGUCHI, Ivan. Arquitetura Moderna em Porto Alegre. São Paulo, Pini, 1987.
sobre o autor
Luís Henrique Haas Luccas é arquiteto graduado pela UFRGS, Doutor em Arquitetura pelo Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura (PROPAR) da mesma instituição, na qual exerce a docência desde 1992, dedicando-se ao ensino do projeto arquitetônico e à pesquisa.